Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Crítica do contemporâneo - Política
Que configurações políticas definem o nosso presente?
Ciclo de conferências em Serralves, Porto

«A matéria política com que estamos hoje confrontados implica um pensamento crítico das categorias tradicionais e uma reflexão teórica que vai no sentido inverso à despolitização generalizada da sociedade contemporânea, a partir do momento em que a política ficou submetida à regra do espectáculo e do pragmatismo técnico-económico que a reduz a meros actos governativos de gestão e administração.» (António Guerreiro, comissário)



O Mundo e o Ocidente, hoje. Sobre as formas do conflito na era global
Giacomo Marramao
5ª, 29 de Março, 21h30

As desventuras contemporâneas do pensamento crítico
Jacques Rancière
5ª, 12 de Abril, 21h30

A técnica na sua relação com o humano
Peter Sloterdijk
5ª, 3 de Maio, 21h30
A teologia política e económica do nosso tempo
Giorgio Agamben
5ª, 28 de Junho, 21h30 (por confirmar)

Outro final para o 25 de Abril



Eduardo Lourenço julga reconhecer, na vitória do esqueleto de armário num concurso televisivo, a «morte simbólica do 25 de Abril» (Público, 27.3.2007). A reacção mais comum a esta interpretação da "morte simbólica" é a de que se trata certamente de um exagero. Pelo contrário, pensamos que, noutra visão, menos circunscrita ao impacto estatístico e mediático, tal se poderia previamente ter encontrado, com muito mais força, na obra de Pedro Costa que aqui convocamos.
Algumas afirmações deste realizador, explicitamente provocantes, passam por vezes desapercebidas. No nosso pobre contexto, ainda bem que assim é. Assim, não tivemos de lidar com ondas solenes de indignação por Pedro Costa comparar as barracas da Damaia aos campos de concentração. O tom vagamente insuportável com que Pedro Costa faz afirmações semelhantes, desprezando habitualmente de antemão qualquer possível diálogo e qualificando todos os seus interlocutores (na verdade, apenas os portugueses) de pequenos-burgueses, não ajudará.
Devemos então tentar fazer um esforço para distinguir entre aquilo que releva de uma afirmação criativa e de uma opinião, e depois avaliar acerca da sua consistência respectiva. Há que reconhecer um valor social conservador na manutenção da confusão entre afirmações e opiniões, já que as opiniões meramente se equivalem. Para mais, há quem queira fazer de tudo isto que se faz e diz um mero debate de opiniões. Talvez por isso não haja escândalo, ou então ninguém está atento à enormidade do que vai sendo dito. A impunidade vai-se assim instalando...
Portanto, a afirmação polémica relativa aos campos podemos deixá-la cair no silêncio, convocando-a apenas para nos desequilibrar. Não é este silencio que pretendemos perturbar, mas sim outro. Serve, apesar de tudo, de contexto para um questionamento. Que função cumprem as afirmações de um realizador perante a apresentação da sua obra? E assim, que papel social cumpre ele? Talvez um inversamente proporcional, em autoridade, ao número dos que vêem os seus filmes, dos que o evitam mesmo, e não são assim tão poucos.

