Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

«Quero ver o "não compreendo"». Uma conversa com Nobuhiro Suwa



Nobuhiro Suwa é um importante realizador contemporâneo, autor de M/other (1999), filme grandioso por entre os verdadeiramente marcantes da última década. Aquando da retrospectiva da sua obra no IndieLisboa em Abril passado, tivemos a possibilidade de conversar com ele. Agora que um filme seu volta a passar em Lisboa (o recente ciclo Novo Cinema do Sol Nascente na Cinemateca esqueceu-o completamente), publicamos esta conversa afável, que foi, no entanto, limitada pelo precário inglês dos interlocutores.

ANDRÉ DIAS — Estava a falar de como foi difícil para si começar a fazer filmes...
NOBUHIRO SUWA — Os outros filmes japoneses eram muito maus, não estávamos satisfeitos. Então quisemos fazer os nossos filmes sozinhos. Esta foi a geração independente de Tóquio, Japão. Optámos por fazer filmes em Super 8. Por exemplo, [Kiyoshi] Kurosawa, Aoyama... Estavam sempre a fazer filmes de Super 8 sozinhos. Os estúdios estavam quase falidos nessa altura. Foi a nova vaga japonesa... Estávamos sempre contra os filmes japoneses. Ozu, Mizoguchi, eram do passado.
— Conheceu primeiro os filmes americanos dos anos 70 e depois os europeus?
— Depois conheci os filmes experimentais. Jonas Mekas, Stan Brackage e muitos outros. Quando vi os filmes experimentais, senti que podia fazer um filme, sozinho. Então, arranjei uma câmara Super 8 e fiz um filme pessoal. Foi o começo da minha carreira.
— Acha que, por exemplo, o som cortado em H story ou a saída dos planos, os flashes, em M/Other, são coisas que vêm do cinema experimental?
— Penso que sim. Gosto do lado material das imagens. Os flashes acontecem no final do filme. Estávamos sempre a pensar na improvisação e que representar era errado. Assim, o filme acaba. É o que acontece com os flashes. Mas adoro as imagens, o facto de desaparecerem. Consigo sentir a matéria do filme.
— É isso que é interessante. São filmes narrativos, mas depois há este uso radical de técnicas que vêm do cinema experimental, ou do moderno...
— Sim, no início eu adorava o cinema experimental. Mas nessa altura a situação do cinema experimental estava um pouco a mudar. No Japão há uma espécie de cinemateca de cinema experimental chamada Fórum da Imagem, que está sempre a projectar filmes experimentais. Mas havia uma separação completa entre o público do cinema e o público dos filmes experimentais. Era uma comunidade pequena, que me parecia um pouco fechada. Por outro lado, o cinema tem o poder de mover a paixão das audiências… Nas salas de cinema, acontece as pessoas chorarem, ficarem zangadas ou rirem-se. Mas no museu, quando vêem arte moderna, dizem «oh, muito interessante», «é bom» ou «mau», mas não choram nem riem. O cinema tem o poder de comover as pessoas. Gosto desse tipo de poder.
— Gilles Deleuze diz que é uma função da imagem fazer as pessoas chorar. Se as pessoas vêm Griffith – Broken Blossoms – e não choram, alguma coisa está errada.
— Gilles Deleuze também disse, ao falar do cinema moderno – de Godard, por exemplo – que a montagem é interrompida, que não é contínua. O que significa isto? É muito difícil de explicar em inglês. Este tipo de montagem faz as pessoas acreditar na realidade deste mundo. Porque o cinema clássico perdeu confiança no mundo. Esta ideia tocou-me muito.
