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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

«Aqui tudo mais ou menos». Glauber em Portugal

As armas e o povo (1974-5) do Sindicato dos Trabalhadores da Produção de Cinema e Televisão; excertos de/com Glauber Rocha

«1974 – Glauber se apaixona pela actriz Juliet Berto. Vai a Lisboa. [Não existe correspondência entre 31 de Janeiro de 1974 e Junho de 1974, ou seja, do 25 de Abril.]
“Paris, junho de 74 | (...) Deus escreve direito por linhas tortas ou A. das Mortes não é um jagunço que passa do poder ao povo? Pobre do povo que precisa de heróis e eu não sou católico: Toynbee: exorcizar o demônio ocidental –> o moralismo etc. Afinal é preciso repensar o Brasil a partir de Portugal.”
“Paris, julho de 74 | (...) A crise é geral na Itália, regressiva na França, progressiva em Portugal, Espanha caindo, mas a Grécia pega fogo. É o caminho das Índias.”
“Roma, 1 de agosto de 74 | (...) As transformações de Portugal e da Grécia poderão exercer influência aí. Voltarei a qualquer momento no dia e hora necessários.”
1980 – Glauber participa na Mostra Internacional de Cinema de Veneza, onde a A idade da Terra é exibido em 2 de setembro. O filme gera polêmica e é mal recebido pela crítica. Louis Malle recebe o Leão de Veneza com Atlantic City e Glauber acusa o cineasta e a direcção do festival de fascistas, e, por sua vez, é acusado por suas posições políticas no Brasil. (...) Em entrevista ao jornalista Pedro del Picchia, de setembro/outubro, Glauber desabafa: “Saí de Veneza vomitando. Passei dois dias em Florença com uma febre alta. Estou doente em Roma. Roma está fedendo, a cidade está cheia de marginais, está suja. [...] Minha relação com o cinema acabou em Veneza. Aproveito para dar um adeus definitivo à cultura brasileira. Vocês não me verão mais. Nunca”.
“Paris, 29-30/dezembro de 1980 / Querido Celso [Amorim, diretor da Embrafilmes] / (...) Manifestei-lhe [a Aluysio Guimarães] o desejo de fundar uma Empresa de Comunicações em Paris (com ramal em Lisboa) e dar início à minha produção. (...) / Com este dinheiro, eu poderia SOBREVIVER (...) vivo pobremente e angustiado pela pobreza e por isto doente: passei 15 dias vomitando com dores terríveis e Aluysio Guimarães encontrou-me bastante abalado (...) / Não quero, não posso, não devo voltar ao Brazyl antes de 2 anos. (...) A não ser você e o Aluyzio, não tenho a quem recorrer. Embora não considere uma IMAGEM TRÁGICA – aos 42 anos encontro-me pobre, doente, perseguido e em grande FASE CRIATIVA –> daí ao enfarte, ao câncer, ao assassinato (see John Lennon). Mas como o velho Cavalcanti está aqui aos 83 anos, eu espero RESISTIR.”
1981 – Em fevereiro, viaja para Portugal, onde é recebido pelo cineasta português Manuel Carvalheiro, diretor do documentário Abecedário, que inclui longo depoimento de Glauber gravado em Paris. Vai para Sintra onde cruza com o presidente João Batista Figueiredo.
“Sintra, 23 de março de 1981. / Cacá [Diegues, cineasta], / Só hoje escrevo uma carta ao Brasil. Estou bem, numa casa ótima com Paula e as crianças, também a mãe de Paula veio passar uns dias. Estou me curando de uma sinusite que provocou uma pericardite, estive mal, poderia morrer. Mas já estou em franca recuperação, espero me curar. Assinei um contrato para escrever um roteiro e tenho como viver até junho, meados de julho, quando espero concretizar a produção. Aqui há condições, o ambiente é tranquilo, tenho alguns amigos (...) Se nada der certo, verei