Confesso não fazer a mínima ideia do grau de consciência que tem Pedro Costa destas suas afirmações, em particular, do que elas implicam, da imagem que fazem quebrar. Acredito que a tenha, no seu jeito escorregadio, ele que diz que «a memória pode ser a melhor ou a pior das prisões [...] anuncia os maiores horrores». Quanto ao que nos chama aqui, um outro final para o 25 de Abril, que não o de um retorno reaccionário, creio que o problema é mesmo esse, o de uma improdutividade da memória, como imagem destituída de força, que foi deixada à sua reprodutibilidade estéril, essencialmente defensiva.
O fim do 25 de Abril, ou da sua imagem, eis a afirmação de Pedro Costa. Salvo desconhecimento, eis a primeira rejeição séria, no sentido de consequente e associada a uma obra, do 25 de Abril enquanto acontecimento libertador, vinda de uma sensibilidade reconhecível como de esquerda. Como algo que emerge de rompante, não ligeiro, não subtil. Uma imagem que se quebra definitivamente, que nos impede de identificar a um momento histórico, a uma posição estabilizada e cristalizada. Veja-se a dificuldade tremenda para arrancar este frágil golpe que quebra a imagem. Quantos filmes não precisou Pedro Costa para esta afirmação, neste caso cinematográfica, da constituição destas figuras “reais”, que não são “partidários” de nada a não ser da sua comunidade solidária de miséria que se confunde à liberdade, comunidade política constituída pela negação de direitos e condições, que recusam os prédios brancos por não terem vida, paredes de aranhas? Não era disto que estávamos afinal à procura há tanto tempo? De quebrar a imagem que nos aprisionava, que nos cingia os sonhos políticos nocturnos e diurnos? Uma imagem-tormento, essa do 25 de Abril acontecimento. Como será não precisarmos mais dela, não nos reclamarmos apenas do que ficou por fazer, não nos consolarmos com o que de bonito foi feito e pensado? Que arqueologia necessitamos para indagar desses gritos de recusa, por exemplo, do Homem da enxada no Torre Bela, onde irrompia lindíssima a liberdade, ou de um José Mário Branco momentaneamente enlouquecido de lucidez no «F.M.I.», antes da penosa consolação do “valeu a pena”, espécie de “foi bonita a festa, pá” com que nos desviamos uns dos outros. Há aqui, então, algo de inabitual, de mais profundo, nestas novas afirmações de Pedro Costa que tomam por referência o 25 de Abril, que vêm estender bem para lá do geralmente admissível o habitual lamento com que nos comprazemos sobre o nosso destino comum. Estas duas citações, que procurei relacionar, se tomadas em atenção particular, são elucidativas por si. Mas de que é que são, de facto, elucidativas? O facto que elucidam é explicitado pelo próprio Pedro Costa: «o fracasso do 25 de Abril».
Esse fracasso não é surpresa para ninguém, muito menos para as gentes de esquerda. Não o disseram antes tantos outros, não estava já esse fracasso inscrito geneticamente na própria revolução? Afinal, não estava essa imagem comovedoramente plasmada no Torre Bela de Thomas Harlan, no relato impiedoso, se bem que caloroso, da impossibilidade concreta do sonho? Mas tomemos tudo isto sem arrependimentos, já que é o arrependimento que melhor caracteriza aqueles que cumprem as máscaras do poder. (Não se exige ainda hoje – no mesmo Público de 27.3.2007, num artigo leviano de Alexandra Prado Coelho – aos “guerrilheiros” (chamem-lhes o que quiserem) dos Bader-Meinhof um “pedido de desculpas”, por actos passados apenas trinta e tal anos depois, na mesma Alemanha tremenda dos campos de concentração e extermínio, como se um sentimental “pedido de desculpas” ou uma qualquer declaração de arrependimento tivesse algum valor na consideração de um plano político?)
Somos forçados, por muito que nos custe e inquiete, a interrogar-nos sobre a quem interessa, objectivamente, conservar hoje a memória apodrecida do 25 de Abril? Teremos, creio, que reconhecer que é aos “conservadores”, no sentido mais abrangente e que cobre a totalidade do espectro político, em si devindo inútil como cansativo teatro, a quem isso serve. É portanto o próprio fim do 25 de Abril enquanto imagem que está em causa. Que seria de uma esquerda instituída, chamamo-lhe assim por hábito ou por convicção [«A esquerda é o conjunto dos devires menores»], se destituída dessa imagem-súmula de desejos, pesos e falhanços? Que fariam os partidos ditos de esquerda entregues à memória normalizadora do 25 de Novembro que começa a ser comemorado, sua verdadeira paternidade? Que seria de Sócrates e outros que tais sem a memória de Abril, senão um mera tecnocracia ainda mais nua? Tudo isto não fará decerto sentido para os que daquela imagem nunca estiveram presos, os vagamente apolíticos que nunca foram enleados pelo vento forte da revolução, os que não se comovem com o povo que aprendia a ler, por exemplo. Mesmo a direita, saberá o que é perder a imagem do 25 de Abril? Que miserável é o 25 de Novembro sem o 25 de Abril, senão um mero exercício de normalização, uma mera reterritorialização na forma estatal, o prejuízo das forças libertas, a porcaria varrida para debaixo do tapete. É portanto o 25 de Abril como um todo (incluindo o 25 de Novembro) que exige ser repensado. O cinema e aquilo que o habita, pelo menos, exige-o. Quem mais?
Ventura em Juventude em marcha parece-nos ao mesmo tempo “uma personagem histórica (derrotada), [que] vem de um passado já quase esquecido” (como intuía Cristina Marti) e, sobretudo, uma figura nova que impregna a derrota de todos, percursor de uma política por vir, que não restrita às lutas passadas, antes linha aberta da emergência de todos. Neste sentido, não apenas um zombie, um morto-vivo “representante da história [...] do Portugal miscigenado”, mas mais «um representante da gente que vagueia “entre”, entre vidas [...], e [que] já não tem propriamente nem um lugar nem uma terra na... terra» (Luís Miguel Oliveira), precisamente uma das condições da (bio)política do nosso tempo. Por isso é ainda mais difícil a reivindicação da memória, como injunção straubiana de inspiração benjaminia de uma história por redimir, e que é, por vezes, no mínimo contraproducente e apenas vagamente familiar, porventura inútil nostalgia das lutas passadas que muitas vezes, aliás, pouco se assemelham às novas que nos circundam.
Assim, como podemos dar-nos ao luxo de não levar minimamente a sério o mais importante artista português contemporâneo, um cineasta precisamente, quando as suas composições explicitamente constróem novos sujeitos políticos, por muito deslocados de todos os centros que estejam? Convenhamos que parece praticamente impossível reinventar a política com as pessoas armadas de telemóvel num dia de sol no centro comercial, não? Alguém imagina sequer o que isso seja?
Mas, esgotamento da esquerda, fim do 25 de Abril, porquê? Não sobrevivem apenas como hipóteses, utópica ou comemorativa, sempre por vir? É a estas hipóteses que Pedro Costa põe finalmente fim com a original construção destes novos sujeitos políticos cinematográficos - em No quarto da Vanda e Juventude em marcha, nas personagens de Vanda e Ventura, respectivamente e em particular, mas não só - que, excluídos como foram no tempo e no resultado, não configuram apenas a ultrapassagem do 25 de Abril como um “pós-” aliviado. Pelo contrário, estes sujeitos políticos são, não apenas marginalizados do 25 de abril, mas excluídos da nossa política espectral e tecno-burocrática, dividida entre esquerda e direita e incapaz de dar conta do desafio biopolítico com que nos defrontamos. Apesar do repetido equívoco que pode ser a constituição de uma nova personagem-sujeito político, mesmo que esvaziada das suas funções redentoras, obriga-nos a pensar entrelaçadamente uma particular redefinição da esquerda, necessariamente não voluntarista, para confrontar-se ao advento da biopolítica.

