Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Sobre a exclusão de «Excursão» de Leonor Noivo. Definição do caso concreto

Durante a polémica decorrente da exclusão à última hora do filme «Excursão» de Leonor Noivo da programação do Doclisboa 2006, manifestaram-se incontáveis certezas. Gostaria de apresentar, comparativamente, algumas outras certezas e, no seguimento, bastantes mais dúvidas.
Perante tremenda decisão por parte da Apordoc, e quando se esperava uma intrincada questão ética (que é, aliás, o terreno enganador para onde o seu Comunicado nos remete), deparamo-nos com a simplicidade do caso concreto, bastante mal avaliado. Mas, que o caso seja simples, não quer dizer que não haja complexidade nas suas implicações. Essa é a razão maior para este texto. Outra é a de que este caso se apresenta como jurisprudência em vias de constituição, ou seja, que da sua resolução informal dependerá grandemente a avaliação dos próximos que surjam no nosso pequeno contexto.
A meu ver, o caso em polémica reveste-se, simplesmente e antes de mais, de um privilégio absurdo e precipitado, por parte da Apordoc, do direito comercial sobre o direito à criação cinematográfica. Neste sentido, uma das primeiras constatações a fazer é a de que parece haver uma gritante diferença nas alegações por parte dos intervenientes. A Empresa que motiva a exclusão, a que a Apordoc posteriormente acede, alega “segredo do negócio comercial”, quando pelo menos se suspeita que estará mais preocupada com a eventual exposição das suas práticas agressivas de venda. Já a Apordoc, alega principalmente diferenças “éticas” fundadoras para aquilo que mais aparenta ser o injustificado medo de um processo em tribunal (a que, aliás, reconhece antecipada e ligeiramente “justeza”).
Outra constatação diz respeito à introdução subtil e enganosa da temática da câmara oculta no seio desta polémica, por parte da Apordoc, retomada posteriormente por Catarina Mourão. Ainda sem ter visto o filme, mas segundo o que me foi possível apurar, tal alusão é manifestamente infundada. Mesmo que levemente baseados numa reflexão sobre a crescente pequenez das câmaras de filmar, cumpre claramente distinguir entre a condição da câmara que opera “sem ser notada” e a condição em que “não pode ser notada de todo”, que não são equivalentes. Os planos projectados provarão que a câmara era visível e que a realizadora não terá utilizado uma câmara escondida, portanto, não vale certamente a pena debruçar-nos, nestas circunstâncias, sobre a sua eventual valia. Tal seria, no mínimo, desviarmo-nos do assunto.
Também a justificação da exclusão baseada na ausência de autorização prévia é enganadora, visto que as filmagens terão decorrido, ainda segundo o que conseguimos apurar, com a autorização explicita das pessoas presentes, ou seja, os funcionários da empresa, mas também, não os esqueçamos, os excursionistas. Sem nos debruçarmos ainda sobre o que tal coisa de uma autorização prévia poderá e deverá significar, que não é assim tão óbvia quanto parece, cabe salientar que ela pode ser dada e aceite sob forma tácita. Assim, o pedido diria respeito apenas a exibição do filme. Afinal, não filmam e fotografam imensas pessoas as suas excursões? Do ponto de vista do excursionista, nada mais normal. E, certamente, não vão pedir autorização à empresa para o fazer. É então propriamente o uso destas imagens numa montagem exibida publicamente que lhe atribui um carácter perigoso ou nefasto, neste caso, para a empresa e, pelos vistos, para a Apordoc, já que não são conhecidas outras perturbações.
Mas a realizadora mostrou efectivamente o filme montado à Empresa, com vista à sua exibição pública extremamente condicionada («o filme seria visto numa única sessão e não seria comercializado, distribuído ou divulgado nas televisões», Comunicado da Realizadora). Que a apresentação do filme tenha sido apenas negada depois da montagem apresentada não é irrelevante. A Empresa pretendia participar do próprio processo de montagem, sugerindo que cenas excluir, e a isso condicionando a sua parte da autorização. Claro que as cenas a suprimir eram precisamente as «relativas ao seu processo de vendas e apresentação de produtos». Ora, ao retirar estas cenas, que constituem a matéria do “segredo do negócio”, a realizadora estaria, provavelmente, a esvaziar o filme do seu conteúdo mais verdadeiro, a saber, a exposição desse mesmo processo e do modo como decorre enquanto relevante cinematograficamente, ou seja, intelectualmente, socialmente, artisticamente. Algo que apenas nos é possível saber cinematograficamente vendo o filme. Foi esta visão que a Apordoc não permitiu, ao proteger antes de tudo o “segredo do negócio”.
Para além do mais, a realizadora salienta que «as situações filmadas são públicas e qualquer pessoa (inclusive a concorrência) pode assistir», o que coloca ainda mais em dúvida a alegação do “segredo do negócio”. Este facto da excursão se tratar de um acto público não é de somenos. Como ela diz, «o que está filmado não é mais do que aquilo que qualquer pessoa pode ver ao viajar nestas excursões», logo, seria ainda mais naturalmente prolongado pelo momento da exibição, que por sua vez lhe daria um carácter, não apenas público de forma restrita, mas partilhado socialmente. A dupla importância do momento da exibição devia também ela ser prolongada duplamente pela Apordoc, já que esta é voluntariamente em Portugal omnisciente e omnipresente pelo documentário e, simultaneamente, organizadora do festival que pretendia exibir o filme. Trata-se assim de uma dupla responsabilidade falhada.
Mas a Apordoc, ao falhar as suas responsabilidades, não foi meramente passiva. A sua acção revestiu a forma activa, passe a repetição, da exclusão de um filme efectivamente programado. Dado que a existência mais própria dos filmes é a sua exibição, essa “exclusão” configurar uma forma de “censura” não deveria escandalizar ninguém. Alguém nesta polémica definiu assim a censura: «uma interdição e restrição da livre manifestação do pensamento». Não é também disto que se trata? Como outrém salientou, «hoje em dia a censura não tem um rosto definido, único e englobante, tem vários rostos obscurecidos e dissimulados». Há efectivamente formas novas de censura, infinitamente mais sofisticadas, e o acto de as salientar não pretende apagar outras formas históricas da censura, porventura mais violentas. O facto de terem um momento histórico circunscrito mais facilmente identificável não se pode confundir com quaisquer atribuições de unicidade histórica, como se fenómenos correlativos não se manifestasse mais, não se estivessem constantemente a manifestar. Não são, por isso, particularmente felizes os pruridos com esta palavra, que encontrou neste caso mais uma infeliz encarnação.
Há ainda que esclarecer os pormenores relativos à ameaça de processo em tribunal por parte da Empresa. Uma pessoa envolvida na polémica perguntava «porque haveria a Apordoc de arcar com as despesas de um processo judicial?» Parece-me que, perante este caso, entre as suas mais dignas funções estaria precisamente, não apenas a do encargo com as despesas do processo, mas a da sua própria participação no processo. Seria uma forma privilegiada de defender concretamente o documentário. É que, embora ao direito não se limite, a política (cinematográfica, etc.) tem nele um dos seus campos de batalha. Não é vergonha, pelo contrário, e não deveria aliás assustar ninguém. Daria ao documentário não apenas dignidade jurídica como relevância pública. Como recomendou alguém muito bem, «falem com um jurista»! Isto agora, porque a «melhor forma possível e de pleno direito» do filme ser projectado era no festival que já passou. E afinal, de quantos processos se pode Wiseman gabar? Outro dos aspectos que urge esclarecer é o papel que terá tido a Culturgest, enquanto co-produtora do festival, nomeadamente, se terá também recebido a carta da Empresa e manifestado alguma posição à Direcção do festival, por exemplo, temendo a acção judicial. Não esquecendo o quão importante é a Culturgest para a existência do próprio festival, convém perceber de como se reveste a colaboração com uma tão grande entidade.
Fazendo sentido apenas antes da projecção do filme, estas são algumas notas relativas à definição do caso concreto, que me pareceu mal colocado. Em breve outras se seguirão, de carácter mais especulativo.




Excursão (2006) de Leonor Noivo
«Estava prometido um dia fantástico de diversão numa excursão de autocarro que nos levaria a visitar o país. A viagem, para maiores de 25 anos, incluía também um delicioso almoço, um lanche, ofertas, brindes e uma "demonstração de artigos para o lar e saúde". Imperdível, dizia no folheto.»
5ª, dia 14, 18h
Associação Bacalhoeiros - Rua dos Bacalhoeiros, 125 - 2º - Lisboa
com a presença da realizadora e seguido de debate moderado por Leonor Areal com a participação da Apordoc

cf. «Censura no Doclisboa» e Doc-list.

Imagem e Pensamento


Ciclo Imagem e Pensamento
Conferência de abertura por José Bragança de Miranda e Jacinto Godinho com projecção e debate dos filmes

Television delivers people (1973) 7'
de Richard Serra e Carlotta Schoolman
The way things go (1987) 30'
de Peter Fischli & David Weiss
5ª, dia 14,18h
FCSH, Torre A, 5º, Aud. 3 | Avenida de Berna, 26 C - Lisboa

copy paste suks!

«pelos vistos pelos menos vcs ainda nao começaram mesmo a pensar... deixem de postar "ideias" dos outros! copy paste suks!»