onde posso fazes este filme que estou criando, ou outro, em outro país, sem excluir o Brasil. / Vivo um intervalo. Fim de um ciclo psíquico e corporal. Um segundo exílio, de futuro incerto, mas caminhos mais ou menos estruturados. (...) / Não lamento nada. Este túnel chegará ao fim e nos encontraremos mesmo que seja no deserto, onde encontraremos novas soluções. (...) / Preciso que o Celso Amorim me ajude a fazer o filme aqui. É fundamental para minha saúde. Ele facilitou as coisas aqui em Portugal mas é bom você apoiar. Felizmente fofocas não nos separaram.”
Em Abril a Cinemateca exibe uma mostra dos seus filmes, interrompida por um incêndio que destrói cópias dos filmes. / Em Sintra, Glauber recebe alguns amigos, mas se mantém isolado com a família.
“Sintra 9 de abril de 1981 / Querido Celso [Amorim] / Aqui tudo mais ou menos. Estou me recuperando da pericardite e escrevendo o roteiro. (...) / A Cinemateca Portuguesa organiza a partir do dia 21 uma Perspectyva com os meus filmes, incluindo Di e A Idade.”
Glauber (...) fala de Portugal como uma redescoberta, lugar mítico de fundação e recomeço. / (...) Do desconforto parisiense ao clima ameno de Sintra, numa paisagem deslumbrante, parecia a descoberta do paraíso:
“Sintra, 26 de abril de 1981 / Querido Cacá / (...) e suponho que Diegues seja espanhol enquanto Rocha é português (...) aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro (...) as coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira-mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado... imagine que no meio da minha Kynoperzctyva 81 a Cinemateca Portuguesa pegou fogo na sede nova, destruiu todas as minhas coisas, grande esporro em Lisboa... foi um filme de Hitchcock em nitrato de 1933, A desaparecida, título português em contato explosivo com o clássico Douro faina fluvial, de Manoel de Oliveira... fantástico. vou fazer com a RAI aqui em co-produção com os portugueses o NASCIMENTO DOS DEUSES (...) é possível realizar o Ciro e Alexandre aqui, há muita cultura árabe castelos etc. (...) / Telefone 293-2xxx / CASA DAS MINAS – LARGO DO VITOR (LARGO FERREIRA DE CASTRO) / CAMINHO DO PARQUE DAS MERENDAS – SINTRA – PORTUGAL (título barroco manuelino de endereço é isso aí...) / PS – o cinema português está prometendo... sinto-me mais ou menos em casa, boa cama, boa mesa, bom clima, transromantismo...”
Glauber e todo o seu cinema é marcado por esse sentimento messiânico, um nacionalismo místico e crítico que é a base da sua política e ética. (...) No exílio português, Glauber redescobre Pessoa e a mitologia luso-brasileira. (...) Em abril, Glauber dá um longo depoimento ao ator Patrick Bauchau, que filmava com Wim Wenders em Portugal, intitulado “Sintra é um belo local para morrer”. Encontra-se com Wim Wenders e Samuel Fuller. (...) Com a saúde abalada há alguns meses, Glauber tem como diagnóstico uma pericardite vital.
“Sintra, 8 de Junho de 1981 / Querido Celso / (...) Preciso saber de tudo rapidamente porque resta-me 50 dólares. Sá da Bandeira [Presidente do Instituto Português de Cinema] não me procura, o verão começa, a vida só recomeça em Setembro. Claude está interessado, mas Sá da Bandeira ainda não se decidiu. / PRECISO DINHEIRO URGENTÍSSIMO – adiante-me sobre o contrato 2 MILHÕES e depois vamos acertar o resto até ao fim do ano. Caso a Embrafilmes não resolva meu problema, estarei definitivamente proletarizado, em suma, será difícil...”
