Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O Homem da enxada | The Man of the hoe

O funcionamento da resistência particular do Idiota, enquanto personagem do pensamento, pode, em momentos revolucionários, ser confundida com a defesa de posições conservadoras. Mas tal é um equívoco nefasto. Porque, se bem que as posições afirmadas ou argumentadas se possam a elas confundir, o movimento expresso pela personagem não é exterior em si à revolução, é-lhe interior de um modo mais profundo. A sua resistência apresenta-se como uma amplitude crescente da própria revolução, se bem que igualmente dificilmente suportável. Na verdade, se é indecidível se as posições são conservadoras ou não, é-o porque o Idiota se apresenta num devir, que por vezes se pode tornar verdadeira traição. Estranha vanguarda que se apressa a assumir a luta infinitamente, sem permitir que um qualquer estado se sobreponha à revolução.
The functioning of the specific resistance of the Idiot — as a character of thought — may in some revolutionary moments be confused with the defense of conservative positions. This would be a serious incomprehension, since the movement expressed by the character — although avowing or arguing views that might be confused with those — is not in itself extrinsic to the revolution. His resistance presents the growing amplitude of the revolution, even if equally unbearable. In truth, it is indecisive if his views are conservative or not, but because the Idiot is in the process of becoming, which might turn into a true treason. Strange vanguard that takes the fight infinitely, not allowing any State whatsoever to surmount the revolution (life).



No filme TORRE BELA (1975) de Thomas Harlan, documentário que acompanha a ocupação de uma propriedade rural no período pós-25 de Abril, essa confusão aparece de forma extremamente evidente, de modo a formar uma precisa manifestação da personagem do Idiota – o Homem da enxada. Este homem questiona o porquê da colectivização da sua ferramenta em prol da cooperativa a formar pelo conjunto dos trabalhadores agricolas. Recusa-se a compreender tal necessidade perante o porta-voz do movimento e perante os outros companheiros de ocupação daquela propriedade. Mas o fundamental do episódio não é hoje, para nós, tanto a argumentação sobre as vantagens da propriedade colectiva versus as liberdades individuais. É antes a intuição suspeita que a personagem projecta com toda a sua força perante o movimento súbito de alteração das mentalidades e pensamentos reinantes, de substituição de evidências.
Se o Homem da enxada resiste ao processo revolucionário é por ser ele próprio portador de um devir revolucionário ainda maior e mais selvagem, mas que, no entanto, desencaminha aquela revolução assim como que pouco exigente. Essa recusa apresenta-se como momento particular da necessidade vital de recusar a politização de todas as dimensões da vida. Esta é a evidência não explícita desta personagem. A de que a liberdade humana, tendo como meio a política, não se confunde a ela totalmente. Daqui se deduz a violência inerente a todas as formas políticas que não abranjam e aceitem até a própria recusa de participação política. Para que a liberdade fosse um estado total adquirido, a participação política teria de se sobrepor à vida na sua totalidade. Difícil paradoxo a que o voluntarismo da esquerda nunca saberá responder.
Acompanhando esta negação, a intuição do cansaço (não admira assim que a montagem do filme coloque a seguir desta sequência, com intenções claras de leitura, a imagem do Homem da enxada adormecido) manifesta-se como verdadeira vanguarda, antecipação do falhanço, não da revolução em si, mas da sua estatização forçada, o tornar-se um Estado, reterritorialização tão nefasta como infelizmente inevitável.
In Thomas Harlan’s film TORRE BELA (1977), a documentary accompanying the occupation of a rural property in the period post-Portuguese revolution of 1974, the mentioned confusion appears in a extremely tangible way, so as to form a precise manifestation of the Idiot as character: the Man of the hoe. This man questions why his instrument of labor has to be collectivized in favor of the cooperative to be formed by the assembly of rural workers. He refuses to understand that necessity before the spokesman of the movement and other companions in the occupation of the property. But the fundamental of the episode remains today not so much on the argument about the advantages of collective property against private liberties. It lays rather in the suspicious intuition the character projects with all its force when facing the sudden movement of changing mentalities and of reigning thoughts, the substitution of convictions.
If the Man of the hoe resists the revolutionary process it’s because he himself is the bearer of an even wider and wilder revolutionary becoming that, nonetheless, overthrows such sort of revolution not demanding enough. That refusal appears as the specific moment of a vital necessity to refuse the politicization of all life’s dimensions. This is the non-explicit indication of the character. Human liberty — having politics as its mean — doesn’t confound completely with it. From here we can deduce an inherent violence to all political forms that do not comprehend and even accept the refusal of political participation. In order for liberty to be a total acquired state, political participation would have to overlap life in its entirety. Such a difficult paradox left-wing voluntarism will never know the answer to!
Accompanying this denial, the intuition of tiredness (it comes as no surprise that the clearly intended editing shows, following the discussion sequence, the Man of the hoe asleep) manifests as true vanguard, anticipation of the failure, not of revolution itself, but of its forced statization, its becoming State, a reterritorialization that seems as fatal as unfortunately inevitable.