Não precisar de sensações


«Este filme evidencia o duplo aspecto da montagem que normalmente não se nota na maior parte dos filmes:
– A montagem de proximidade: os raccords entre dois planos sucessivos. Aqui, os raccords são muitas vezes muito abruptos e violentamente heterogéneos. Rossellini passa por vezes de 16mm para 35mm, de uma película para outra, do dia para a noite, etc.
– A montagem à distância: muitas vezes, aqui, dois planos muito afastados no filme, pertencendo a episódios diferentes, relacionam-se na forma e no sentido, respondendo um ao outro, rimando à distância.
O tigre e o homem
No terceiro episódio de India, o homem e o tigre (filmados em suportes diferentes) ocupam espaços e planos diferentes. Estas cenas contrariam a famosa teoria da “montagem proibida” que Bazin formulou num texto mais ou menos contemporâneo de India: “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais factores da acção, a montagem é proibida. (...) Seria inconcebível que a famosa caça à foca de Nanouk não nos mostrasse, no mesmo plano, o caçador, o buraco e depois a foca.” Numa entrevista nos Cahiers du cinéma, Rossellini justificava-se da seguinte maneira: “Se se trata de criar uma sensação, é evidente que a sensação será mais forte se mostrarmos o tigre e o homem ao mesmo tempo. Mas a minha história não precisa de sensações.”»
AAVV, «Aberturas», O olhar de Ulisses 3: A utopia do real, Porto 2001-Cinemateca Portuguesa, pp. 117-118 (orig. in India – Rossellini et les animaux, Cinémathèque Française, 1997)

India: Matri Bhumi (Roberto Rossellini) 1957, 95'
3ª, dia 5, 19h30 - Cinemateca

Generosidade ontológica

«Estudei piano quando era criança. Continuei a tocar durante bastante tempo e posso dizer que foram os universos musicais que me serviram de referência, de vias de acesso aos outros universos estéticos, porque, afinal, os universos musicais são os mais gratuitos, os que põem mais radicalmente em causa as relações intersubjectivas. Há uma generosidade ontológica na música, então...
Ela toma-nos rapidamente, a música, de repente...
É isso. Na literatura, mesmo na poesia, na artes plásticas, há sempre uma co-presença dos campos de significação, mesmo se para os desviar, para os utilizar em direcções diferentes, enquanto que a música é uma apreensão massiva dos universos de referência de que falo. É por isso que os ilustro sempre através de exemplos retirados de Debussy ou da polifonia.»

Félix Guattari, algures na revista Chimères

Alguns filmes de Dezembro

Acto da Primavera
Manoel de Oliveira
1962, 90'
3ª, dia 5, 19h
Cinemateca, Lisboa





India: Matri Bhumi
Roberto Rossellini
1957, 95'

3ª, dia 5, 19h30
Cinemateca




Naked
Mike Leigh
1993, 125'

5ª, dia 7, 19h
King, Lisboa



Forty guns
Samuel Fuller
1957, 92'

6ª, dia 8, 18h30
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa


Written in the wind
Douglas Sirk

1956, 99'

5ª, dia 14, 15h30
Cinemateca



I walked with a zombie
Jacques Tourneur
1943, 68'

5ª, dia 14, 22h

Cinemateca




Angel face
Otto Preminger
1953, 90'
6ª, dia 29, 21h30
Cinemateca

«Aqui tudo mais ou menos». Glauber em Portugal

As armas e o povo (1974-5) do Sindicato dos Trabalhadores da Produção de Cinema e Televisão; excertos de/com Glauber Rocha

«1974 – Glauber se apaixona pela actriz Juliet Berto. Vai a Lisboa. [Não existe correspondência entre 31 de Janeiro de 1974 e Junho de 1974, ou seja, do 25 de Abril.]
“Paris, junho de 74 | (...) Deus escreve direito por linhas tortas ou A. das Mortes não é um jagunço que passa do poder ao povo? Pobre do povo que precisa de heróis e eu não sou católico: Toynbee: exorcizar o demônio ocidental –> o moralismo etc. Afinal é preciso repensar o Brasil a partir de Portugal.”
“Paris, julho de 74 | (...) A crise é geral na Itália, regressiva na França, progressiva em Portugal, Espanha caindo, mas a Grécia pega fogo. É o caminho das Índias.”
“Roma, 1 de agosto de 74 | (...) As transformações de Portugal e da Grécia poderão exercer influência aí. Voltarei a qualquer momento no dia e hora necessários.”
1980 – Glauber participa na Mostra Internacional de Cinema de Veneza, onde a A idade da Terra é exibido em 2 de setembro. O filme gera polêmica e é mal recebido pela crítica. Louis Malle recebe o Leão de Veneza com Atlantic City e Glauber acusa o cineasta e a direcção do festival de fascistas, e, por sua vez, é acusado por suas posições políticas no Brasil. (...) Em entrevista ao jornalista Pedro del Picchia, de setembro/outubro, Glauber desabafa: “Saí de Veneza vomitando. Passei dois dias em Florença com uma febre alta. Estou doente em Roma. Roma está fedendo, a cidade está cheia de marginais, está suja. [...] Minha relação com o cinema acabou em Veneza. Aproveito para dar um adeus definitivo à cultura brasileira. Vocês não me verão mais. Nunca”.
“Paris, 29-30/dezembro de 1980 / Querido Celso [Amorim, diretor da Embrafilmes] / (...) Manifestei-lhe [a Aluysio Guimarães] o desejo de fundar uma Empresa de Comunicações em Paris (com ramal em Lisboa) e dar início à minha produção. (...) / Com este dinheiro, eu poderia SOBREVIVER (...) vivo pobremente e angustiado pela pobreza e por isto doente: passei 15 dias vomitando com dores terríveis e Aluysio Guimarães encontrou-me bastante abalado (...) / Não quero, não posso, não devo voltar ao Brazyl antes de 2 anos. (...) A não ser você e o Aluyzio, não tenho a quem recorrer. Embora não considere uma IMAGEM TRÁGICA – aos 42 anos encontro-me pobre, doente, perseguido e em grande FASE CRIATIVA –> daí ao enfarte, ao câncer, ao assassinato (see John Lennon). Mas como o velho Cavalcanti está aqui aos 83 anos, eu espero RESISTIR.”
1981 – Em fevereiro, viaja para Portugal, onde é recebido pelo cineasta português Manuel Carvalheiro, diretor do documentário Abecedário, que inclui longo depoimento de Glauber gravado em Paris. Vai para Sintra onde cruza com o presidente João Batista Figueiredo.
“Sintra, 23 de março de 1981. / Cacá [Diegues, cineasta], / Só hoje escrevo uma carta ao Brasil. Estou bem, numa casa ótima com Paula e as crianças, também a mãe de Paula veio passar uns dias. Estou me curando de uma sinusite que provocou uma pericardite, estive mal, poderia morrer. Mas já estou em franca recuperação, espero me curar. Assinei um contrato para escrever um roteiro e tenho como viver até junho, meados de julho, quando espero concretizar a produção. Aqui há condições, o ambiente é tranquilo, tenho alguns amigos (...) Se nada der certo, verei onde posso fazes este filme que estou criando, ou outro, em outro país, sem excluir o Brasil. / Vivo um intervalo. Fim de um ciclo psíquico e corporal. Um segundo exílio, de futuro incerto, mas caminhos mais ou menos estruturados. (...) / Não lamento nada. Este túnel chegará ao fim e nos encontraremos mesmo que seja no deserto, onde encontraremos novas soluções. (...) / Preciso que o Celso Amorim me ajude a fazer o filme aqui. É fundamental para minha saúde. Ele facilitou as coisas aqui em Portugal mas é bom você apoiar. Felizmente fofocas não nos separaram.”
Em Abril a Cinemateca exibe uma mostra dos seus filmes, interrompida por um incêndio que destrói cópias dos filmes. / Em Sintra, Glauber recebe alguns amigos, mas se mantém isolado com a família.
“Sintra 9 de abril de 1981 / Querido Celso [Amorim] / Aqui tudo mais ou menos. Estou me recuperando da pericardite e escrevendo o roteiro. (...) / A Cinemateca Portuguesa organiza a partir do dia 21 uma Perspectyva com os meus filmes, incluindo Di e A Idade.”
Glauber (...) fala de Portugal como uma redescoberta, lugar mítico de fundação e recomeço. / (...) Do desconforto parisiense ao clima ameno de Sintra, numa paisagem deslumbrante, parecia a descoberta do paraíso:
“Sintra, 26 de abril de 1981 / Querido Cacá / (...) e suponho que Diegues seja espanhol enquanto Rocha é português (...) aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro (...) as coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira-mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado... imagine que no meio da minha Kynoperzctyva 81 a Cinemateca Portuguesa pegou fogo na sede nova, destruiu todas as minhas coisas, grande esporro em Lisboa... foi um filme de Hitchcock em nitrato de 1933, A desaparecida, título português em contato explosivo com o clássico Douro faina fluvial, de Manoel de Oliveira... fantástico. vou fazer com a RAI aqui em co-produção com os portugueses o NASCIMENTO DOS DEUSES (...) é possível realizar o Ciro e Alexandre aqui, há muita cultura árabe castelos etc. (...) / Telefone 293-2xxx / CASA DAS MINAS – LARGO DO VITOR (LARGO FERREIRA DE CASTRO) / CAMINHO DO PARQUE DAS MERENDAS – SINTRA – PORTUGAL (título barroco manuelino de endereço é isso aí...) / PS – o cinema português está prometendo... sinto-me mais ou menos em casa, boa cama, boa mesa, bom clima, transromantismo...”
Glauber e todo o seu cinema é marcado por esse sentimento messiânico, um nacionalismo místico e crítico que é a base da sua política e ética. (...) No exílio português, Glauber redescobre Pessoa e a mitologia luso-brasileira. (...) Em abril, Glauber dá um longo depoimento ao ator Patrick Bauchau, que filmava com Wim Wenders em Portugal, intitulado “Sintra é um belo local para morrer”. Encontra-se com Wim Wenders e Samuel Fuller. (...) Com a saúde abalada há alguns meses, Glauber tem como diagnóstico uma pericardite vital.
“Sintra, 8 de Junho de 1981 / Querido Celso / (...) Preciso saber de tudo rapidamente porque resta-me 50 dólares. Sá da Bandeira [Presidente do Instituto Português de Cinema] não me procura, o verão começa, a vida só recomeça em Setembro. Claude está interessado, mas Sá da Bandeira ainda não se decidiu. / PRECISO DINHEIRO URGENTÍSSIMO – adiante-me sobre o contrato 2 MILHÕES e depois vamos acertar o resto até ao fim do ano. Caso a Embrafilmes não resolva meu problema, estarei definitivamente proletarizado, em suma, será difícil...”
“Sintra, 16 de julho de 1981 / Caro Tom [Luddy, produtor americano] / Estou escrevendo um novo roteiro: O destino da humanidade. Vou acabar no dia 20 de agosto. Meu produtor francês, Claude-Antoine, quer fazer o filme aqui. Portugal é bonito e poderei ter dinheiro em setembro do Instituto de Cinema Português. Embrafilme co-produz. Acho que posso fazer o filme em outubro. Aqui, no Sul, tenho sol durante Novembro e Dezembro. Preciso de 2 milhões de dólares e acho que Toscan du Plantier está interessado. Se não for possível aqui irei para Paris. O cenário do filme é uma grande cidade. (...) / Estou bem – ok. Posso trabalhar. Portugal é o Paraíso... (...) / Meu endereço para correio é Hotel Central. Sintra, Portugal. / Estou agora na Villa das Magnólias, nas montanhas. O número de telefone é xxx (Sintra). Em 15 de agosto eu irei para Quinta de Lobos. O telefone é: xxx em Sintra. Estarei aqui –> 30 de setembro. Se o filme for possível eu fico. Se não...? Posso ir para a França ou San Francisco, / de Glauber Rocha // PS –> (...) O verdadeiro título de Deus e o Diabo não é Black God and White Devil, mas God and Devil in the Land of the Sun e Terra em transe é Transi’s Earth e não Land in Anguish... / Agora é 17 de Julho. (...) O Presidente do Instituto Português de Cinema, o Sr. Sá da Bandeira, saiu! Crise com a Secretaria de Cultura. Minha produção está parada... Mas eu escrevo o roteiro. Talvez a crise esteja acabada em setembro... / Glauber” [esta é a sua última carta conhecida]
Em 6 de agosto seu estado se agrava e é internado num hospital próximo a Lisboa por complicações broncopulmonares. (...) No dia 16 de Agosto, o escritor João Ubaldo Ribeiro, passando temporada em Sintra, publica uma crónica no Globo sobre a internação, o sofrimento do amigo, as visitas de Jorge e Zélia Amado, a mobilização dos médicos, o desencontro dos diagnósticos e as movimentações das autoridades portuguesas com o caso. Compondo a cena, um Glauber fragilizado, tirando e botando o tubo de oxigénio do nariz para falar ao telefone sobre os rumos da política cultural brasileira ou “discursando no quarto sobre a Dialética da Enfermidade”. / Em meio à tragédia, Ubaldo descreve um delírio cômico de Glauber com o Ponto Frio Bonzão, em que repete a propaganda da empresa aos prantos: “O Ponto Frio Bonzão meu Deus, liquificadores, batedeiras, refrigeradores, aí meu Deus, tudo a preços módicos e suaves prestações mensais! Enceradeiras, televisores, ferros de passar”. Refrão ao qual volta de tempos a tempos “com a mesma cara trágica”. / Glauber tinha de tal forma se dissolvido no colectivo e na cultura que mesmo seus delírios são socioeconômicos, estranhos “pesadelos” de consumo. (...) Em estado de extrema gravidade é trazido de volta ao Brasil na noite do dia 20, sem acompanhamento médico ou soro. Chega ao Rio de Janeiro no dia 21 e recebe soro ainda na enfermaria do Aeroporto do Galeão. É levado para a Clínica Bambina, em Botafogo. Morre às 4 horas da manhã do dia 22 de Agosto. Glauber é velado no Parque Lage, cenário de Terra em transe, em meio a grande emoção e exaltação.