Quando filmei M/Other não queria usar os flashes. Não sei porquê. Mas depois li o livro de Deleuze e percebi o que tinha feito.
— Para além dos flashes, usa bastante os negros, que duram um bocado, às vezes a separar sequências. Quando está a montar, como é que decide usar o negro, o tempo que dura, a música? É um processo intuitivo?
— Ponho a passar. Carrego no botão do play, vejo as imagens, e sinto a tensão... Mas no início, quando fiz 2 Duo, que é improvisado, houve um plano que ficou muito longo. Quando o rapaz e a rapariga se encontram no café e o rapaz está de costas para a imagem. Foi uma improvisação, e ficou com quase dez minutos. Para mim, é demasiado longo. Mas não tenho outro take. Só fizemos um take. Por isso, tenho de o cortar. Mas como ligá-lo? Se cortar directamente fica um jump-shot. Então uso um pequeno cartão negro... Não disfarcei o corte. Normalmente, a montagem é contínua, suave. É a ilusão do cinema. Gilles Deleuze disse que o cinema cria uma ilusão, e as pessoas querem acreditar na ilusão. E é por isso que perderam a relação com a realidade. Eu quero mostrar a montagem. Isto é montagem, não é contínuo.
— Não a transparência, mas mostrar que é um filme. Faz isso para criar uma distância? Não quer que o público se identifique com o filme? Quer que haja emoção, mas...
— Quero que as pessoas se identifiquem, mas com algum recuo. Não completamente distanciadas porque é muito cruel. Em 2 Duo há constantemente um movimento passional. Mas não se esqueçam de vocês, é o que eu quero dizer. Porque isto é cinema, não é a realidade. São apenas imagens. Quero que o público compreenda aquela realidade. Isto é só cinema, é um filme, são imagens.
— Disse também que o negro entre as sequências serve para pensar. Mas, ao ver M/Other, tive a reacção oposta. Estava a pensar enquanto os actores representavam, e quando chegavam os negros ficava como que suspenso. São muito poderosos os momentos de negro! Porque também usa um pouco de música, instrumentos de cordas, e fica mesmo abstracto.
— Há uma espécie de ruído no início...
— Mas acha que esse tempo de negro serve para pensar?
— Para mim, é como a música. A cena está-se a desenrolar e então o negro é como uma bênção. E depois acontece outra coisa. Para mim, é como compor música. O cinema é tempo. Portanto, é semelhante à música. A música é tempo e o cinema é tempo. Há o movimento da paixão. O negro é uma espécie de melodia.
M/Other tem imensos negros, H Story já tem menos; continua a usá-los?
— Sim, H Story tem um pouco menos. Mas em Un couple parfait volto a usar... Quando foi a projecção em Cannes de M/Other, a meio do filme há um longo negro, de 30 ou 40 segundos, e então as pessoas olhavam para a cabine de projecção sem perceberem o que é que se passava. Foi divertido.
— Ao ver M/Other lembrei-me de Ozu, na cena em que Aki chega e pai e filho estão a jogar à bola. Por outro lado, a improvisação corpo a corpo lembra um pouco Cassavetes, H Story está ligado a Resnais, e ainda se fala de Antonioni a propósito de
Un couple parfait. Isso é explícito? Há algum referência a Antonioni em Un couple parfait?
— Não.

