Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Desconfianças


«Todo o cinéfilo desconfia da famigerada “relevância sociológica” (ou “política”, ou nalguns casos “cultural”). Quando, a propósito de um filme, se destaca mais a intensidade com que ele reflecte certos assuntos que estão na ordem do dia e a quantidade de
discursos que sobre eles o filme (tornado transparente) permite engatilhar. “A Turma” corre esse risco de se dar a ver como mostruário, “self service” temático de menu “urgente”: a educação, a organização da escola, o multiculturalismo, a integração e a inserção, enfim, uma agenda facilmente confundível com as colunas de opinião na maioria dos jornais e revistas.»

Luís Miguel Oliveira, Público-Ípsilon, 31.10.2008

Todo o cinéfilo desconfia...
Luís Miguel Oliveira tem certamente razão no que diz. Mas o que é mais interessante é que leve suficientemente a sério o seu papel de crítico, no sentido forte da palavra, de modo a inserir algumas observações, que poderiam ser antes as de um ombudsman ou provedor dos leitores, no próprio local da recensão crítica de um filme. E, de facto, a mesma edição em que a sua crítica é publicada dá-lhe razões de sobra. Tanto a capa como oito páginas oito (!) deste suplemento são dedicadas ao referido filme. Claro está, essas páginas estão pejadas precisamente, nos comentários e nas reportagens que incluem, das temáticas que o crítico indica. Como não vi o filme, não é por aí que posso avaliar da justeza de tal destaque. Mas não é sequer essa a questão, pois é facilmente demonstrável que não há relação alguma entre a relevância cinematográfica dos filmes, mesmo medida nos termos pobres das estrelas, e a amplitude dos destaques que são dados.
Dá-se que sou ainda, e há muito tempo, leitor deste jornal e reconheço aqui um padrão. Por um lado, a atenção desmedida a certos objectos e acontecimentos culturais; por outro, a negligência absoluta com muitos outros. Por exemplo, capa e oito páginas para o último filme de Tim Burton; capa e oito páginas para o último DocLisboa, etc. Aliás, dos festivais de Lisboa o Público tornou-se mesmo o órgão oficial. Portanto, se todo o cinéfilo desconfia... há, no entanto, porventura outras coisas mais graves de que até mesmo um cinéfilo deve desconfiar.



A saber: até que ponto os critérios editoriais não estarão a mascarar outro tipo de critérios eventualmente menos legítimos. Custa a crer que seja por livre exercício do abrangente critério jornalístico, neste caso cultural, que se fomente esta desproporção.
Ainda recentemente, e em plena orgia suicida dos mercados financeiros, estreou YELLA de Christian Petzold, um filme precisamente “sobre” capital de risco, ou seja, sobre a especulação financeira. No entanto, o filme foi descartado rapidamente pelo Público com apenas duas menções críticas negligentes. Nada que se assemelhe a uma página, quanto mais oito. Tal discrepância justificar-se-á apenas com critérios editoriais? Ou haverá outras razões, relacionadas com o funcionamento próprio dos jornais e dos meios de comunicação em geral nas nossas sociedades? Tratam-se de perguntas que faço. Não sei as respostas de antemão. Nunca fui jornalista, não conheço os seus métodos de trabalho em pormenor. Mas há sinais evidentes de uma promiscuidade cada vez maior com as agências de informação e os dossiês de imprensa, em que já custa a distinguir o jornalismo cultural da publicidade. O informercial do cinema chega à imprensa escrita em força.
É verdade que o Público até é a excepção, dado que os restantes jornais há muito se demitiram de veleidades. Por exemplo, no moribundo suplemento Actual do Expresso o cinema parece algo de que se deve ter vergonha. Mesmo Francisco Ferreira, que até já entrevistou o realizador de YELLA e lhe teceu laudas então, quando era desconhecido em Portugal, agora que o filme estreia não quis ou foi impedido de escrever sequer uma linha. Depois admirem-se que alguns filmes fiquem apenas duas semanas em cartaz. A propósito, ENTRE LES MURS é distribuído pela Midas de Pedro Borges e YELLA foi-o pela Atalanta de Paulo Branco. Veremos se a cobertura que será feita ao Festival de Cinema do Estoril será igualmente entusiasmante, já que tem um programa no mínimo relevante, mas é organizado por este último, que parece ter gerado bastantes anticorpos ultimamente, a par das suas dificuldades financeiras.



Era necessário esclarecer como acontecem estas coisas, perceber em detalhe como se forma o critério editorial. Uma coisa tão simples como a de fazer um gráfico que relacionasse o número de páginas na imprensa e as semanas em cartaz já ajudava a perceber alguma coisa. Seria um dado para ajudar a um jornalismo de investigação também centrado no jornalismo, porque não? Ou estão os meios de comunicação num ponto cego e inatacável? Como dizia o documentarista americano Frederick Wiseman, muito pouco dado a queixumes, os meios de comunicação são das instituições menos transparentes que existem. Uma das poucas recusas que terá tido, para realizar um dos seus filmes “institucionais”, foi a de um jornal americano. Isto nos EUA, onde essa transparência, ao contrário do que poderíamos ser levados a crer e como provam os seus filmes, é transversal. Imaginem por cá. Também por isso, desconfiemos... mas de tudo.

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