“O que faltou para Glauber?” “A possibilidade de envelhecer como um patriarca”, escreveu o cineasta português Paulo Rocha [«Rocha, c’est l’autre», in Sylvie Pierre, Glauber Rocha, Cahiers du Cinéma, 1987].»

Glauber Rocha, «Cartas», «Cronologia», Cartas ao mundo, org. Ivana Bentes, Companhia das Letras, São Paulo, 1997.


Glauber Rocha em Portugal

Glauber continua fluxo

Favela

«Uma ideia pela qual tenho apreço é a de que os refugiados, e fenómenos similares, constituem hoje uma espécie de laboratório de poder, que serve para ver até que ponto uma situação pode ser levada ao extremo. (...) Quando a Segurança se torna a categoria política central quase única, então tudo se modifica, porque não nos devemos esquecer que Segurança não significa a prevenção da desordem. O paradigma securitário foi inventado, ao invés, para gerir a desordem. (...) Toda esta situação, no momento em que a Segurança se torna o paradigma central, são modos ou laboratórios para ver até quando e até que ponto pode uma determinada situação ser levada ao extremo. De certa maneira, é o seguimento da ideia de Goebbels de que “a política é a arte de tornar possível o impossível”. Os campos são laboratórios para ver até que ponto se pode levar uma situação extrema. Mas, se assim é, então o problema não é, por exemplo no que diz respeito ao refugiado, o como podemos tentar inscrevê-los ou integrá-los, parte deles ou todos, na sociedade. A situação é tão extrema que este já não é um problema interessante. Por isso, parece-me que um modo interessante de ver este fenómeno seria o de ver também se é possível considerá-los como contra-laboratórios. (...) Estive no Brasil muito recentemente e acontece que visitei as favelas no Rio de Janeiro. São um fenómeno similar. Claro que não são o mesmo fenómeno que os refugiados. Mas há também lá algo de similar. E as favelas estão na cidade, não estão separadas. Portanto, são um fenómeno diferente. As favelas estão habitualmente nas zonas mais bonitas das cidades, nas colinas. Então, eu estava com a pessoa que me fazia de guia à favela, e tive uma súbita e imediata impressão. Tínhamos visto os horríveis edifícios modernos. No Rio de Janeiro, a arquitectura moderna é mesmo muito pobre, horrível. Grandes arranha-céus (...) Então, eu disse-lhe: “ouve, o problema não está aqui [na favela], está ali”... Espero que compreendam a que nível estou a falar. A favela é um lugar interessante, porque não existe propriedade lá, e claro, não se paga renda, e não existe polícia. É uma cidade, porque uma favela como a Rocinha no Rio tem 400.000 habitantes. Logo, é uma cidade sem direito de propriedade, em que não se paga renda, e onde não existe polícia. É muito interessante. É um modelo da cidade do futuro... Estou a brincar... Assim, a questão que queria colocar era a de se conseguiríamos ver estes fenómenos também como contra-laboratórios?

(...) tratando-se de um laboratório, estará disposto a especular, muito sucintamente, sobre como se transformaria em acção o conhecimento aí reunido? [interpelação de um participante]
Tenho algumas objecções acerca da distinção entre conhecimento e acção ..., porque o que se tem quando se
está não é, na verdade, uma experiência cognitiva, nem apenas uma praxis, movemo-nos numa espécie de indistinção, portanto... Tenho sempre a tendência para achar que esse modo de colocar o problema não obtém respostas e não é, talvez, o verdadeiro.»

Giorgio Agamben, transcrição parcial (0:44:25–0:50:03 e 1:33:25–1:34:47) do vídeo da conferência de Zygmunt Baumann, in «Archipelago of Exception Conference», 11 de Novembro, 2005, CCCB Barcelona

A palavra sensível

Porta-vozes
«São corpos porta-vozes; atestam o que diz o texto e a potência comum da sua escrita. A boca ganha aqui um importância assinalável. O que vemos é antes de mais o trabalho da boca que articula cada sílaba, cada uma das palavras da querela. A maneira como os camponeses sobre-articulam e fazem ressoar as alcunhas e as injúrias do clã contrário. Mas também que essa articulação deve tornar cada uma das sílabas tão sensoriais como os blocos de gelo, a ricota ou o odor das fogueiras de louros (feu de lauriers) de que elas falam. À tradicional mimética expressiva opõe-se uma espécie de equivalência ou igualdade de intensidade. (...) a boca deve a cada vez fazer o esforço de manter a palavra à altura da experiência, à altura comunista da língua. É para o que servem, creio, esse olhos tão frequentemente caídos num caderno que não parecem ler realmente.
Isto supõe uma intervenção única sobre o texto, que consiste não em acrescentar-lhe ou retirar-lhe palavras, mas em endireitá-lo instaurando uma disposição lírica. Danièlle Huillet, com efeito, fez da exposição contínua em prosa de Vittorini um poema em verso livre ou em versículos, que deve ressoar um pouco como uma tradução de Sófocles por Hölderlin ou de Ésquilo por Claudel. É preciso então que a voz se adapte às exigências do poema: exigência de relance perpétuo da voz, de adesão a cada palavra, de igualdade entre intensidade da experiência dita e intensidade verbal.»

Natureza
«A nossa atenção reparte-se entre as coisas ditas pelos lábios daquele que fala e esses acontecimentos de luz que se passam sobre a sua cabeça ou ao lado sobre as folhas mortas. Existem todos estes ruídos que não cessam de se misturar às palavras ou de pontuar os silêncios: cantos de pássaros, zumbidos de insectos, canto do galo ao longe, etc. É o que espanta sempre num filme dos Straub: começa um pouco como em muitos filmes, com pequenos pássaros e ruídos de água. Mas nos filmes normais, trata-se apenas de dar a atmosfera de euforia que deve presidir à visão do filme: em suma, uma captatio benevolentiae sensível. Nos Straub, pelo contrário, continua, nunca pára. A natureza, com efeito, é coisa diferente de um repertório de efeitos euforisantes. É uma potência física, metafísica e mitológica.
(...) A natureza é o que não cessa, mas também o que sem cessar apaga os traços.»