Contra o voluntarismo, tão característico da formas de esquerda política, esta encarnação da personagem do Idiota faz finca-pé na negação. Antecipam-se, como na reacção também cansada do porta-voz, as tendências do voluntarismo pós-revolucionário que tende, independentemente das suas conquistas sociais e culturais, a tornar-se em massacre para os que apresentam uma ligeira resistência, essencialmente mental, ao processo. O Homem da enxada, penúltima encarnação da personagem do Idiota do pensamento, resiste para proteger a vida das estruturas políticas territoriais devindas loucas, que a sujeitam a acelerações e paragens demasiado bruscas.
Against voluntarism, so typical of left-wing political forms, this incarnation of the Idiot as character stands stubbornly in denial. One anticipates, as in the also tired reaction of the spokesman, the tendencies of post-revolutionary voluntarism that, independently of its social and cultural conquests, tends to become a massacre to those who present a slight resistance, essentially mental, to the process (Mandelstam, etc.). The Man of the hoe, penultimate incarnation of the Idiot as character of thought, resists in order to protect life from the territorial-political structures gone mad, that would subject it to far too sudden accelerations and stops.

2 comentários:

Andy Rector disse...

Insofar as I understand involuntarism, and with this translation I've come closer, I believe that in the history of forms, as it were, it has a clear literary antecedent: Jaroslav Hašek's GOOD SOLDIER SCHWEIK. It must be read to be believed, the constant shock of the character Schweik's opposing positions in a politicized landscape where even his life is at stake (in war, chain of command, etc). Said Brecht about Schweik: "Reading the old Schweik in the train, I am again overwhelmed by Hašek's grand panorama and by the genuinely unconstructive attitude of the people, which, being itself the only constructive element, cannot take a constructive attitude to anything else. Under no circumstances must Schweik become (BB was writing a stage version of the book) a cunning underhanded saboteur. he is just an opportunist specializing in exploiting the little opportunities that remain open to him. Inasmuch as he approves of any kind of order, he honestly approves of the existing order, destructive as its consequences are for him, even a nationalist order which he experiences as a form of oppression. His wisdom is devastating. His indestructibility makes him the inexhaustible object of maltreatment and at the same time fertile ground for liberation." (27 May, 1943)

J. disse...

Nunca ouvi em lado nenhum que este trabalhador fosse o Idiota a não ser aqui. Nunca ouvi também de nenhum comentador nenhuma depreciação àcerca da resistência deste homem em dar a ferramenta, ciente que está e estamos de que as ferramentas não são as mesmas e não são tratadas da mesma forma, e que, portanto, como ele, também quereríamos levar a nossa enchada para casa. Esta leitura das vanguardas voluntaristas que querem colectivizar tudo e um par de botas é uma leitura grosseira e abusiva sobre uma cena que representa muito menos ou nada disso e muito mais a aprendizagem por parte de vários elementos (nenhum letrado todos idiotas neste sentido se é este o sentido do idiota) do que é conseguirem construir o seu mundo em conjunto, em começar de novo, em acreditar uns nos outros.
A Cooperativa desempenha nesta cena um lugar mais cómico que assustador, muito mais uma construção do que pode ser. E é neste diálogos e nestas negociações que se faz.
Querer ver o papão do estalinismo e vanguardas iluminadas a oprimir os seres livres é tão redutor como preconceituoso. E desadequado porque, ao que tudo indica, o realizador nem está perto do comunismo ou de qualquer "esquerda".

Saudações da Cooperativa
Josina Almeida


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