(Doutra maneira, não era um pouco disto também que nos falava Herberto Helder há tantos anos, naquele livro por de entre os mais luminosos? Não eram essas as impressões de um amargo Joaquim Manuel Magalhães em Alta noite em alta fraga, no único livro de poesia que conheço que convoca consequentemente a vida das roulottes e do IC19, e que gritava contra «um assassino, o país»?)

O 25 de Abril, segundo Pedro Costa


«Enquanto preparávamos as cenas do passado na barraca de madeira, um dia o Ventura disse-me: “Eu morri aqui muitas noites.” Percebi nessa altura a prisão que esse lugar foi. A memória pode ser a melhor ou a pior das prisões. O Ventura foi ao mesmo tempo guarda e prisioneiro, só com esta carta por consolo, que, de repente, me pareceu que era só isso, ou seja, era só repeti-la.
– Ela tornou-se um refrão...
A repetição da carta acalma a sua dor, mas, por outro lado, anuncia os maiores horrores.
– A carta serve para não esquecer...
Posso dizer que nessa carta de Desnos, do Ventura e, de certa maneira, também minha há um desejo de vingança, uma sede de sangue. Está para além da carta de amor: é um testamento, um manifesto político e uma declaração de guerra.
– Contra o capital, contra a barbárie?
Pela memória, pela justiça e pelo amor.
– É contra o país?
Não se podem fazer filmes contra. Só consigo fazer filmes por. Pelos que não sabem escrever as cartas, pelos que não têm as palavras. Um filme, se não for feito com estas convicções, não existe.
Ventura lembra um dos prisioneiros de Auschwitz, com aquela camisa listada...
Nunca tinha pensado nisso. A camisa que arranjámos parecia-nos dos anos 70, mas lembro que, em Casa de lava, filmei o nosso próprio campo de concentração, o Tarrafal. Por vezes, sinto que não é assim tão diferente a tortura, o castigo, a sentença de morte numa barraca da Damaia ou em Auschwitz.»