“Sintra, 16 de julho de 1981 / Caro Tom [Luddy, produtor americano] / Estou escrevendo um novo roteiro: O destino da humanidade. Vou acabar no dia 20 de agosto. Meu produtor francês, Claude-Antoine, quer fazer o filme aqui. Portugal é bonito e poderei ter dinheiro em setembro do Instituto de Cinema Português. Embrafilme co-produz. Acho que posso fazer o filme em outubro. Aqui, no Sul, tenho sol durante Novembro e Dezembro. Preciso de 2 milhões de dólares e acho que Toscan du Plantier está interessado. Se não for possível aqui irei para Paris. O cenário do filme é uma grande cidade. (...) / Estou bem – ok. Posso trabalhar. Portugal é o Paraíso... (...) / Meu endereço para correio é Hotel Central. Sintra, Portugal. / Estou agora na Villa das Magnólias, nas montanhas. O número de telefone é xxx (Sintra). Em 15 de agosto eu irei para Quinta de Lobos. O telefone é: xxx em Sintra. Estarei aqui –> 30 de setembro. Se o filme for possível eu fico. Se não...? Posso ir para a França ou San Francisco, / de Glauber Rocha // PS –> (...) O verdadeiro título de Deus e o Diabo não é Black God and White Devil, mas God and Devil in the Land of the Sun e Terra em transe é Transi’s Earth e não Land in Anguish... / Agora é 17 de Julho. (...) O Presidente do Instituto Português de Cinema, o Sr. Sá da Bandeira, saiu! Crise com a Secretaria de Cultura. Minha produção está parada... Mas eu escrevo o roteiro. Talvez a crise esteja acabada em setembro... / Glauber” [esta é a sua última carta conhecida]
Em 6 de agosto seu estado se agrava e é internado num hospital próximo a Lisboa por complicações broncopulmonares. (...) No dia 16 de Agosto, o escritor João Ubaldo Ribeiro, passando temporada em Sintra, publica uma crónica no Globo sobre a internação, o sofrimento do amigo, as visitas de Jorge e Zélia Amado, a mobilização dos médicos, o desencontro dos diagnósticos e as movimentações das autoridades portuguesas com o caso. Compondo a cena, um Glauber fragilizado, tirando e botando o tubo de oxigénio do nariz para falar ao telefone sobre os rumos da política cultural brasileira ou “discursando no quarto sobre a Dialética da Enfermidade”. / Em meio à tragédia, Ubaldo descreve um delírio cômico de Glauber com o Ponto Frio Bonzão, em que repete a propaganda da empresa aos prantos: “O Ponto Frio Bonzão meu Deus, liquificadores, batedeiras, refrigeradores, aí meu Deus, tudo a preços módicos e suaves prestações mensais! Enceradeiras, televisores, ferros de passar”. Refrão ao qual volta de tempos a tempos “com a mesma cara trágica”. / Glauber tinha de tal forma se dissolvido no colectivo e na cultura que mesmo seus delírios são socioeconômicos, estranhos “pesadelos” de consumo. (...) Em estado de extrema gravidade é trazido de volta ao Brasil na noite do dia 20, sem acompanhamento médico ou soro. Chega ao Rio de Janeiro no dia 21 e recebe soro ainda na enfermaria do Aeroporto do Galeão. É levado para a Clínica Bambina, em Botafogo. Morre às 4 horas da manhã do dia 22 de Agosto. Glauber é velado no Parque Lage, cenário de Terra em transe, em meio a grande emoção e exaltação.

“O que faltou para Glauber?” “A possibilidade de envelhecer como um patriarca”, escreveu o cineasta português Paulo Rocha [«Rocha, c’est l’autre», in Sylvie Pierre, Glauber Rocha, Cahiers du Cinéma, 1987].»

Glauber Rocha, «Cartas», «Cronologia», Cartas ao mundo, org. Ivana Bentes, Companhia das Letras, São Paulo, 1997.


Glauber Rocha em Portugal

Glauber continua fluxo

1 comentário:

Anónimo disse...

Viva Glauber !!!


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