Museu
«(...) O uso é sempre relação como um inapropriável, refere-se às coisas na medida em que estas não podem tornar-se objecto de posse. Mas, deste modo, o uso põe igualmente a nu a verdadeira natureza da propriedade, que não é senão o dispositivo que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada na qual é convertido em direito. Se hoje os consumidores na sociedade de massas são infelizes, não é apenas porque consomem objectos que incorporaram em si a sua desusabilidade, mas também e sobretudo porque crêem exercer sobre eles o seu direito de propriedade, porque tornaram-se incapazes de os profanar.
A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A museificação do mundo é hoje um facto realizado. Uma a seguir à outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens – a arte, a religião, a filosofia, a ideia de natureza, e até a política – retiraram-se uma a uma docilmente para o Museu. Museu não designa aqui um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere aquilo que em tempos foi sentido como verdadeiro e decisivo, e agora já não. O Museu pode coincidir, neste sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso património da humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural) e até com um grupo de indivíduos (enquanto representando uma forma de vida desaparecida). Mas, mais em geral, hoje tudo se pode tornar Museu, porque este termo nomeia simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de experienciar.
Por isto, com o Museu, a analogia entre capitalismo e religião torna-se evidente. O Museu ocupa exactamente o mesmo espaço e função que eram em tempos reservados ao Templo enquanto lugar do sacrifício. Aos fiéis no Templo – ou aos peregrinos que percorriam a terra de Templo em Templo, de santuário em santuário – correspondem hoje os turistas, que viajam sem paz num mundo alienado em Museu. Mas enquanto os fiéis e os peregrinos participavam afinal num sacrifício que, separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o humano, os turistas celebram na sua pessoa um ato sacrificial que consiste na angustiante experiência da destruição de todo o uso possível. Se os cristãos eram “peregrinos”, isto é, estrangeiros sobre a terra, porque sabiam ter no céu a sua pátria, os adeptos do novo culto capitalista não têm pátria alguma, porque moram na pura forma da separação. Onde quer que vão, reencontram multiplicada e levada ao extremo a mesma impossibilidade de habitar que tinham conhecido nas suas casas e nas suas cidades, a mesma incapacidade de usar que tinham experimentado nos supermercados, nos Shoppings e nos espectáculos televisivos. Por isto, como o que representa o culto e altar da religião capitalista, o turismo é hoje a primeira indústria do mundo, que movimenta cada ano mais de 650 milhões de homens. E nada é tão espantoso quanto o facto de que milhões de homens normais consigam levar a cabo na própria carne a experiência talvez mais desesperada que é dada a cada um ter: a da perda irrevogável de todo o uso, da absoluta impossibilidade de profanar. (...)»
Giorgio Agamben, «Elogio della profanazione» [trad. minha], Profanazioni, nottetempo, Roma, 2005, pp. 95-97.
2 comentários:
Oi Andre Dias,
O texto do Agamben é muito importante para pensar o presente. Que bom você o tem tornado disponível ao uso. Fiquei muito interessado em ler o ensaio "Elogio da profanação". Você tem outros trechos (ou o próprio) traduzido?
vprigol@unochapeco.edu.br
Abraços,
Valdir Prigol
Também acho o Giorgio Agamben um pensador importantíssimo para a compreensão, mesmo que paradoxal, das forças que atravessam o presente. Estes excertos do texto «Elogio da profanação» traduzi-os por prazer e urgência. No entanto, a editora portuguesa Cotovia (www.livroscotovia.pt) tem prevista a edição de Profanações, livro que inclui este e outros textos, nos próximos meses.
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