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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A Interferência de Petzold-Farocki. Uma conversa com Harun Farocki



Uma pequena conversa com o realizador alemão Harun Farocki sobre a sua peculiar colaboração com Christian Petzold, realizador de YELLA
(2007), filme que acaba de estrear. Farocki é creditado em quase todos os filmes de Petzold como consultor para o argumento ou algo afim. Como nas funções científicas ou nas doenças médicas, que tomam o nome dos sujeitos que as descobrem, procurámos compreender como funciona esta interferência criativa. A Interferência de Petzold-Farocki era igualmente o objecto de um ciclo de cinema do Goethe-Institut que não se chegou a realizar, e que conjugaria alguns dos documentários de Farocki com as ficções de Petzold. A propósito: Harun Farocki é um dos formadores do Curso de Bideoarte do Programa Gulbenkian Criatividade e Expressão Artística, da qual se espera aliás o anúncio das esperadas actividades abertas ao público em geral.

André Dias – Suponho que tenha sido professor de Christian Petzold...

Harun Farocki – Conhecemo-nos no início dos anos 80 quando leccionei alguns seminários na Academia de Cinema de Berlim (a dffb). Nem eram muito frequentes, apenas duas ou três semanas em cada ano. Mas fazíamos algo de maravilhoso, que era limitarmo-nos a ver um filme, por vezes três ou quatro dias seguidos, numa mesa de montagem, detalhe a detalhe. Havia um grupo de quinze alunos e, por alguma razão, uma certa química. Funcionava bem. Falávamos de filmes, fosse de um Hitchcock, de um filme trivial ou de um mais experimental. Falávamos de milhões de pequenos detalhes, sem tentar ser demasiado inteligentes, sem termos interpretações, antes aproximando-nos verdadeiramente do filme. Era muito divertido e ainda é o meu modo preferido de fazer aquilo a que se chama ensinar: ver um filme de perto.
Portanto, conheci-o, mais ao [Thomas] Arslan, e a outros de quem ainda sou amigo. Mas não à Angela Schanelec, que por alguma razão nunca chegou a frequentar os meus seminários. Ela também entrou na dffb mais tarde e os meus seminários terminaram em 1990. No caso de Petzold, logo na sua primeira longa-metragem, ainda na dffb, agi como uma espécie de conselheiro. Nessa altura a colaboração era muito intensa. Eu dizia coisas como: “Olha, está aqui uma rapariga, que se vê assim. Como havemos de filmar se ele vem dalí?” E tentava-se filmar desse modo. Hoje não fazemos isto. Olhamos para a cena e eu digo, por exemplo: “Olha, isto está um pouco longo. Não devia a personagem fazer algo de diferente?”, ou o que seja. Então o Petzold vai-se embora e, depois de uma semana ou duas, volta com o argumento. Agora a percentagem dessa contribuição já não é tão grande, mas de certa maneira ainda sou a pessoa com quem ele quer falar sobre o projecto. Sou mais um catalisador, num certo sentido. Já dura há mais de dez anos e funciona bem, por isso...

Há certos temas dos filmes de Petzold que têm algo em comum com as suas preocupações enquanto documentarista. Por exemplo, no final de GESPENSTER / FANTASMAS (2005) [cf. «Soberania»], aquelas imagens computadorizadas do futuro rosto da criança...


Sim, mas é um modo muito comum de trabalhar essas imagens hoje em dia...


Gostaria de deixar claro este ponto: não estou à procura de uma qualquer relação filial entre vocês. Trata-se antes da ideia de uma interferência entre dois autores que trabalham de forma próxima.
A principal coisa em comum entre nós diz respeito ao reconhecimento de que a vida social está a ser reencenada, modernizada, com palavras brilhantes e instituições estranhas. Todos estes detalhes sobre a forma que toma um centro comercial, ou como se comporta um empregado de banco depois de ter sido educado de uma certa maneira, por exemplo, são interesses comuns que partilhamos.


No entanto, o Harun Farocki fá-lo através de filmes documentários, de estilo neutro, observacionais, e Christian Petzold através de longas-metragens de ficção, que têm um certo apelo para as audiências, que são narrativas...




A coincidência foi particularmente grande neste último caso, em YELLA, porque Petzold pegou num documentário [sobre capital de risco] que eu fiz, NICHT OHNE RISIKO (2004). Também lhe passei cassetes com planos que não usámos na montagem desse filme e várias conferências que tínhamos filmado. Assim pode usar as palavras adequadas... Até lhe arranjei um vocabulário de duzentas e cinquenta expressões que os investidores de risco usam correntemente (risos) e que tivemos que pesquisar. Nestes casos trabalhamos bem juntos. Em geral, existe esta contradição porque se precisa de coisas sociais como fundo, como cenário. Neste caso era mais do que um fundo, era talvez a própria essência do conflito. Claro que se passa ainda entre pai e marido e por aí adiante, mas estava na centro do conflito o modo como Yella aprende a lidar com estas questões.


Mesmo noutros filmes de Petzold tem-se a impressão que a narrativa, a intriga, se assemelha por vezes a um MacGuffin, enquanto se estão a afirmar coisas muito poderosas. Por exemplo, em DIE INNERE SICHERHEIT (2000), com os interrogatórios entre os membros da família e próximos... Entre si e Petzold parecem haver duas expressões diferentes de uma preocupação comum. Mas o modo como trabalha com ele concerne essencialmente a discussão do argumento? Não participa nas filmagens?



Não, não participo de todo. Quer dizer, até podia, mas de alguma forma ele prefere assim. Prefere guardar essa experiência para si.


E como se vê a participar em obras de ficção, dado que a sua última é de 1982?

Gosto bastante. Porque no meu modo reflexivo eu também lido com filmes de ficção, claro. Por isso é bom que haja algum resultado disso. No meu trabalho, estilística ou narrativamente, também tenho que ter em conta as ficções. Digo sempre aos meus alunos que não devemos estabelecer uma diferença entre ficção e documentário, ou entre filmes ricos ou pobres, etc. Mesmo que se escreva poesia pode também ler-se Tolstoi. Não é um problema. Há sempre uma transparência em causa que faz com que não se tenha que fazer algo de semelhante, de igual.


Mas por alguma razão não o faz dessa maneira, como ficção...
Pois não. Não consigo. Faltam-me as competências sociais para isso. Há uma quantidade enorme de competências sociais que são necessárias. Lidar com o dinheiro, produtores, actores, e por aí fora. Tantos aspectos que... Estou muito feliz com esta existência de nicho, quase comparável a se escrevesse livros... que não de ficção.


No entanto, fez um filme de ficção magnífico, ZWISCHEN ZWEI KRIEGEN / ENTRE DUAS GUERRAS (1978)...



Mas isso foi há muito tempo. E era num modo diferente. Foi aliás uma experiência terrível, porque se quer que as pessoas representem de um modo diferente do que fazem habitualmente na televisão, no cinema e no teatro. Os Straub conseguiram obter um modo diferente de representação. Mas é muito estranho ser o único a dizer-lhes: “Não façam assim. Façam antes assim!” Se se tem acesso a um teatro ou algo de semelhante, se se constrói um grupo que compreenda, então estas coisas são possíveis. A Volksbühne tem um modo diferente de representar. Bob Wilson também conseguiu criar um modo. Mas se não se tem esta experiência contínua não é possível. E eu não saberia tê-la. Levei sete anos a escrever o argumento seguinte. Seria um filme cada sete anos! Não tenho assim tanta paciência.

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