Estar salvo
«História de salvação (...). Nos Straub, um jogo mais complexo se instaura em torno da cantata [de Bach] e da palavra da promessa. À promessa divina continuam a opor uma promessa humana e uma promessa que já se efectuou. Não se deve dizer, como na cantata: aquele que crê será salvo. Deve dizer-se: aquele que crê está salvo. Está salvo na eternidade de um aqui e agora da experiência mantida, tornada palavra de vida. O movimento do filme conduz-nos assim do processo a uma nova eucaristia, à afirmação de uma salvação que já lá está e cuja potência se afirma, no crescendo final, passando pela evocação das fogueiras de louros a essa grande panorâmica ascensional que nos deixa na abertura dos elementos reconciliados e de um comunismo elevado a uma dimensão de eternidade.»

Sobre Operai, contadini (2001) de Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub: Jacques Rancière, «La parole sensible», in Cinéma, n.º 5, 2003, pp. 73. 77. 78.


_6ª, dia 17, 21h30 - Cinemateca

«Quero ver o "não compreendo"». Uma conversa com Nobuhiro Suwa



Nobuhiro Suwa é um importante realizador contemporâneo, autor de M/other (1999), filme grandioso por entre os verdadeiramente marcantes da última década. Aquando da retrospectiva da sua obra no IndieLisboa em Abril passado, tivemos a possibilidade de conversar com ele. Agora que um filme seu volta a passar em Lisboa (o recente ciclo Novo Cinema do Sol Nascente na Cinemateca esqueceu-o completamente), publicamos esta conversa afável, que foi, no entanto, limitada pelo precário inglês dos interlocutores.

ANDRÉ DIAS — Estava a falar de como foi difícil para si começar a fazer filmes...
NOBUHIRO SUWA — Os outros filmes japoneses eram muito maus, não estávamos satisfeitos. Então quisemos fazer os nossos filmes sozinhos. Esta foi a geração independente de Tóquio, Japão. Optámos por fazer filmes em Super 8. Por exemplo, [Kiyoshi] Kurosawa, Aoyama... Estavam sempre a fazer filmes de Super 8 sozinhos. Os estúdios estavam quase falidos nessa altura. Foi a nova vaga japonesa... Estávamos sempre contra os filmes japoneses. Ozu, Mizoguchi, eram do passado.
— Conheceu primeiro os filmes americanos dos anos 70 e depois os europeus?
— Depois conheci os filmes experimentais. Jonas Mekas, Stan Brackage e muitos outros. Quando vi os filmes experimentais, senti que podia fazer um filme, sozinho. Então, arranjei uma câmara Super 8 e fiz um filme pessoal. Foi o começo da minha carreira.
— Acha que, por exemplo, o som cortado em H story ou a saída dos planos, os flashes, em M/Other, são coisas que vêm do cinema experimental?
— Penso que sim. Gosto do lado material das imagens. Os flashes acontecem no final do filme. Estávamos sempre a pensar na improvisação e que representar era errado. Assim, o filme acaba. É o que acontece com os flashes. Mas adoro as imagens, o facto de desaparecerem. Consigo sentir a matéria do filme.
— É isso que é interessante. São filmes narrativos, mas depois há este uso radical de técnicas que vêm do cinema experimental, ou do moderno...
— Sim, no início eu adorava o cinema experimental. Mas nessa altura a situação do cinema experimental estava um pouco a mudar. No Japão há uma espécie de cinemateca de cinema experimental chamada Fórum da Imagem, que está sempre a projectar filmes experimentais. Mas havia uma separação completa entre o público do cinema e o público dos filmes experimentais. Era uma comunidade pequena, que me parecia um pouco fechada. Por outro lado, o cinema tem o poder de mover a paixão das audiências… Nas salas de cinema, acontece as pessoas chorarem, ficarem zangadas ou rirem-se. Mas no museu, quando vêem arte moderna, dizem «oh, muito interessante», «é bom» ou «mau», mas não choram nem riem. O cinema tem o poder de comover as pessoas. Gosto desse tipo de poder.
— Gilles Deleuze diz que é uma função da imagem fazer as pessoas chorar. Se as pessoas vêm Griffith – Broken Blossoms – e não choram, alguma coisa está errada.
— Gilles Deleuze também disse, ao falar do cinema moderno – de Godard, por exemplo – que a montagem é interrompida, que não é contínua. O que significa isto? É muito difícil de explicar em inglês. Este tipo de montagem faz as pessoas acreditar na realidade deste mundo. Porque o cinema clássico perdeu confiança no mundo. Esta ideia tocou-me muito.
Quando filmei M/Other não queria usar os flashes. Não sei porquê. Mas depois li o livro de Deleuze e percebi o que tinha feito.
— Para além dos flashes, usa bastante os negros, que duram um bocado, às vezes a separar sequências. Quando está a montar, como é que decide usar o negro, o tempo que dura, a música? É um processo intuitivo?
— Ponho a passar. Carrego no botão do play, vejo as imagens, e sinto a tensão... Mas no início, quando fiz 2 Duo, que é improvisado, houve um plano que ficou muito longo. Quando o rapaz e a rapariga se encontram no café e o rapaz está de costas para a imagem. Foi uma improvisação, e ficou com quase dez minutos. Para mim, é demasiado longo. Mas não tenho outro take. Só fizemos um take. Por isso, tenho de o cortar. Mas como ligá-lo? Se cortar directamente fica um jump-shot. Então uso um pequeno cartão negro... Não disfarcei o corte. Normalmente, a montagem é contínua, suave. É a ilusão do cinema. Gilles Deleuze disse que o cinema cria uma ilusão, e as pessoas querem acreditar na ilusão. E é por isso que perderam a relação com a realidade. Eu quero mostrar a montagem. Isto é montagem, não é contínuo.
— Não a transparência, mas mostrar que é um filme. Faz isso para criar uma distância? Não quer que o público se identifique com o filme? Quer que haja emoção, mas...
— Quero que as pessoas se identifiquem, mas com algum recuo. Não completamente distanciadas porque é muito cruel. Em 2 Duo há constantemente um movimento passional. Mas não se esqueçam de vocês, é o que eu quero dizer. Porque isto é cinema, não é a realidade. São apenas imagens. Quero que o público compreenda aquela realidade. Isto é só cinema, é um filme, são imagens.
— Disse também que o negro entre as sequências serve para pensar. Mas, ao ver M/Other, tive a reacção oposta. Estava a pensar enquanto os actores representavam, e quando chegavam os negros ficava como que suspenso. São muito poderosos os momentos de negro! Porque também usa um pouco de música, instrumentos de cordas, e fica mesmo abstracto.
— Há uma espécie de ruído no início...
— Mas acha que esse tempo de negro serve para pensar?
— Para mim, é como a música. A cena está-se a desenrolar e então o negro é como uma bênção. E depois acontece outra coisa. Para mim, é como compor música. O cinema é tempo. Portanto, é semelhante à música. A música é tempo e o cinema é tempo. Há o movimento da paixão. O negro é uma espécie de melodia.
M/Other tem imensos negros, H Story já tem menos; continua a usá-los?
— Sim, H Story tem um pouco menos. Mas em Un couple parfait volto a usar... Quando foi a projecção em Cannes de M/Other, a meio do filme há um longo negro, de 30 ou 40 segundos, e então as pessoas olhavam para a cabine de projecção sem perceberem o que é que se passava. Foi divertido.
— Ao ver M/Other lembrei-me de Ozu, na cena em que Aki chega e pai e filho estão a jogar à bola. Por outro lado, a improvisação corpo a corpo lembra um pouco Cassavetes, H Story está ligado a Resnais, e ainda se fala de Antonioni a propósito de
Un couple parfait. Isso é explícito? Há algum referência a Antonioni em Un couple parfait?
— Não.