«E perguntei-me: será que eu não me cruzei com este homem [Ventura] na rua, no metro, nalguma tasca do Bairro Alto? Afinal, estávamos muito mais próximos do que eu julgava. Neste encontro inesperado entre o seu passado e o meu, surgiu a identificação. E isso lançou outras ideias para o filme.
– Em que momento?
Por exemplo, quando percebi que o 25 de Abril, que para mim foi um entusiasmo, tinha sido para Ventura um pesadelo. Ele chega a Portugal em 1972, encontra trabalho bem pago, dão-lhe um contrato. Julga que se vai safar. Depois vem a Revolução e ele conta-me a história secreta dos imigrantes cabo-verdianos na Lisboa do pós-25 de Abril, a história que ninguém ainda contou. Eles tiveram muito medo de serem expulsos ou de acabarem na prisão. Barricaram-se. Nessa altura eu estava na rua, era adolescente. Durante a rodagem, fui procurar um álbum de fotos das manifestações do 1º de maio com aqueles milhares de pessoas em festa, e é incrível: não se vê um único preto. Onde estava eles? Ventura contou-me que estavam todos juntos, aterrados de medo, escondidos no Jardim da Estrela, a temer pelo futuro. Contou-me como a polícia militar, em plena euforia, partia à noite para os bairros de lata para “caçar pretos”. Parece que os amarravam às árvores para se divertirem. Juventude em marcha é também um filme sobre o fracasso do 25 de Abril, porque se a Revolução tivesse vencido, nem o Ventura nem os outros continuavam no mesmo abandono e na mesma infelicidade de há 30 anos. Não quero carregar de ironia o título deste filme, mas não posso nem quero esquecer que todos os “filhos” do Ventura são filhos do 25 de Abril. É por filmar estas coisas da maneira como o faço que não acredito na democracia. Pessoas como o Ventura construíram os museus, os teatros, os condomínios da burguesia. Os bancos e as escolas. Como ainda acontece. E o que eles ajudaram a construir foi o que os derrotou. Há duas partes neste filme, um passado e um presente das Fontaínhas, que coincidem também com o antes e o depois do 25 de Abril. O passado é fraterno, utópico, romântico. Neste tempo está a história da carta de amor que Ventura repete. O presente é resignado, infeliz, medíocre.»

«Quelle a été la réception du film au Portugal ?
Très difficile. Il y a une raison à cela. Un jour,Ventura me raconte l’histoire de la Révolution du 25 avril 1974, quand lui et les siens se sont cachés. « On ne comprenait pas, on voyait des soldats, tout le monde était dehors et criait. » Ils pensent alors qu’ils vont être expulsés, mis en prison. Ils se cachent, organisent des pique-niques clandestins dans les jardins pour échanger des informations. Une sorte de résistance à l’envers, très passive. Ventura m’a raconté des choses que j’ignorais. Ils ont subi des jeux semblables à ceux qui ont été pratiqués en Irak. La nuit, par exemple, les soldats passaient dans les bidonvilles pour s’amuser, ils prenaient des types qui jouaient aux cartes, les emmenaient à Sintra dans la montagne, les déshabillaient, les attachaient à un arbre et les abandonnaient là. Pour Ventura, ce fut un moment de maladie, de confusion, d’enfermement.
Or je crois qu’on ne peut pas raconter le 25 avril de cette façon négative, à travers les Cap-Verdiens. C’est très documentaire, très direct, cette chute dans un abyme historique. Il y a par ailleurs cette histoire de passé-présent que personne ne veut voir. Quelque chose, dans le film, raconte le Portugal d’aujourd’hui : la banlieue souffre d’une douleur enfouie. C’est un truc qui fait un peu peur, un côté malade, qui détruit les jeunes, qui détruit tout ce qui est positif. C’est un film très chargé d’informations, il faut le voir deux fois.»

