Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O efeito errado que destitui o certo

Na animação VALS IM BASHIR / VALSA COM BACHIR (2008) de Ari Folman, muito perto do fim, a personagem do repórter que relembra a cobertura dos massacres de Sabra e Chatila durante a invasão do Líbano por Israel em 1982, descreve como se deparou com uma mão de criança que sobressaía por de entre o entulho, bem como os caracóis do cabelo daquela criança morta, que poderia ser a sua filha, diz. Vemos o que ele se lembra de descobrir e, pouco depois, o próprio rosto da criança, afinal também a descoberto, desenhado no meio do entulho desenhado. Mas a imagem move-se lenta, lateralmente, numa panorâmica de animação. Este “movimento de câmara” é de algum modo já estranhamente denunciado. Gera algum desconforto. Não porque fosse raro no filme, mas talvez porque algo de sério se começava a acumular e esse efeito destoasse.
Pouco depois, perante o horror da descoberta de cadáveres acumulados num beco “que chegavam à altura do peito de um homem”, a imagem a contraluz desse beco é atingida por um feixe de luz que entra na lente, produzindo o típico efeito óptico dessa perturbação, as auréolas em fila inscritas na imagem. Em seguida, quando compreendemos ter chegado finalmente o momento da revelação das memórias recalcadas do narrador, que constituem aliás a busca do filme, irrompem as imagens ditas “reais” do após os massacres, com o correspondente desfilar de corpos desfeitos, e a crueza adicional, também ela um efeito, que advém de terem sido filmadas em vídeo dos agora longínquos inícios dos anos oitenta, pobre de definição e de imagens borradas pelo varrimento. Aqueles equívocos efeitos de câmara eram o anúncio do upgrade da imagem que haveria de chegar.
Estes traços da presença da cinematografia, estes tiques de autenticidade, para os quais o cinema já nos habitou de tal forma que nem neles reparamos, surgem neste filme de animação como uma tentativa contraditória, não conseguida, de simulação, e em prejuízo da própria expressão da experiência brutal que pretendia evocar. Como se estivéssemos num jogo em que acederíamos a uma realidade mais profunda, mais densa, da revelação integral da memória, da verdade, em suma, através dos efeitos superficiais mais reconhecíveis. Em particular, esse feixe de luz que entra na lente, o menos inofensivo, é o efeito errado que destitui o certo, aquele que poderia nascer doutra conjugação entre imagens “reais” e animadas. Aqui, aparentando o contrário, trata-se da destituição da própria animação. Não temos nada contra a superfície, no entanto. Mas não era melhor acreditar na superfície dos corpos do que na da luz?

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Duas imagens. A primeira, do filme de animação, mas de uma cena anterior, reproduz um efeito óptico semelhante ao atrás descrito. A segunda, encontrada na internet como documentando os massacres de Sabra e Chatila, aparece integrada num dos excertos vídeos de imagens “reais” que por fim rompem esta animação.
Esta pequena montagem improvisada parece contradizer tudo o que escrevi atrás. Mas talvez isso se deva, em primeiro lugar, à proximidade das imagens aqui, e em segundo, à confusão também aqui entre o efeito produzido pelo foco luminoso e o de um eventual projéctil lançado pelo tanque.
Que vos parece, funciona? Curioso como qualquer resposta nos surge tão tintada de pruridos morais. Ainda não somos capazes de, simultaneamente, olhar para as imagens e fiarmo-nos apenas no que elas são/dão. Os ensinamentos e a prática de Godard ainda não foram aprendidos.

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