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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A ciência oculta do projeccionismo (DocLisboa #13)

Os leitores sabem do meu particular fascínio por essa actividade pouco exposta ao escrutínio público que é o projeccionismo. Quer dizer, há muita gente a projeccionar, e a projeccionar-se então nem se fala, mas conhece-se pouco das angústias do dia a dia escuro desses homens lá atrás na cabide de projecção, e ainda menos das contribuições que trazem regularmente à arte cinematográfica. Que os senhores projeccionistas sejam criaturas bizarras, entende-se. Não praticam eles uma ciência oculta? Como poderiam ser doutra maneira? Clãs outrora numerosos e respeitados, de tradições passadas de geração em geração, estão agora reduzidos a indivíduos experientes mas isolados, ou a jovens arrivistas sem a compreensão da grandeza do seu métier. Uma achega aos seus contributos, é o que proponho hoje...

No Cinema Londres, ali para os lados da agradavelmente decadente Avenida de Roma, para além da já referida dificuldade inultrapassável, como é próprio das grandes questões ontológicas, em projectar 16mm, ficámos a conhecer recentemente, graças aos esforços pedagógicos do seu projeccionista, a invenção de um novo modo de enquadrar, que teria sido perpetrado pelos cineastas polacos de curtas metragens. Apesar dos seus estilos assaz diferentes e de terem realizado os seus esforços em décadas diferentes, Andrzej Wajda, Marcel Lozinski e Krzysztof Kieslowski teriam partilhado uma inovação no modo de enquadrar que é muito sugestiva. Nesse novo modelo, as cabeças das pessoas eram cortadas constantemente pela testa, os corpos eram impulsionados para o topo do ecrã, criando uma dinâmica vertical assombrosa, como que sugerindo, certa e insidiosamente, a opressão do sistema comunista sobre as mentes dos cidadãos. >
Fomos depois informados, por nossa infeliz inquirição, que afinal é o Londres que não consegue projectar formatos em 35mm abaixo da lente de ampliação 1:1,66 que possui, o que deixa de fora muito do cinema clássico, entre outras raridades. Mas num festival de cinema quer-se sobretudo modernices actuais, portanto, que importa? Decepcionados e ainda um pouco desconfiados, pois quem prefere uma má ideia verdadeira a uma boa falsa, não é?, tivemos que aceitar a explicação. Na verdade, a nossa crença nesta inovação espectacular dos cineastas polacos tinha sofrido logo de início algumas dificuldades em estabelecer-se, pois a imagem no início da projecção andava de cima para baixo até acertar com as legendas dentro da tela, quase que parecendo que a única coisa que importava era se as letrinhas ficavam dentro ou fora. Privilégios infindáveis do texto! Na verdade, a inovação tinha sido do nobre e ambicioso projeccionista, que sob a involuntária preocupação de pôr pelo menos as legendas dentro da janela, tinha cortado as cabeças, tanto que ficava de fora na imagem. Mas, que não restem dúvidas, mesmo que involuntária, uma pequena “inovação” de um projeccionista em Lisboa pode mudar a História do Cinema Mundial. Ah, se eu tivesse sido menos inquiridor!
Também no Grande Auditório da Culturgest pudemos assistir ao nascimento, não de uma inovação no modo de enquadrar, mas de todo um novo formato. Frederick Wiseman, incitou mesmo o público a louvar a organização, por a projecção dos seus filmes merecer tal homenagem e baptizou na hora o novo formato de WobblyScope (de wobbly: tremido). De facto, os seus filmes em 16mm e, valha a verdade, pelo menos aqui projectados em 16mm, pareciam ter Parkinson, tal a tremideira que os afectava.


Também aqui o projeccionista procurava inovar, não apenas ao estabelecer uma relação entre a idade de Wiseman e a doença que afecta tantas pessoas, num comentário sardónico pouco correcto, como sobretudo no sentido de evidenciar as dinâmicas instáveis que afectam contemporaneamente as instituições que Wiseman retrata.
Mas não se pense que os projeccionistas do Pequeno Auditório da Culturgest ficam atrás! Embora aqui seja toda uma outra escola, já não centrada nas relações dinâmicas, mas mais ambiciosa pedagogicamente no que respeita ao jogo subtractivo imagem-som. É sabido o quanto a análise das relações imagem-som constituem o zénite da cinefilia formalista e quanto o conhecimento íntimo dos filmes avançou pela subtracção à vez de um ou outro desses elementos. Foi nesse filão pedagógico mais avançado que se inseriu o projeccionista da sessão que incluía a curta-metragem documental GONG GONG CHANG SUO/IN PUBLIC de Jia Zhang Ke, aliás bem interessante e adequada a tal tipo de experimentação. É evidente que os projeccionistas mais ambiciosos lutam constantemente contra a incompreensão de uma quantidade de espectadores menos disponíveis para a aprendizagem, agarrados que estão às velhas maneiras estagnadas de ver cinema. Mas, por uma vez, este projeccionista pode contar com a credulidade generosa do público presente, a minha incluída, porventura levado ao engano pela expectativa de se tratar de uma inovação do próprio realizador, pois nunca se sabe e não se quer ficar mal. Pudemos assim assistir à inovadora projecção do filme inteiro sem som, sem por uma vez se ouvir alguém reclamar. Foi bom de ouvir!

1 comentário:

SP disse...

Ora que comentários jocosos bonitos de ler.
Gostei de saber sobre o comentário do Wiseman!

"indivíduos experientes mas isolados"
E por onde andam eles?
Sim, pergunto-me onde se encontram e como sei quem são os profissionais de qualidade...
Dêem-me um mestre, que eu disponibilizo-me a aprender, e lançar-me às salas de cinema determinada a não fazer m****!

Não sei se será o caso, mas é facto que existem profissões onde os ditos profissionais veteranos se queixam de que fazem 'uma arte esquecida' e etcetera e que 'ninguém quer saber' e que no futuro não sei quê, e que não deixam sei lá o que mais... mas depois também não querem ensinar.
Espero que isto não se passe de facto com os projeccionistas, quando as nossas projecções cada vez mais gritam a necessidade de "formação" do rapaz que lá está na cabine...
Mas é o caso, por exemplo, dos alfaiates - que publicamente se queixam de que "ninguém quer aprender" -, conhecendo eu alguém que (tendo já alguma formação na área) se ofereceu para trabalhar como aprendiz, fazendo trabalho de assistente sem qualquer remuneração, a tudo o que era alfaiate, e todos recusaram. Enfim.

Bem isto já me parece tudo um pouco off-topic, peço desculpa.

Cumprimentos!


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