— É só porque eles também são italianos! E há ainda Kramer. Quem é que se segue?
— (risos.) Não sei. Mas não acho que seja influenciado por Antonioni, porque quando era novo não vi os filmes dele em Tóquio… Mais Rosselini... Americanos dos anos 70, cinema experimental, e depois a Nouvelle Vague.
— Disse algures que lhe deram coragem para trabalhar. Godard e os outros adoravam os clássicos americanos, Hitchcock, Hawks, etc., e há uma frase de Godard em que ele diz que quando sentiu a vontade, a urgência de fazer filmes, era já num tempo em que não os podia fazer como se fazia antes. Sente o mesmo em relação ao cinema moderno? Acha que há uma continuidade entre Resnais, por exemplo, e os seus filmes? Ou acha que o cinema mudou realmente?
— Hum, o que é que quer dizer? Se há uma possibilidade de continuar?
— Se acha que está a continuar o cinema que se fazia nos anos 60, 70, 80, os filmes com que cresceu, que lhe deram a vontade de fazer também filmes.
— Por exemplo, quando Godard fez A bout de souffle, tentou fazer um filme americano dos anos 50, mas ao mesmo tempo sentiu que era impossível fazer esse tipo de filme naquela altura.
— Sente o mesmo?
— Sim, quase. Quase, mas... (longa pausa) quando Howard Hawks fez os seus filmes terá sentido a mesma coisa. Já com Godard, a situação tinha-se alterado, o tempo tinha passado, mas ele recriou o valor do cinema anterior. Eu sinto quase o mesmo, que não posso fazer um filme como Resnais ou Howard Hawks, Rosselini, ou dos anos 50. É impossível, acho. E ao mesmo tempo, não é necessário. Porque o filme pertence ao passado, não ao agora. O momento de agora é o que é importante para mim. Daqui a muitos anos, daqui a 10 ou 20, quando as pessoas virem o meu filme M/Other não sei o que vão sentir. Sentirão o que sentirem. Não sei da continuidade ou não, mas a história é sempre assim.
— Não está a trabalhar uma herança, só os seus filmes. No entanto, fez um remake e falam de si como o realizador japonês com uma maior ligação ao cinema europeu.
— Os meus filmes?
— «Várias vezes referido como o mais europeu dos cineastas japoneses... »
— Oh, isso é sobre mim?! (risos.) Não ligo a isso.
— Gostava que tentasse explicar melhor o trabalho de improvisação que faz com os actores. É que “improvisação” pode querer dizer muitas coisas. Tomemos M/Other como exemplo. Tem apenas umas linhas, não tem guião, mas já escolheu os actores. Pode descrever o processo de trabalho com eles?
— No início, tinha só uma página com a história, a situação apenas, um homem e uma mulher que vivem juntos mas não são casados, uma coisa desse género, só uma sinopse. Quando convido um actor, conto-lhe a história e o modo como a quero criar, e depois discutimos. Quando volto para casa, escrevo mais algumas linhas e então mostro à actriz e ao actor e discutimos.
— Já conhecia os actores de M/Other? Eram amigos seus, próximos?
— Não. Ele é um actor muito famoso. Era uma espécie de ídolo quando era novo, fez muitos filmes dos estúdios.
— E eles adaptam-se ao seu estilo, à improvisação?
— Sim. Mas ele tinha muito medo. Não tinha este tipo de experiência, e então estava muito nervoso. De modo que tive de fazer um ensaio, porque ele queria saber o que acontecia, queria conhecer o meu estilo. Mas em Un couple parfait não precisei de ensaios, porque a Valeria [Bruni Tedeschi] não tinha medo disso, e o Bruno [Todeschini] também não.
— Portanto, sem ensaios e com poucos dias de filmagem?
— Onze dias, sim. A Caroline Charpentier [directora de fotografia
] é que diz: a maior parte dos filmes levam pouco tempo a preparar e muito a filmar, mas os do Suwa levam muito tempo a preparar e pouco a filmar. É economia.
— Mas o que é que prepara em relação aos actores?
— Em M/Other passámos muito tempo a ensaiar. Por exemplo, quando o homem e a mulher se encontram... vamos ensaiar uma hora antes de filmar. Sem guião. A história no início é eles viverem juntos. Mas o que é que se passou um ano antes, como é que viviam? Vamos ensaiar o que aconteceu nessa altura, pela experiência.
M/Other parece muito ensaiado, quase como no teatro, mas sem ser excessivo. A actriz que faz de Aki estava muito bem.
— Sim, muito bem.
— Alguém disse que você descreve muitas vezes o seu método, mas que não percebemos o que o faz funcionar. Talvez consiga fazer passar a sensação que tem sobre a cena aos actores e isso funcione. O que é que faz quando eles estão a ensaiar, ou quando está a filmar? Dá indicações ou está a controlar a câmara?
— Enquanto filmo? Hum... Não digo coisas muito detalhadas, por exemplo, “mova-se nesta direcção”, ou “por favor, diga esta palavra”. Se pedir isso ao actor, ele vai ficar sempre com essa memória, “tenho de fazer desta maneira” ou “tenho de dizer esta palavra”, e não é livre. Por isso digo só coisas como “mais alto” ou...
— Esse tipo de abordagem tem a ver com a relação entre ficção e documentário. Isto é um filme, mas ao mesmo tempo dá um pouco de realidade. Como é que, nos seus filmes, a ficção e a realidade se ligam? Que ficção é que quer apresentar, que realidade?
— Interessam-me realmente os outros, o outro... porque...
— As outras pessoas?
— Não é bem as outras pessoas.
— A dualidade?
— A dualidade. Outro é… Emmanuel Lévinas diz que o rosto é o nosso Outro. O Outro é, por exemplo, o «não compreendo». Se crio um guião, se tenho de escrever uma fala, por exemplo: a Aki diz «amo-te», e o homem diz «eu também»... Não sei, escrevo o diálogo, mas... Eles estão os dois dentro da minha cabeça. Portanto, não é um diálogo. Diálogo é quando gritam um com o outro, é o «não nos compreendemos um ao outro». Se sou eu a escrever o diálogo, é um monólogo. Não é isso que me interessa. Então peço-lhes… Quero ver essa coisa do «não compreendo». Não sei porque é que a Aki disse aquilo. Às vezes fico surpreendido, outras não percebo. É por isso que, quando fiz o meu primeiro filme, 2 Duo, entrevistei o actor. Porque não percebo o que o actor fez. Por exemplo, porque é que o Kei ficou zangado e atirou com a camisa. Não percebi, por isso quis perguntar-lhe. A entrevista é isso, é essa a razão de ter feito a entrevista com o actor e a actriz. Interessa-me realmente a relação entre os outros.
— É essa a realidade na ficção?
— No início, queria mesmo alguma realidade. Por exemplo, em 2 Duo. Porque quando via os filmes japoneses, as falas eram literatura, palavra escrita, não eram a vida real. Mas agora o que eu sinto está a mudar, porque o cinema não é a realidade... o cinema é ficção, sempre ficção. O documentário também, o documentário também tem ficção, não é? Portanto, para mim, a improvisação não significa apenas a realidade. Talvez seja por isso que escolhi a improvisação, às vezes penso nisso, talvez tenha sido pelos outros. O que são os outros? É isso que é importante para mim, não a realidade.
— Mas não lhe parece que o outro se pode expressar de várias maneiras? Este é o seu método mas, por exemplo, Bresson utiliza...
— Bresson utiliza o caminho oposto, mas há qualquer coisa verdadeira. As falas dele não são reais, nem naturais. E a representação também não. Há uma diferença entre naturalismo e realidade. Os filmes de Bresson têm um tipo de realidade, apesar de não serem nada naturais. Penso nisso. Quero criar algo de real, mas não quero dar a ilusão do natural. Isso não é importante.
— Para acabar, pode dizer porque é que escreveu um texto sobre Pedro Costa?
— Porque alguém me pediu! (risos.) Não sou escritor, nem crítico, não escrevo habitualmente sobre cinema. Mas às vezes tento, porque escrever é um modo de pensar logicamente. Queria saber o que eu próprio sentia acerca do Pedro. O filme dele tocou-me muito, mas não sei porquê, não é uma coisa lógica. Por isso, às vezes tento escrever. Se escrever, compreendo o que sinto. Queria mesmo saber o que aconteceu quando vi No quarto da Vanda. Por isso é que tentei escrever. E, ao mesmo tempo, é uma amizade, é um amigo.


Un couple parfait (2005)
5ª, dia 16, 19h – Instituto Franco-Português, Lisboa

(Gostaria de agradecer ao IndieLisboa, na pessoa do Nuno Sena, pela extrema gentileza que manifestou na concretização desta conversa. A presença de dois realizadores fundamentais do cinema contemporâneo Jia Zhangke e o próprio Suwa em dois anos consecutivos, deixa uma expectativa feliz quanto à continuação do festival. E também, mais uma vez, à Joana Frazão, pela atenciosa revisão.)