Pedro Costa,
in «Recordações das casas dos mortos», entrevista de Oscar Faria, Público-Y, 24.11.2006;
«Guarda a minha fala para sempre», entrevista de Francisco Ferreira, Expresso-Actual, 25.11.2006
;
e in «Repliques», entrevista de Emmanuel Burdeau Thierry Lounas, [Cahiers du Cinéma], 4.12.2006




Revolução

«[...] Ponho-me a perguntar o que entende o vosso questionário por “revolução”, e não entendo. A minha revolução nunca existiu: visitei apenas alguns lugares, e em nenhum me consegui converter ao encontro dos meus desencontros. Quanto aos lugares, nunca estavam lá. Eram a conta aberta da minha imaginação. Mas sofri um pouco da sua ausência. Por isso dizem que o mundo não perdoa. Eu perdoei ao mundo visto as suas probabilidades serem sempre excessivamente improváveis. Mas como tenho todo o tempo para perder, é-me lícito e proveitoso dedicar-me à aventura que não encontra o seu próprio fim.
Penso que estou fazer o possível para dar uma resposta coerente, na minha perspectiva, à incoerência das vossas perguntas. Concedo-vos tanto que chego a empenhar certa conivência, pondo em funcionamento uma curiosidade lateral, mas ainda assim animada de alguma vivacidade: mas houve alguma revolução?, mas vai haver uma revolução? Não reparei e, no entanto, sou tão permissivo às trombetas apocalípticas, e aos selos que se abrem no livro, e às trevas e luzes!
Andei realmente a percorrer umas pequenas algazarras, saraus privados, brincadeiras que se proibiam à infância. Mas não dei por que as montanhas tivessem mudado de sítio, nem vi nenhum homem andar sobre as águas. No respeitante a cadáveres, onde estavam as ressurreições? Os cadáveres que havia eram, como sempre, bastante discretos. O que me pareceu foi as pessoas cheirarem a cadáver. O comum. As surpresas do mundo continuavam inoperantes, e, não seria eu a exigir-me surpreender o mundo. Nem o mundo o consente. Tudo o que acontece por acréscimo à burocracia depressa se demove, e cada um fica só, e às vezes inocente bastante para surpreender-se com tanta falta de surpresas. Não sofro de inocência.
E a liberdade? Que pergunta! Não vossa, a pergunta, mas minha. Que a minha liberdade sou eu, e custo-me a sustentar. Entretanto, chegam-me notícias de que é necessário sustentar a liberdade alheia. Mas que faz o alheio, que não faz pelo seu próprio sustento? [...]
Esta revolução, módica, tem o preço da vida. E não há outras: nem revolução, nem vida. Nem outro preço. Nem outro teatro do merecimento.»
Herberto Helder, «(resposta a um inquérito convencional sobre revoluções, liberdades e)»,
Photomaton & Vox, Assírio & Alvim, Lisboa, 1979, pp. 163-165.

Soberania | Sovereignty



A natureza do choque no cinema, tão enganadora, é difícil de compreender. Não apenas o choque não vive por si, mascarando-se de outras sensações, que são o verdadeiramente importante, como está muitas vezes a ser construído no decorrer de todo filme, para se desencadear num dado momento, por exemplo, naquilo que faz precipitar o choro. Algumas pessoas levantam-se, conversam e caminham na direcção das suas vidas, enquanto outras, na escuridão preservada pelo genérico, soluçam de alegria, desapossadas da compreensão.

«Há mais de um ano, estava nas Ardenas, em Sedan e Charleroi, e, num posto dos correios de lá vi fotografias de raparigas que tinham desaparecido na Bélgica e na França. Tinham desaparecido há muito tempo. Havia sempre a sua última fotografia, e depois uma série de imagens geradas por computador. As imagens mostravam como as raparigas podiam parecer há três ou quatro anos atrás e agora. Os retratos gerados por computador eram estranhamente fantasmáticos. Neles viam-se rostos sem qualquer traço de experiência social, estranhamente pálidos, não deste mundo. Na verdade, mortos. Retratos de fantasmas» (Petzold)

Nina, uma adolescente vulnerável, sozinha no mundo, envolve-se amorosamente com uma jovem delinquente e atravessa com ela a cidade. Neste percurso é abordada por uma mulher que diz ser sua mãe e lhe indica alguns sinais corporais como provas dessa filiação. Esta mulher é assombrada pela perda de uma filha há mais de dez anos. Depois de abandonada pela companheira, a adolescente deixa-se acreditar no reencontro com os pais. No entanto, é afastada pela descrença de um pai cansado e de uma mãe perturbada. Na última cena do filme, a adolescente recupera do caixote do lixo de um parque a carteira anteriormente roubada à mulher. Nela encontra algumas fotografias da infância daquela criança desaparecida e um papel que, ao desdobrar, imagem por imagem, lhe descobre alguns dos retratos possíveis do tempo naquele rosto. A cada dobra se confirma a semelhança, a filiação. A adolescente, sem outra ligação ao mundo, deixa cair tudo de novo no caixote do lixo e some-se, com o seu andar envergonhado, pelo parque da cidade.