— É só porque eles também são italianos! E há ainda Kramer. Quem é que se segue?
— (risos.) Não sei. Mas não acho que seja influenciado por Antonioni, porque quando era novo não vi os filmes dele em Tóquio… Mais Rosselini... Americanos dos anos 70, cinema experimental, e depois a Nouvelle Vague.
— Disse algures que lhe deram coragem para trabalhar. Godard e os outros adoravam os clássicos americanos, Hitchcock, Hawks, etc., e há uma frase de Godard em que ele diz que quando sentiu a vontade, a urgência de fazer filmes, era já num tempo em que não os podia fazer como se fazia antes. Sente o mesmo em relação ao cinema moderno? Acha que há uma continuidade entre Resnais, por exemplo, e os seus filmes? Ou acha que o cinema mudou realmente?
— Hum, o que é que quer dizer? Se há uma possibilidade de continuar?
— Se acha que está a continuar o cinema que se fazia nos anos 60, 70, 80, os filmes com que cresceu, que lhe deram a vontade de fazer também filmes.
— Por exemplo, quando Godard fez A bout de souffle, tentou fazer um filme americano dos anos 50, mas ao mesmo tempo sentiu que era impossível fazer esse tipo de filme naquela altura.
— Sente o mesmo?
— Sim, quase. Quase, mas... (longa pausa) quando Howard Hawks fez os seus filmes terá sentido a mesma coisa. Já com Godard, a situação tinha-se alterado, o tempo tinha passado, mas ele recriou o valor do cinema anterior. Eu sinto quase o mesmo, que não posso fazer um filme como Resnais ou Howard Hawks, Rosselini, ou dos anos 50. É impossível, acho. E ao mesmo tempo, não é necessário. Porque o filme pertence ao passado, não ao agora. O momento de agora é o que é importante para mim. Daqui a muitos anos, daqui a 10 ou 20, quando as pessoas virem o meu filme M/Other não sei o que vão sentir. Sentirão o que sentirem. Não sei da continuidade ou não, mas a história é sempre assim.
— Não está a trabalhar uma herança, só os seus filmes. No entanto, fez um remake e falam de si como o realizador japonês com uma maior ligação ao cinema europeu.
— Os meus filmes?
— «Várias vezes referido como o mais europeu dos cineastas japoneses... »
— Oh, isso é sobre mim?! (risos.) Não ligo a isso.
— Gostava que tentasse explicar melhor o trabalho de improvisação que faz com os actores. É que “improvisação” pode querer dizer muitas coisas. Tomemos M/Other como exemplo. Tem apenas umas linhas, não tem guião, mas já escolheu os actores. Pode descrever o processo de trabalho com eles?
— No início, tinha só uma página com a história, a situação apenas, um homem e uma mulher que vivem juntos mas não são casados, uma coisa desse género, só uma sinopse. Quando convido um actor, conto-lhe a história e o modo como a quero criar, e depois discutimos. Quando volto para casa, escrevo mais algumas linhas e então mostro à actriz e ao actor e discutimos.
— Já conhecia os actores de M/Other? Eram amigos seus, próximos?
— Não. Ele é um actor muito famoso. Era uma espécie de ídolo quando era novo, fez muitos filmes dos estúdios.
— E eles adaptam-se ao seu estilo, à improvisação?
— Sim. Mas ele tinha muito medo. Não tinha este tipo de experiência, e então estava muito nervoso. De modo que tive de fazer um ensaio, porque ele queria saber o que acontecia, queria conhecer o meu estilo. Mas em Un couple parfait não precisei de ensaios, porque a Valeria [Bruni Tedeschi] não tinha medo disso, e o Bruno [Todeschini] também não.
— Portanto, sem ensaios e com poucos dias de filmagem?
— Onze dias, sim. A Caroline Charpentier [directora de fotografia
] é que diz: a maior parte dos filmes levam pouco tempo a preparar e muito a filmar, mas os do Suwa levam muito tempo a preparar e pouco a filmar. É economia.
— Mas o que é que prepara em relação aos actores?
— Em M/Other passámos muito tempo a ensaiar. Por exemplo, quando o homem e a mulher se encontram... vamos ensaiar uma hora antes de filmar. Sem guião. A história no início é eles viverem juntos. Mas o que é que se passou um ano antes, como é que viviam? Vamos ensaiar o que aconteceu nessa altura, pela experiência.
M/Other parece muito ensaiado, quase como no teatro, mas sem ser excessivo. A actriz que faz de Aki estava muito bem.
— Sim, muito bem.