«Camera Lucida». Nobuhiro Suwa sobre Pedro Costa


No quarto da Vanda (2002) de Pedro Costa

«Pediram-me uma vez para escrever sobre o Pedro Costa, mas recusei, dizendo: “Em primeiro lugar, o Pedro é um dos meus poucos amigos íntimos, e é difícil falar sobre um amigo, dado que a amizade é uma experiência pessoal.” Na realidade, a verdadeira razão para ter recusado a proposta foi que as minhas palavras dificilmente conseguiriam chegar à sua obra, ainda hoje não conseguem. Mesmo agora não sou capaz de discutir a obra dele, enquanto que os filmes, posso vê-los cem vezes seguidas. No Quarto da Vanda é uma experiência inesgotável, por mais vezes que o veja, e mesmo assim seria incapaz de descrever com exactidão o que é essa experiência. As nossas obras são criadas usando métodos completamente diferentes: enquanto que eu escolhi trabalhar com actores profissionais, o Pedro escolheu apontar a câmara a pessoas que vivem as suas vidas. Passou dois anos com uma pequena câmara DV, a filmar No Quarto da Vanda, e um ano a montar as quase 130 horas de gravações. Eu, pelo contrário, acabei de filmar o meu último filme em apenas treze dias. Quando nos conhecemos, disse ao Pedro que, ao fazer um filme, tinha de me esforçar muito para me ligar à equipa. Então ele disse-me: “Gasto o tempo a trabalhar nos meus filmes. Odeio trabalhar com equipa.” O modo como pronunciou a palavra “odeio” impressionou-me. Fez-me pensar o quão magoado devia ter ficado com o sistema tradicional de fazer filmes. Disseram-me que Ossos foi feito com uma equipa de filmagens. A Vanda estava muito provavelmente rodeada por uma enorme multidão: directores de fotografia, engenheiros de som, electricistas com imenso equipamento, camiões carregados de maquinaria e condutores e aqueles que tratam do catering para a equipa toda. Os elementos de uma tal equipa deviam estar apenas interessados nas suas próprias tarefas. É preciso muita planificação para conseguir que um tal número de pessoas trabalhem juntas eficientemente. Os mapas para hoje e amanhã estão todos fixados. A tarefa de cada um está ligada à de um outro e todos contribuem para a conclusão do filme. O tempo e as despesas são cuidadosamente calculados. Uma alteração no calendário reflecte-se imediatamente no orçamento. Há um poderoso sistema de fazer filmes posto em movimento. Se o mandassem pôr-se à frente de uma câmara, qualquer ser humano estremeceria com medo de um tal sistema. Não foi permitido à Vanda comportar-se como gostaria. Nem ao realizador, já agora. O Pedro escolheu afastar-se deste sistema tradicional de fazer filmes. Escolheu fazer filmes de um modo que regressa ao tempo da “vida humana”, um tempo que não é pontuado pelo número de dias disponíveis para produção, pelo início ou fim das filmagens.
No entanto, por muito pequena que seja uma câmara digital, há sempre uma câmara. A câmara separa o realizador das pessoas filmadas, colocando-as em frente à câmara e ao realizador deste lado. É um sistema que não permite a nenhum dos lados passar para o outro. Logo, não pode, pela sua natureza, escapar a uma estrutura de exploração desequilibrada. O mundo está dividido em dois. Quando uma imagem é inserida neste mundo dividido, cria-se uma janela deste lado do muro que abre para o outro. A janela funciona como um espelho mágico que deixa o nosso olhar passar vindo deste lado, mas sem deixar que os outros olhem do lado oposto. Quando vemos um filme, estamos atrás da câmara, como o realizador. Estamos protegidos do risco de sermos violados pela realidade em frente à câmara. Escolhi trabalhar com actores porque os vejo como seres que precisam, nas suas vidas, de estar em frente à câmara. Quando as pessoas que filmo são actores não-profissionais vivendo as suas próprias vidas, a câmara priva-as da sua vida sem lhes dar nada em troca. Mas dou-me conta, através das imagens de No Quarto da Vanda, que de facto é permitido passar deste lado para o outro, e na sequência disso materializa-se um relação, livre da estrutura de poder da câmara. Nunca pensei que a câmara pudesse estabelecer uma relação de não-exploração como as pessoas que filma – isso parece inatingível. O que raio torna isto possível em No Quarto da Vanda? E porquê só em No Quarto da Vanda? Para responder a estas questões, tenho de continuar a escrever…
Usei atrás a palavra “livre”. Mas as imagens de No Quarto da Vanda parecem ser rigorosamente controladas. A câmara está sempre colocada num tripé e nunca se move. Se isto fosse feito de acordo com o juízo estético do autor, as imagens podiam ser controladas pelo autor, e a personagem seria então inscrita num espaço controlado. Se assim fosse, porque não haveria ele de se aproximar das pessoas com uma câmara à mão e dizer: “agora podes mover-te livremente. Eu sigo-te com a minha câmara”? Não seria esta uma relação mais livre? Nos documentários, com efeito, o enquadramento está sempre pronto para a ocorrência de acontecimentos inesperados. A câmara tem de estar sempre pronta a mover-se quando necessário. Se um acidente excepcional acontece fora do quadro, a câmara mover-se-á sem hesitação. As imagens captadas desta forma estão de algum modo abertas à realidade. Como o enquadramento é transitório e aberto nos documentários, estamos espacialmente conscientes de que a realidade se estende para o fora-de-campo. Ao lembrarmo-nos constantemente de que os documentários só captam uma parte da realidade, procuramos dar a ideia de que a realidade se estende para fora do quadro, ou seja, para fora do cinema. As imagens documentais dependem da realidade de haver um objecto perante a câmara que valha a pena filmar. No Quarto da Vanda foi também feito à maneira de um documentário. Há um bairro que está a ser demolido, e onde os residentes levam as suas vidas humildes. A existência deste bairro é uma história que será apagada da História. Existem objectos para os quais a câmara deve ser apontada. Mas as imagens de No Quarto da Vanda não se sustentam nestas realidades. Rejeitam o realismo irreflectido segundo o qual algo de significativo só pode ser captado a partir do momento em que tiver uma câmara apontada. Não há sinal de que um acidente ou evento fortuito irrompa no campo de visão, e o enquadramento rigidamente construído forma espaços autónomos. Os sons que se ouvem por trás da parede trazem a vastidão do mundo exterior para o campo de visão, mas as imagens não indicam prontamente o mundo por trás da parede. Como são usados tempos de exposição extremamente curtos, as regiões mais sombrias da imagem afundam-se na escuridão, privando até o nosso olhar da liberdade de movimento. As imagens nunca estão descentradas de um modo que permita ao espectador reconstruí-las tão livremente quanto possa, como se dizendo: “olha só como quiseres!”. Estão antes tão centradas que quase funcionam, poderia dizer, como se comandassem o olhar. Para além disso, são extremamente belas. Mas se esse modo de filmar só servisse para criar beleza, bastar-nos-ia elogiar Pedro Costa pelo seu talento criativo. Costa não precisaria de ter rompido com o sistema tradicional de equipa para se afastar sozinho. Esta beleza não serve simplesmente para satisfazer só a estética do realizador.
O Pedro montou a câmara sozinho. Quando uma câmara é colocada entre pessoas, provoca muitas relações diferentes. Através da violência da câmara, as pessoas que estão de um lado podem magoar as que estão do outro e torná-las infelizes. Algumas podem sentir-se envergonhadas por se exporem em frente à câmara, mas podem ainda pensar que se podem colocar em risco em troca de dinheiro. Contudo, ocasionalmente, existem outras que dão por si numa relação feliz, na qual as pessoas de ambos os lados podem trabalhar juntas. De qualquer modo, continua a existir uma relação assimétrica entre aquele que está atrás da câmara e o outro para lá dela: o Pedro é um ser que vê e a Vanda um ser que é visto. Como os actores são sempre seres vistos, estão proibidos de devolver o olhar e obrigados a ignorar a câmara, ou seja, a um outro tipo de olhar. Aceitar isto e comportar-se como se a câmara não estivesse de todo lá é representar. Será que esta definição tornaria também a Vanda num ser que representa? Há uma câmara, mas não é uma câmara qualquer. É uma câmara nas mães do Pedro. A Vanda simplesmente ignora a sua presença. Será porque se acostumou a ela? Será possível que tenha passado tanto tempo a filmar que se habituou à câmara e se esqueceu completamente da sua presença? Apesar de não estar a representar, deve estar consciente da presença do Pedro, mas ignora-a. Neste sentido, está a representar, poder-se-ia dizer, e isso seria ficção. Mas a tosse da Vanda, por exemplo, não pertence a mais ninguém senão a ela. É sua. Quando ela tosse, a imagem do seu corpo mina a separação entre filmar e ser filmado. Cristaliza entre o ser coagido e o comportar-se livremente, entre o representar e o ser do modo que ela é. Tem de tossir. É tão livre que vomita na sua cama enquanto tosse. Não está a representar para ninguém. Não tem desejo algum de exibir o seu ser habitual em frente à câmara. Mas também não é o que é, esquecendo a presença da câmara. Posso talvez dizer que ela participa no fazer do filme, em conspiração com a câmara do Pedro, ou que confessa não ter nada a esconder da câmara. Tal como diria aos seus vizinhos “se quiseres aparecer, aparece em qualquer altura. Estou sempre aqui”, ela deixa um homem que quer filmar intrometer-se, oferece-lhe a sua própria imagem e arranja um lugar para ele e para a sua câmara. O Pedro não está lá só para trazer a imagem de volta para a mesa de montagem; ao invés, continua lá com a sua câmara, tomando a atitude de ficar lá porque quer, a atitude de um homem normal. Também parece dizer: “Eu também não tenho nada a esconder.” Compõe a imagem dela através do seu próprio olhar e devolve-a a ela. A Vanda existe com ou sem uma câmara, mas a sua imagem não requer nem precisa que nós imaginemos ou nos perguntemos como ela é na realidade. O Pedro não tirou partido da realidade para fabricar um mundo pseudo-real; nem tentou preservar alguns fragmentos intactos da vida real. A Vanda significa tanto a Vanda como o Pedro, imagens cristalizadas através da interacção com o olhar do espectador. Ela é a resistência contra a separação entre os dois olhares. Ela é a representação de novos olhares que contemplam o modo como as pessoas podem viver em conjunto… A Vanda é agora. Ela só está aqui agora…
Meu querido Pedro, queria escrever sobre o espírito do teu cinema com toda a minha compaixão por ti. Infelizmente a minha recensão não foi inteiramente bem sucedida. Espero que este texto não interfira com a imaginação daqueles que viram os teus filmes. Vou reflectir sobre esta questão falhada no meu cinema. Conto que vás ver o meu próximo filme. Espero que gostes.
»

Nobuhiro Suwa, «Camera lucida», [trad. da versão inglesa], in Pedro Costa. Film Retrospective in Sendai 2005, Mediateca de Sendai (Japão), 2005, pp. 44-48; publicado anteriormente em Textos de apoio. Doc’s Kingdom – Seminário Internacional sobre Cinema Documental, org. Joana Frazão, AporDoc, Serpa, 2006

Juventude em marcha (2006) de Pedro Costa
5ª, dia 16, 21h30 - Cinemateca
5ª, dia 23, 21h30 – S. Jorge, Lisboa

Por contemplação


Kyôko Kagawa (Osan) e Kazuo Hasegawa (Mohei) em Chikamatsu monogatari/Os amantes crucificados (1954) de Kenji Mizoguchi

para a Ana, sempre

Por contemplação nasce um amor. (Mas não “olhos nos olhos”. Ou então, é outra coisa que nos olhos se intui, bem para lá de um interior pessoal). Em Os amantes crucificados de Kenji Mizoguchi, é por Osan (a mulher) contemplar a passagem dos amantes adúlteros, condenados à crucificação (castigo humilhante a que diz preferir a morte), que precipita uma série aparentemente nefasta de acontecimentos. Nessa espiral envolve Mohei (o homem), com um pedido de generosidade um pouco excessiva. Precisamente, toda a generosidade é, por natureza, excessiva num mundo de amos e servos, como hoje. Que contemplou ela, para o envolver assim numa libertação que coincidirá, sem a ela de todo se reduzir, com a morte deles? Contemplou a injustiça, a que cerca os afectos, a económica, a injustiça toda ela política do seu mundo. Contemplou a impossibilidade de assim viver.

