Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A palavra sensível

Porta-vozes
«São corpos porta-vozes; atestam o que diz o texto e a potência comum da sua escrita. A boca ganha aqui um importância assinalável. O que vemos é antes de mais o trabalho da boca que articula cada sílaba, cada uma das palavras da querela. A maneira como os camponeses sobre-articulam e fazem ressoar as alcunhas e as injúrias do clã contrário. Mas também que essa articulação deve tornar cada uma das sílabas tão sensoriais como os blocos de gelo, a ricota ou o odor das fogueiras de louros (feu de lauriers) de que elas falam. À tradicional mimética expressiva opõe-se uma espécie de equivalência ou igualdade de intensidade. (...) a boca deve a cada vez fazer o esforço de manter a palavra à altura da experiência, à altura comunista da língua. É para o que servem, creio, esse olhos tão frequentemente caídos num caderno que não parecem ler realmente.
Isto supõe uma intervenção única sobre o texto, que consiste não em acrescentar-lhe ou retirar-lhe palavras, mas em endireitá-lo instaurando uma disposição lírica. Danièlle Huillet, com efeito, fez da exposição contínua em prosa de Vittorini um poema em verso livre ou em versículos, que deve ressoar um pouco como uma tradução de Sófocles por Hölderlin ou de Ésquilo por Claudel. É preciso então que a voz se adapte às exigências do poema: exigência de relance perpétuo da voz, de adesão a cada palavra, de igualdade entre intensidade da experiência dita e intensidade verbal.»

Natureza
«A nossa atenção reparte-se entre as coisas ditas pelos lábios daquele que fala e esses acontecimentos de luz que se passam sobre a sua cabeça ou ao lado sobre as folhas mortas. Existem todos estes ruídos que não cessam de se misturar às palavras ou de pontuar os silêncios: cantos de pássaros, zumbidos de insectos, canto do galo ao longe, etc. É o que espanta sempre num filme dos Straub: começa um pouco como em muitos filmes, com pequenos pássaros e ruídos de água. Mas nos filmes normais, trata-se apenas de dar a atmosfera de euforia que deve presidir à visão do filme: em suma, uma captatio benevolentiae sensível. Nos Straub, pelo contrário, continua, nunca pára. A natureza, com efeito, é coisa diferente de um repertório de efeitos euforisantes. É uma potência física, metafísica e mitológica.
(...) A natureza é o que não cessa, mas também o que sem cessar apaga os traços.»

Estar salvo
«História de salvação (...). Nos Straub, um jogo mais complexo se instaura em torno da cantata [de Bach] e da palavra da promessa. À promessa divina continuam a opor uma promessa humana e uma promessa que já se efectuou. Não se deve dizer, como na cantata: aquele que crê será salvo. Deve dizer-se: aquele que crê está salvo. Está salvo na eternidade de um aqui e agora da experiência mantida, tornada palavra de vida. O movimento do filme conduz-nos assim do processo a uma nova eucaristia, à afirmação de uma salvação que já lá está e cuja potência se afirma, no crescendo final, passando pela evocação das fogueiras de louros a essa grande panorâmica ascensional que nos deixa na abertura dos elementos reconciliados e de um comunismo elevado a uma dimensão de eternidade.»

Sobre Operai, contadini (2001) de Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub: Jacques Rancière, «La parole sensible», in Cinéma, n.º 5, 2003, pp. 73. 77. 78.


_6ª, dia 17, 21h30 - Cinemateca

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