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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A compensação do rosto (DocLisboa 2008 #8)




A tentação da animação para o cinema nunca terá sido maior do que hoje. Neste momento, a sofisticação da simulação tridimensional permite esbater a diferença entre imagens animadas e “reais” em quase todo o tipo de escala de planos, excepto talvez na representação do rosto humano em grande plano. Caminha assim o cinema de grandes efeitos e pirotecnia para uma presença maior do animado. É assim curioso que seja um documentário, precisamente quando confrontado com a espinhosa questão do testemunho, sobretudo com a particular dificuldade em aceitar as consequências desse testemunho, a forçar o rosto humano na direcção da animação.
Em Z32 (2008) de Avi Mograbi, o rosto do soldado que testemunha está permanentemente coberto por uma máscara digital, de início apenas um forte esbatimento que deixa intocados apenas os olhos e a boca, depois uma máscara mais sofisticada feita através da marcação de pontos no rosto, que não permite a identificação do soldado. A justificação para essa ocultação do rosto é o receio de represálias, a vingança por parte de familiares das vítimas da acção desse soldado, aquilo que é o cerne do testemunho.
Trata-se de um documentário israelita, por sinal. Já a animação VALS IM BASHIR / VALSA COM BACHIR (2008) de Ari Folman, também ela israelita e falada em hebraico, que trabalhava o mesmo problema da visibilidade do testemunho, avançava sem muita cautela em direcção ao apagamento dessa distinção entre o animado e o “real”. Talvez haja algo naquele país que os obrigue a esbater estas distinções. Os “progressos” cinematográficos têm as mais estranhas das motivações...
Avi Mograbi, de meia enfiada na cabeça, sentado na sala de sua casa, explica no início como surgiu a ideia do filme. Diz que o projecto nasceu como uma ópera e que se foi diluindo até à forma actual, em que canções de ensemble, quase cabaret, são cantadas por ele e interpretadas por uma pequeno conjunto na sala da sua própria casa.
Ao longo do filme a máscara que cobre o rosto do soldado surge cada vez mais sofisticada. Quer dizer, parece-se cada vez mais a um verdadeiro rosto de um verdadeiro homem. No entanto, trata-se de um rosto de alguém que não existe. Aliás, a cada momento de filmagem é-nos oferecido um rosto diferente, de uma pessoa diferente, inexistentes, como se afinal de vários homens, de vários soldados se tratasse.


Haverá sempre quem encontre aqui uma forma de impessoalidade proveitosa, uma vez que aquele soldado relata uma experiência que não será certamente rara. Mas era preciso o mais singular para que nos fosse oferecido o impessoal de qualquer um.
Apesar da boca e, sobretudo, dos olhos a descoberto, assim como as mãos e o resto do corpo, permanece o efeito perturbador de não nos conseguirmos aperceber das verdadeiras emoções do soldado à medida que este vai relatando as suas actividades ou tentando expressar os seus sentimentos actuais e passados sobre elas. Também a sua namorada, que acompanha o relato e vai interagindo com ele, está coberta pela sua própria máscara, que impede o seu reconhecimento e, simultaneamente, a apreensão do conjunto e subtileza das suas emoções. Há mesmo um momento em que o soldado parece prestes a chorar, mas ficamos na dúvida. Faltam-nos elementos expressivos para o distinguir claramente. Portanto, há uma estreita relação entre estas duas funções, a do reconhecimento do rosto e a da compreensão das emoções de alguém que se expressa. Não podia ser de outra maneira. Apesar da sua pequena dimensão, o rosto mais simples é a superfície mais povoada do mundo.
Este hiato que se abre no rosto mascarado parece-me a razão porque Avi Mograbi se sentiu tentado a cantar no filme. Um rosto a cantar, aliás, não só o rosto mas todo o corpo, “diz” outra coisa do que é dito pelas palavras. Não é difícil prová-lo. Basta compreender como, não apenas somos capazes de cantar músicas de que não compreendemos a letra, por desconhecimento da língua, como nos vemos obrigados enquanto cantamos a uma profusa gestualidade que não é primeiramente imitativa, mas expressiva. Também o rosto que canta, de boca aberta, tantas vezes levantado para cima, como nesta outra imagem, expressa misteriosamente algo cuja correspondência às palavras necessita de confirmação posterior. Assim sendo, o rosto de Avi Mograbi a cantar podia efectivamente, e julgo que teria essa função no filme, seja consciente ou inconscientemente, compensar a máscara que limita, que impede, o pleno testemunho do soldado, a sua expressão afectiva. Seria a compensação do rosto.
A imagem do rosto de Avi Mograbi a cantar em grande plano surge efectivamente, seja isolada, seja interrompendo o testemunho, seja episodicamente cruzada em dissolvência com a dos rostos mascarados do soldado e da namorada. No entanto, e não sei bem porquê, tal não funciona plenamente. A música até é bonita, mas a compensação não se dá. Talvez ela não fosse verdadeiramente possível. Talvez não seja possível substituir-se ao rosto de alguém, ao testemunho de alguém. E a letra do que é cantado também não ajuda. Mancha o rosto aberto, esforçado, de Avi Mograbi com alguma hipocrisia, com pruridos morais por abrigar um assassino na sua sala. Esse luxo da letra, essa soberba, é o conteúdo (que palavra horrível) do seu canto. Esse prurido, no fundo, é um alerta que nos deixa para avaliarmos a coragem do seu gesto de cineasta ao abrigar o testemunho do soldado.
O soldado, por sua vez, é, ele sim, de um tormento digno e reservado, sem o arrependimento espalhafatoso que soaria inevitavelmente falso e obsceno, mesmo que verdadeiro. Essa reserva fica bem expressa quando, sob o calor do descampado onde ocorreram os factos de que presta testemunho, os pontos que definem a máscara do seu rosto apagam-se pelo suor, e, enquanto Avi Mograbi os confirma, ele confessa: “É o meu corpo que resiste. Não se quer deixar apagar”. É também a hesitação e o silêncio da namorada no fim, o seu olhar vazio, que não nos permite saber se o mal-estar se diluiu ou se tornou irremediável naquele amor, que nos oferece a justeza indecidível do que está em causa. E é ela que desliga o filme.

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