Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Representar



«Há no centro de Ponette (filme realizado em 1995 por Jacques Doillon) uma sequência bastante curta que poderíamos intitular “Ponette e o espelho mágico” e que deveria ser uma antologia daquilo que é o trabalho, o risco, a loucura do actor.
Todo o filme instala a direcção de actores (tanto mais que se trata na maior parte de crianças actores) num lugar incandescente que fez medo a mais do que um. No entanto, precisamente nessa sequência, trata-se quase de uma experimentação do realizador e da actriz, Victoire Thivisol, de quatro anos.
Na segunda sequência do filme, depois de terem andando de carro ao longo da estrada em que Ponette e a sua mãe tiveram um acidente e em que saíram para observar o local exacto, uma conversa entre o pai dela e Ponette começa assim: “A tua mamã está morta. Sabes o que isso quer dizer?” e num sussurro: “Sim, ela vai-se embora com o seu espelho mágico”. Cinco sequências mais tarde, quando Ponette, que o pai deixou em casa de uns primos depois de um enterro, não quer entrar em casa à noite e permanece horas sentada numa velha grade enferrujada, a sua tia vem buscá-la: “Ela não vem, Ponette. Agora vamos para dentro. - É Jesus que decide o que devo fazer. - Sim, mas sou eu que cuido de ti, e Jesus conta comigo para isso.” A mulher afasta-se com a criança nos braços, é o fim do dia, tudo está já azul acinzentado e, na sequência seguinte, Ponette está no seu quarto e olha-se num pequeno espelho de boneca. Nesse momento, a personagem está suficientemente definida para que o espelho “mágico” indique tudo das intenções de Ponette, que quer voltar a ver a sua mãe, e que nada nem ninguém impedirá esse movimento que é o próprio movimento do filme.
Se observarmos esta sequência na continuidade narrativa, o seu carácter documental siderante sobre a relação entre o actor e a personagem não pode ser apreendido, dado que a emoção aflora sem cessar. É preciso ver e rever o filme, isolar a sequência para compreender a que ponto ela testemunha da fé do cineasta na representação do actor, na sua pesquisa, na sua experimentação e como em todo o filme se trata dessa fé mais do que qualquer outra. (É uma alusão àquilo que censuraram
aqui [Cahiers] a Jacques Doillon e que, contudo, nunca foi censurado a Rosselini.)
O que olha Ponette no seu espelho mágico? E que procura Victoire no espelho de Ponette? O rosto pouco a pouco deforma-se para baixo. Victoire procura a tristeza de Ponette, nem um segundo ela se olha, a si, Victoire, menina de quatro anos, ela não se queda nesse rosto enfim gracioso, não faz essa afronta ao cineasta e ao espectador. (...) Victoire (...) tem quatro anos e aos quatro anos ela vai instantaneamente ao coração do mistério: representar o ser um outro, e de sua decisão: dar um rosto a Ponette. Decisão simples e concreta do que é representar, dar a representação de um sentimento e assim arriscar vivê-lo mas mantendo o olho fixo e o olhar puro.
Há um salto noutro mundo quando se representa o ser alguém de outro e, depois do olhar ciclópico da câmara, centenas de outros verificarão a qualidade desse salto.
É a Ponette quem devo o ter começado a entrever esse gesto e quem quiser aproximar-se, pode fazê-lo olhando Victoire escrutar o seu espelho mágico. A parte baixa do rosto afunda-se lentamente com Ponette, os olhos observam essa transformação, de fotograma em fotograma o rosto modifica-se, o olhar permanece escrutador e, de repente, perde-se e Victoire já não vê Ponette, há uma espécie de loucura nesse olhar. Talvez ela experiencie a desaparição, a de Ponette, a da mãe dela? Eis porque raramente corto, quase nunca, a câmara com o “Corta!” do realizador, mas antes alguns segundos mais tarde. Ao seguir o actor ou a actriz ao longo do plano, tomada após tomada, o seu ritmo torna-se o meu e esses segundos, em que depois do salto ele é intimado a voltar, são vertiginosos, por nada deste mundo o deixaria só nesse momento.» Caroline Charpentier, «Jouer», Cahiers, Março 2005, 8-9


[Algo que pensava decorrer do filme me tocou neste artigo. Pretendia assim fazer acompanhar esta tradução com o excerto em vídeo da cena em questão. No entanto, ao rever o filme, apercebi-me de que este não (se) aguentava, não o permitia. Estava demasiado obstruído, e falhava. Para piorar as coisas, o que o filme tem de mais sofrível decorre precisamente do trabalho de fotografia da autora do artigo, através de uma câmara irrequieta e falsamente colada às personagens (bem como o som, típico dos filmes franceses correntes actuais, demasiado grave e reverberado, indutor de uma também ela falsa proximidade). Portanto, seja o que for que faz o interesse do texto de Caroline Champetier, tal não me parece acessível na presença directa do filme. Debati-me longamente e acabei por fazer como no artigo original: apresentar vários fotogramas (ainda que não os mesmos). Assim consegue passar-se alguma coisa. Mas o que se perde não é menor. A crença numa pertença do dizer à imagem do filme, que aparece aqui claramente deslocado para um exercício analítico detalhado (como aliás avisa já a própria autora). Eis, então, nesta estranha relação entre aquilo a que nos fazem aceder as imagens fixas e as em movimento, a apresentação de um dos inúmeros limites da cinefilia.]

2 comentários:

Pedro Ludgero disse...

O desafio é conservar essa disponibilidade infantil, à medida que o actor abandona a infância.

Pedro Ludgero (cabodaboatormenta)

André Dias disse...

há uma fabulosa “disponibilidade infantil” (e não apenas nas crianças)... mas diria, ao contrário, que esta criança ao espelho da câmara parece, de forma quase obscena, irremediavelmente adulta. (talvez por pudor, todo o trabalho de actor me parece obsceno).


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