Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Um ganso afogado (Os animais #3)

«ARQUEÓLOGO: São gansos. – ETNOLINGUISTA: Há filhotes a nadar... Não conseguem voar! (...) ÍNDIO: Estão a perder as penas. – ARQUEÓLOGO: Quanto demorará até crescerem de novo? (...) – ETNOLINGUISTA: Está de costas! Mergulhou demais? Está a afogar-se. – ÍNDIO: Apanha-o! – ARQUEÓLOGO: Vamos fazer-lhe respiração artificial. – ETNOLINGUISTA: Afogou-se... Está morto. – ARQUEÓLOGO: Ainda não morreu. Deixa-o no barco, pode ser que recupere... Não, ainda mexe, deixa-o no barco. Se ficar melhor, pô-mo-lo de novo na água. – ETNOLINGUISTA: Olha as penas, perdeu as penas. Estão a afogar-se. – ARQUEÓLOGO: Não mergulhem, vão afogar-se... Não te aproximes Jérôme. Este não morreu. Não o vamos matar. Já aqui temos um. Olha, este não morreu ainda. – ÍNDIO: Torce-lhe o pescoço! – ARQUEÓLOGO: Não! – ETNOLINGUISTA: Ele quer comê-lo! – ARQUEÓLOGO: Está bem vivo. Está a recuperar bem. Temos montes de esparguete. – ETNOLINGUISTA: O Jérôme é um caçador, quer comer este ganso. Mata-o tu, eu não sou capaz. – ÍNDIO: Não é gordo... Não, é mesmo magro. – ETNOLINGUISTA: Eu cá não sei. – ARQUEÓLOGO: É magro demais, deixa-o ir! – ÍNDIO: Solta-o mais além... É magro... – ETNOLINGUISTA: Estás armado em defensor dos bichinhos, quando comes um bife, não protestas! – ARQUEÓLOGO: Não o vejo da mesma forma. (...) – ETNOLINGUISTA: Ele vai-se perder do grupo, não faz mal? – ÍNDIO: Não, há disso por todo o lado. – ETNOLINGUISTA: É como os índios... Que fita só porque íamos comer um ganso. És um amador de carne inveterado. Que falta de lógica! Tens de te tratar! – ARQUEÓLOGO: E tu, matava-lo? – ETNOLINGUISTA: Não, mas comia. – ARQUEÓLOGO: Eu também, se estivesse no prato, comia. – ETNOLINGUISTA: Olhem só, salvámos um ganso! Se fosse maior, não o tínhamos solto!»
Le pays de la terre sans arbre ou le Mouchouânipi (1980)
de Pierre Perrault; excerto com José Mailhot (etnolinguista), Serge André Crête (arqueólogo), Jérome St-Onge (índio)


«O trágico e a ironia dão lugar a um novo valor, o humor. Porque, se a ironia é a coextensividade do ser com o indivíduo, ou do Eu com a representação, o humor é a [coextensividade] do sentido e do não-sentido; o humor é a arte das superfícies e das dobras, das singularidades nómadas e do ponto aleatório sempre deslocado, a arte da génese estática, o saber-fazer do acontecimento ou a “quarta pessoa do singular” – toda a significação, designação e manifestação suspensas, toda a profundidade e altura abolidas.»
«A univocidade do sentido capta a linguagem no seu sistema completo, expressão total pelo único expresso, o acontecimento. Assim se distinguem os valores do humor dos da ironia: o humor é a arte das superfícies, da relação complexa entre duas superfícies. A partir de mais um equívoco, o humor constrói toda a univocidade.
»

Gilles Deleuze, Logique du sens, Minuit, Paris, 1969, pp. 166, 289.

Para uma introdução muito leve ao problema da relação contemporânea entre homem e animal, a partir de um âmbito cinematográfico nem ortodoxo nem exaustivo, conferir «Os animais», bem como «Os gansos de Sobibor».

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