Não se trata aqui da consciência ou inconsciência do seu gesto, e é bem pequeno o papel do acaso nas desgraças que se sucedem. O amor entre Osan e Mohei, que nutriam um pelo outro quase que uma mera estima (mas mesmo esta, composta de quê? intuindo o quê?), o amor dos amantes que serão crucificados mas que estão salvos, nasce desta simples contemplação. Assim se constrói o amor à posteriori, na insuperável vertigem introduzida pela contemplação (para além da mera e, no entanto, necessária concorrência das circunstâncias). À luz deste filme, não pode o amor ser concebido apenas como uma coisa comezinha, que se passa entre dois seres no segredo da alcova ou do lar doce lar. O amor convoca imensas coisas, não apenas miudezas. E não é assim que as pessoas se impedem de lançar-se ao mar, ou de lançar os outros ao mar. O amor é também as laranjas no rio, ou quando já não se prefere a morte.

Sobre a contemplação

«A sensação é sensação contraída, tornada qualidade, variedade. É por isso que o cérebro-sujeito, aqui, é dito alma ou força, uma vez que só a alma conserva contraindo o que a matéria dissipa, ou irradia, faz avançar, reflecte, refracta ou converte. Por isso procuramos em vão a sensação, enquanto ficarmos pelas reacções e pelas excitações que elas prolongam, pelas acções e percepções que elas reflectem: é que a alma (ou antes, a força), como diria Leibniz, não faz nem age, mas está apenas presente, conserva; a contracção não é uma acção, mas uma paixão pura, uma contemplação que conserva o precedente no seguinte. (...) A sensação é contemplação pura, porque é pela contemplação que se contrai, contemplando-se a si própria à medida que se contemplam os elementos de onde se procede. Contemplar é criar, mistério da criação passiva, sensação. (...)
O vitalismo sempre teve duas interpretações possíveis: a de uma Ideia que age, mas que não é, que age portanto apenas do ponto de vista de um conhecimento cerebral exterior (...); ou a de uma força que é, mas que não age, que é pois um puro Sentir interno (...). Se a segunda interpretação nos parece impor-se, é porque a contracção que conserva está sempre desligada em relação à acção ou mesmo ao movimento, e apresenta-se como uma pura contemplação sem conhecimento. Isso vê-se até no domínio cerebral por excelência da aprendizagem ou da formação de hábitos: ainda que tudo pareça passar-se em conexões e integrações progressivas activas, de uma experiência para outra, é necessário, como mostrava Hume, que as experiências ou os casos, as ocorrências, se contraiam numa “imaginação” contemplante, enquanto permaneçam distintos em relação às acções, tal como em relação ao conhecimento; e mesmo quando se é um rato, é por contemplação que se “contrai” um hábito. Mais uma vez é necessário descobrir, sob o ruído das acções, essas sensações criadoras interiores ou essas contemplações silenciosas que testemunham a favor de um cérebro.»

Gilles Deleuze e Félix Guattari,
O que é a filosofia?, trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Presença, Lisboa, pp. 185-187

Gustav Deutsch


180º - Investigação de Gustav Deutsch (2001) excertos

Entre as mãos, a máquina e o ecrã, observei os procedimentos de Gustav Deutsch enquanto trabalhava no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa. Entre as máquinas do cinema, a moviola é a sua ferramenta de pesquisa e composição, com os seus abrandamentos, acelerações, paragens e recuos. Na procura dos fragmentos assim encontrados (found footage), Gustav Deutsch vai esboçando o seu filme a partir de um programa de investigação. Aqui, procurava o encontro com o olhar que outrora confrontou a câmara para, agora, ao ser devolvido, se cruzar com o olhar do espectador.


Welt Spiegel Kino (2005) de Gustav Deutsch
2ª, dia 13, 19h - Cinemateca

Film ist (2002) de Gustav Deutsch
3ª, dia 14, 21h30 - Cinemateca
filme e texto de Nuno Lisboa

Doenças infantis

«De todos os crimes imputáveis à “Revolução Cultural” chinesa, o mais nefasto para o cinema foi a grave doença infantil chamada “maoismo” que acometeu os Cahiers du Cinéma a partir de 1970, no rescaldo de Maio de 68. Brincando não aos cowboys mas aos revolucionários de algum Comité de Salvação Pública, os membros da revista, que tinham aderido em massa à estranha seita maoista, fizeram expurgos na revista (disfarçando ódios pessoais em desavenças ideológicas, como sempre acontece nestes casos) e sentiram-se cada vez mais culpados em falar em cinema e manifestar prazer pelo que quer que fosse. A fase mais aguda da doença teve início em 1972, muito precisamente no número 241, de Setembro-Outubro daquele ano, marcando o princípio de um longo e tenebroso inverno. Os Cahiers deixaram de ter fotografias, inclusive na capa, e os textos ficaram entalados entre o estruturalismo, o maoismo e algumas pitadas de Lacan, tornando-se ininteligíveis. A revista morreu espiritual e quase literalmente. Em fins dos anos 70, quando parte da imprensa francesa não parava de anunciar os vindouros anos 80 como uma época muito diferente da que se vivia (o que viria a ser verdade, embora ninguém tivesse previsto o que vinha), os Cahiers começam a voltar ao normal. O primeiro número em que a revista volta a ser normal foi o 285, de Fevereiro de 1978. O editorial deste número começa com as seguintes palavras: “O nosso último editorial anunciava algumas modificações na apresentação dos Cahiers”, ou seja no conteúdo. A revista reatou rapidamente com o que tinha sido até 1970, inclusive do ponto de vista gráfico, o que transformou a quase totalidade dos anos 70 um parêntesis na sua história. (...)
Um dos principais responsáveis por esta indispensável mudança foi Serge Daney, que tinha não poucas culpas no cartório já que tinha aderido a fundo ao maoismo e fizera parte do comité de direcção da revista (colectivo, naturalmente) durante os anos negros. Mas Daney, além de muito inteligente, era verdadeiramente cinéfilo (entrevistou Howard Hawks aos vinte anos: Cahiers nº 160, primeiro número do período pós-amarelo). Para ele, como para muitos que se tinham enganado de revolução cultural (preferindo Chiang Ching à revolução cultural ocidental que acontecia debaixo das suas barbas e dos seus narizes, sem que eles a vissem), o final dos anos 70 foi marcado por um afastamento das baboseiras maoistas. Afinal, Mao morrera em 1976 e as tendências da Revolução Cultural foram imediatamente liquidadas: se na Chine Pop a révo cul (era assim que se dizia) já passara, por quê continuar a brincar aos guardas vermelhos em Paris? Neste movimento de normalização mental, Daney descobriu novos mundos, guiado em grande parte por pessoas que se moviam na constelação de Libération, que naqueles tempos era um jornal marginal (recusava a publicidade) e quase dadaísta (um exemplo: na primeira página do número 1000: “Leia o telegrama de felicitações que, nos enviou Valéry Gíscard d'Estaing, na página 25”, quando o jornal só tinha 24 páginas). Em Libération cruzavam-se e coabitavam o esquerdismo e o hedonismo do underground e foi assim que a montanha foi a Maomé e os Cahiers du Cinéma foram atraídos pela força de gravidade do mundo onde circulava Adolfo Arrieta.
»

António Rodrigues
[pena que não tenha escrito uma nova folha de Terra em transe...], Folha de «Flammes» (1978) de Adolfo Arrieta, Cinemateca Portuguesa
, 8.11.2006

Terra em transe


Paulo Martins (Jardel Filho) e Sara (Glauce Rocha) em
Terra em transe (1967) de Glauber Rocha

2ª, dia 6, 21h30 - Cinemateca

«não conseguiu firmar o nobre pacto
entre o cosmo sangrento e a alma pura
: : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : : :
gladiador defunto, mas intacto
(tanta violência, mas tanta ternura)

_________________Mario Faustino»

O nobre pacto, eis o que assoma logo de início, como que a avisar, neste filme, preferido de entre todos, pelo excesso que passa tão rente, por insuportavelmente belo, grotesco por não ceder um pouco que seja ao desacordado, à inconsciência permissiva, por não permitir qualquer desapego, nenhuma protecção mútua, e nos arrastar sempre à beira, passando a beira que serve de limite, e já suspenso onde nada se sustém, nos trazer as forças do lado que está para lá, para as colocar aqui, sem compaixão, junto a nós, e que sempre me parte deste lado do coração, não da cabeça, se isto quer dizer alguma coisa, precisamente por nada deixar inconsciente, mais ainda, nada deixar por acolher.

A morte de Glauber Rocha (1981)


«Genial e incómodo; o mais conhecido – e é sem dúvida o maior – dos cineastas brasileiros estava um pouco esquecido. Cinema novo, tropicalismo, tricontinentalismo estão longe? Ele, Glauber Rocha, não esquecia nada.

