Por contemplação
Kyôko Kagawa (Osan) e Kazuo Hasegawa (Mohei) em Chikamatsu monogatari/Os amantes crucificados (1954) de Kenji Mizoguchi para a Ana, sempre | |
Por contemplação nasce um amor. (Mas não “olhos nos olhos”. Ou então, é outra coisa que nos olhos se intui, bem para lá de um interior pessoal). Em Os amantes crucificados de Kenji Mizoguchi, é por Osan (a mulher) contemplar a passagem dos amantes adúlteros, condenados à crucificação (castigo humilhante a que diz preferir a morte), que precipita uma série aparentemente nefasta de acontecimentos. Nessa espiral envolve Mohei (o homem), com um pedido de generosidade um pouco excessiva. Precisamente, toda a generosidade é, por natureza, excessiva num mundo de amos e servos, como hoje. Que contemplou ela, para o envolver assim numa libertação que coincidirá, sem a ela de todo se reduzir, com a morte deles? Contemplou a injustiça, a que cerca os afectos, a económica, a injustiça toda ela política do seu mundo. Contemplou a impossibilidade de assim viver. | Não se trata aqui da consciência ou inconsciência do seu gesto, e é bem pequeno o papel do acaso nas desgraças que se sucedem. O amor entre Osan e Mohei, que nutriam um pelo outro quase que uma mera estima (mas mesmo esta, composta de quê? intuindo o quê?), o amor dos amantes que serão crucificados mas que estão salvos, nasce desta simples contemplação. Assim se constrói o amor à posteriori, na insuperável vertigem introduzida pela contemplação (para além da mera e, no entanto, necessária concorrência das circunstâncias). À luz deste filme, não pode o amor ser concebido apenas como uma coisa comezinha, que se passa entre dois seres no segredo da alcova ou do lar doce lar. O amor convoca imensas coisas, não apenas miudezas. E não é assim que as pessoas se impedem de lançar-se ao mar, ou de lançar os outros ao mar. O amor é também as laranjas no rio, ou quando já não se prefere a morte. |
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