— Alguém disse que você descreve muitas vezes o seu método, mas que não percebemos o que o faz funcionar. Talvez consiga fazer passar a sensação que tem sobre a cena aos actores e isso funcione. O que é que faz quando eles estão a ensaiar, ou quando está a filmar? Dá indicações ou está a controlar a câmara?
— Enquanto filmo? Hum... Não digo coisas muito detalhadas, por exemplo, “mova-se nesta direcção”, ou “por favor, diga esta palavra”. Se pedir isso ao actor, ele vai ficar sempre com essa memória, “tenho de fazer desta maneira” ou “tenho de dizer esta palavra”, e não é livre. Por isso digo só coisas como “mais alto” ou...
— Esse tipo de abordagem tem a ver com a relação entre ficção e documentário. Isto é um filme, mas ao mesmo tempo dá um pouco de realidade. Como é que, nos seus filmes, a ficção e a realidade se ligam? Que ficção é que quer apresentar, que realidade?
— Interessam-me realmente os outros, o outro... porque...
— As outras pessoas?
— Não é bem as outras pessoas.
— A dualidade?
— A dualidade. Outro é… Emmanuel Lévinas diz que o rosto é o nosso Outro. O Outro é, por exemplo, o «não compreendo». Se crio um guião, se tenho de escrever uma fala, por exemplo: a Aki diz «amo-te», e o homem diz «eu também»... Não sei, escrevo o diálogo, mas... Eles estão os dois dentro da minha cabeça. Portanto, não é um diálogo. Diálogo é quando gritam um com o outro, é o «não nos compreendemos um ao outro». Se sou eu a escrever o diálogo, é um monólogo. Não é isso que me interessa. Então peço-lhes… Quero ver essa coisa do «não compreendo». Não sei porque é que a Aki disse aquilo. Às vezes fico surpreendido, outras não percebo. É por isso que, quando fiz o meu primeiro filme, 2 Duo, entrevistei o actor. Porque não percebo o que o actor fez. Por exemplo, porque é que o Kei ficou zangado e atirou com a camisa. Não percebi, por isso quis perguntar-lhe. A entrevista é isso, é essa a razão de ter feito a entrevista com o actor e a actriz. Interessa-me realmente a relação entre os outros.
— É essa a realidade na ficção?
— No início, queria mesmo alguma realidade. Por exemplo, em 2 Duo. Porque quando via os filmes japoneses, as falas eram literatura, palavra escrita, não eram a vida real. Mas agora o que eu sinto está a mudar, porque o cinema não é a realidade... o cinema é ficção, sempre ficção. O documentário também, o documentário também tem ficção, não é? Portanto, para mim, a improvisação não significa apenas a realidade. Talvez seja por isso que escolhi a improvisação, às vezes penso nisso, talvez tenha sido pelos outros. O que são os outros? É isso que é importante para mim, não a realidade.
— Mas não lhe parece que o outro se pode expressar de várias maneiras? Este é o seu método mas, por exemplo, Bresson utiliza...
— Bresson utiliza o caminho oposto, mas há qualquer coisa verdadeira. As falas dele não são reais, nem naturais. E a representação também não. Há uma diferença entre naturalismo e realidade. Os filmes de Bresson têm um tipo de realidade, apesar de não serem nada naturais. Penso nisso. Quero criar algo de real, mas não quero dar a ilusão do natural. Isso não é importante.
— Para acabar, pode dizer porque é que escreveu um texto sobre Pedro Costa?
— Porque alguém me pediu! (risos.) Não sou escritor, nem crítico, não escrevo habitualmente sobre cinema. Mas às vezes tento, porque escrever é um modo de pensar logicamente. Queria saber o que eu próprio sentia acerca do Pedro. O filme dele tocou-me muito, mas não sei porquê, não é uma coisa lógica. Por isso, às vezes tento escrever. Se escrever, compreendo o que sinto. Queria mesmo saber o que aconteceu quando vi No quarto da Vanda. Por isso é que tentei escrever. E, ao mesmo tempo, é uma amizade, é um amigo.


Un couple parfait (2005)
5ª, dia 16, 19h – Instituto Franco-Português, Lisboa

(Gostaria de agradecer ao IndieLisboa, na pessoa do Nuno Sena, pela extrema gentileza que manifestou na concretização desta conversa. A presença de dois realizadores fundamentais do cinema contemporâneo Jia Zhangke e o próprio Suwa em dois anos consecutivos, deixa uma expectativa feliz quanto à continuação do festival. E também, mais uma vez, à Joana Frazão, pela atenciosa revisão.)

1 comentário:

Pedro Ludgero disse...

Interessante entrevista.


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