A última vez que vi Glauber Rocha foi nos escritórios dos Cahiers du cinéma, perto da Bastilha. Não o conhecia, mas tinha visto os seus filmes dez anos antes. Já ninguém falava dele, excepto para dizer que tinha ficado louco ou que se tinha comprometido com o regime militar brasileiro. Tinha vindo a França mostrar, quase em bicos de pés, o seu último filme, um filme a que tinha dedicado bastante tempo, dinheiro e trabalho e que tinha deixado os festivaleiros de Veneza pelo menos perplexos. Esse chamava-se A idade da terra e não se parecia a nada de conhecido. Um filme torrencial e alucinado. Um Ovni fílmico, nem mais, nem menos. Glauber estava em Paris para tentar distribuir o seu filme, reatar alianças, fazer o ponto da situação. Falava muito, delirava certamente: nada do que dizia era insignificante.
Nos Cahiers, pedimos-lhe se aceitaria escrever ou dizer alguma coisa a propósito de Pasolini, que tinha conhecido, e a quem consagrámos então um número especial. Ele fechou-se num gabinete, e, não tendo necessidade alguma de entrevistador, falou sozinho durante horas para um pequeno gravador. Pouco à vontade, ouvíamos a sua voz veemente, o charme do sotaque brasileiro em francês, o ajuste de contas raivoso e afectuoso com PPP, as censuras post mortem. Era já um diálogo de mortos. Não o voltámos a ver, pois partiu para Portugal onde parecia trabalhar num projecto de filme. Acaba de morrer, no seu regresso ao Brasil, de complicações de uma doença de que nada sabemos.
Dos grandes agitadores do cinema moderno, Glauber Rocha era talvez o mais distante de nós. Desde logo porque, a partir dos anos 70, a sua reputação tornou-se francamente má: tinha virado a casaca, tinha dito bem dos regimes militares de Geisel e de Figueiredo e o organismo de estado do cinema, a Embrafilme, tinha enfiado muito dinheiro nesse filme fleuve e louco, o ovni-A idade da terra. Depois porque, no fundo, sempre tinha estado longe, tão longe de nós como o Brasil pode estar. Se houve aproximação foi porque nessa época de loucuras, havia ainda uma coisa que se chamava “história do cinema” que tecia sob os nossos olhos as alianças mais paradoxais. Glauber Rocha podia discutir montagem eisensteiniana com Godard, dizer em que é que Faulkner era um escritor cinematográfico, ou, paradoxo, porque era necessário considerar Buñuel um cineasta “tricontinental”. Não parecia haver diferenças entre as guerrilhas que levavam as “novas vagas” do mundo, fossem quais fossem as margens onde morriam. Resistia-se: resistia-se a Hollywood-Mosfilm, com uma mistura de revolta e de piedade. Ainda não se pensava que a América tinha ganho definitivamente no domínio das imagens e dos sons.
Em 1963, Glauber Rocha e seus amigos (Diegues, Hirzsman, Guerra, dos Santos, Saraceni, etc.) tinham publicado um panfleto: “Revisão crítica do cinema brasileiro”. Nascido na Bahia em 1938, Glauber, como toda a gente, tinha animado um cineclube e escrito críticas de filmes. Como toda a gente na América Latina, ele e os seus amigos tinham aproveitado um momento de liberalização, de uma trégua, para tentar mudar, do interior, o cinema brasileiro. Três filmes estabelecem a sua reputação: Deus e o Diabo na terra do Sol (63), Terra em transe (66), António das Mortes (68).
A crítica ocidental, sempre curiosa de folclore e ébria de rótulos, adorou esse novo cinema, esse “cinema nôvo” que Glauber simbolizava. Adorava-o tanto quanto não conhecia nada do antigo, nem do Brasil aliás. Depois, à medida que os militares voltavam a agarrar pelo pêlo o animal (e que animal!), esqueceu-o. Recambiados às suas contradições, as cabeças de cartaz do dito cinema novo afrontaram cada um por si a sequência dos acontecimentos: Glauber exila-se em 1971, Hirzsman cala-se, Ruy Guerra irá para Moçambique, apenas Diegues se torna pouco a pouco o cineasta brasileiro. Glauber Rocha, o mais evidentemente “genial” de todos, terá a evolução mais errática. Dois filmes-monstros que era preciso rever hoje em dia, Der Leone have sept cabeças (1969) e Cabeças cortadas (1970), o projecto não concluído de uma História do Brasil, um filme falhado em Itália (Claro), uma aparição-gag em Vent d’est de Godard, uma curta-metragem controversa (Di Cavalcanti), e, para acabar, A idade da terra.
Genial mas incómodo, figura vagamente admirada, temida ou desprezada da paisagem intelectual brasileira, personagem pública difícil de manipular, mesmo para os militares a quem ele tinha escandalosamente (como táctica?) elogiado os méritos mas de quem não se via como se poderia tornar refém ou o cineasta oficial. Demasiado louco. Glauber Rocha queimou assim muitas pistas, deixou muitos amigos, disse uma quantidade de coisas erradas. Em 1980, em Veneza, porta-se muito mal e insulta Louis Malle, de quem Atlantic City acabava de ser coroado. Vê por todo o lado o imperialismo americano, vê por todo o lado a mão de Hollywood.
Isto não era de ontem. Em 1967, declarava – ideia banal à época – “Os instrumentos estão em Hollywood como outros estão no Pentágono. Nenhum cineasta é suficientemente livre.” Era a época do sonho tri-continental: “As escolhas de um cineasta tri-continental intervêm no momento em que a luz bate, ou seja quando a câmara se abre para o terceiro-mundo, terra ocupada. Na rua, no deserto, nas florestas, nas cidades, a escolha impõe-se e mesmo quando a matéria for neutra, a montagem faz-se discurso. Um discurso que pode ser impreciso, difuso, bárbaro, irracional, mas em que todas as recusas são significativas.” Ao ver, catorze anos mais tarde, A idade da terra, disse-me que sobre este ponto Glauber não tinha mudado. Um filme à imagem do Brasil, “povo palavroso, falador, enérgico, estéril, histérico” (sempre segundo G.R.).
Nesse filme em que já não enganava ninguém, em que estava sozinho com o seu delírio, Glauber fazia voltar à nossa memória um sonho esquecido, esse de um outro cinema, outra coisa que o “made in USA”. Porque isto existiu, em várias épocas, essa ideia de que os cineastas de todos os continentes podiam arranjar diferentemente as imagens, propor ao cinema outra coisa que o seu triste devir-televisão ou o seu sinistro devir-museu. Um cinema de montagem, físico e discordante, um cinema-ópera para variar da opereta americana. Isto existiu outrora.
Ao reler as velhas conversas entre Glauber e os Cahiers, a imagem do profeta intratável e duvidoso com a qual se tinha acabado por confundir esfuma-se um pouco. É certo que ele foi, mais que qualquer um, o artista pequeno-burguês que todas as ortodoxias odeiam, o eterno aprendiz de feiticeiro da política, inconstante, provocador, etc. Era mesmo esse o tema de Terra em transe [2ª, dia 6, 21h30 - Cinemateca], um filme brilhante e masoquista: que ditador servirá o poeta? No entanto, o que ressalta dessas entrevistas é a prodigiosa cultura de Glauber: o seu conhecimento íntimo do cinema (incluindo o americano), a reivindicação de uma “brasileiridade” e, ao mesmo tempo, essa ideia de que existem por toda a parte, debaixo das aparências dos santos oficiais, os ídolos dos dominados. Por trás dos quais, por vezes, eles se sublevam. Os filmes de Glauber são westerns em que matadores de cangaceiros, misticismo camponês e manipulações políticas formam um único argumento. Sobre o “folclore”, tinha muito a ensinar-nos. De formação protestante, fascinado pelos rituais católicos, sabe encontrar por trás deles os deuses africanos, por trás de S. Jorge as divindades que se chamam Oxosse ou Ogun, por trás da Igreja o Candomblé.
Mas atenção, não há para ele deuses verdadeiros e falsos, há (diriam Deleuze e Guattari) deuses que “fazem rizoma”, há imagens que deslizam umas sobre as outras, todas verdadeiras e todas falsas. O que conta não é a Terra, é a Idade. Se a palavra cultura tem hoje um sentido, onde senão no Brasil? Um cineasta empoleirado no fluxo das imagens, nas línguas do mundo inteiro, quem senão Glauber? É um pouco a censura que ele fez a Pasolini nos escritórios dos Cahiers du cinéma: PPP foi perverso quando era preciso ser subversivo, mais grave: sonhou com um Cristo-Édipo quando era preciso um Cristo negro e nu.
Não espanta que a referência constante de Glauber seja Eisenstein. O autor de Potemkine tornou-se hoje, nas ruínas dos nossos cineclubes, uma glória longínqua e quase incompreensível. Esquece-se que qualquer cineasta debutante nesse lado do mundo que a si próprio se inicia (esse lado dito “terceiro”), o encontra no seu caminho. Nada de político aqui. Eisenstein faz voltar o cabaré, o circo, o travesti, a paranóia alegre, o gosto pelas formas e pelas suas metamorfoses, o pequeno e o grande, o micro e o macro. A cultura enciclopédica e o samba perante os ídolos. Fazer surgir das coisas uma beleza impura, mestiça. Para Glauber, o diálogo com Eisenstein nunca se acaba. “Mesmo para Eisenstein, a tentativa de tornar estético o Novo Mundo equivalia à de levar a palavra de Deus (e os interesses dos conquistadores) aos Índios”, diz ele. A idade da terra é um pouco, na era do vídeo, do zoom e do som sobressaturado, a resposta a S.M.E., a terceira parte de Ivan, o terrível.
Ele desconcertou, inventou, chocou, decepcionou. Nada cedeu do seu desejo. Com obstinação, não cessou de colocar uma questão que, receio, se tornou obsoleta: o que seria um cinema que não devesse nada aos USA? É talvez pedir demais. Mas quem responderá?
24 de Agosto de 1981»
Serge Daney, «La mort de Glauber Rocha», Ciné journal, Volume I / 1981-1982, Cahiers du cinéma, Paris, 1998, pp. 54-60.


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