Este final de Gespenster de Christian Petzold é do mais simples, do mais violento que se possa imaginar. (Lamento profundamente que a minha descrição não lhe faça justiça). Na brusquidão com que se dá, desapossa-nos de qualquer esperança – é mesmo uma apresentação do sem-esperança – e desapossa-nos de qualquer ideia de compaixão, pois não há ali compaixão de nada por ninguém, de ninguém por nada. Nem da personagem por si, nem do mundo que a espera. No entanto, deixamo-la conquistadora de uma liberdade inigualável, dolorosa e à beira do insuportável. E aí é toda a esperança, se a pode haver, toda a paixão, que fica como resto. Uma paixão, uma esperança, depois de tudo perdido.
Ao deixar cair no caixote do lixo (da memória) as fotografias, surge uma dificilmente compreensível espécie de recusa, gesto que o orgulho não abrange, nem o despeito, nem a displicência. As explicações que possamos ou queiramos dar-lhe desvanecem-se, por fraqueza, como meras interpretações, narrativas ou psicológicas (ou qualquer que seja a sua natureza), sem poder nenhum, de existências destruída perante a força do gesto que rejeita a semelhança e a filiação. [Conhece-se o peso e a importância enorme que tem a procura da filiação, do vínculo familiar. No extremo oposto, não punha o A.I. de Spielberg uma criança, alheia a tudo, a descobrir e a atravessar a imensidão do cosmos só para encontrar a mãezinha?]
A força deste gesto não deriva, no entanto, apenas de nos ser incompreensível. Trata-se de um gesto próprio de uma ambiguidade de tipo superior; uma que não oscila entre elementos incomportáveis, antes os destrói. Uma acentuação daquela que é a estratégia mais profunda da ambiguidade, o esvaziamento. Estratégia tanto mais cruel quanto nada, rigorosamente nada, nos é permitido entrever do destino futuro da jovem personagem, absolutamente deserdada. Terrível é a suspeita de que seja preciso deserdar absolutamente para que se consiga uma fresta de vida livre.
A verdadeira soberania parece estar na apropriação, na abertura forçada desse hiato esvaziado. Porque não é soberano quem quer. Como noutras matérias, há um equilíbrio incógnito, desconhecido, entre vida consciente e inconsciente, que cabe a cada um encontrar, no seu tempo de vida. Será precisamente à personagem aparentemente mais frágil, mais desesperada, mais sujeita ao desequilíbrio, que caberá o gesto mais livre, mais soberano, o de uma criança que esteve ausente, e que é irremediável.


(Às vezes, não há acasos. Harun Farocki, com quem Christian Petzold trabalhou como assistente de realização, participou na escrita deste filme. Ambos, mais a maravilhosa Julia Hummer (“Nina”, na imagem), fizeram um outro filme, alguns anos antes, filmado parcialmente em Portugal – Die Innere Sicherheit/The state I am in. O IndieLisboa teve a feliz ideia de o programar para Abril.)
The nature of shock in cinema, so deceitful, is difficult to understand. Not only shock doesn’t stand by itself, disguising in other sensations that are the truly important, as it is often being built along the film’s duration, irrupting at a certain moment, for instance, at what makes a cry burst. Some people get up, chat and walk in direction to their lives, while others, in the credits preserved darkness, sob with joy, dispossessed of understanding.

«A good year ago, I was in Ardennen, in Sedan and Charleroi, and in a post office there, I saw photos of girls who had disappeared from Belgium and France. They had been gone a long time. There was always the last photo of them, and then a series of computer-generated images. The images showed the girls as they might have looked three and two years ago, and how they might look now. The computer-generated portraits were strangely ghostlike. In them, you saw visages without any traces of social experience, strangely pale, not of this world. In reality, dead. Ghost portraits.» (Petzold)

Nina, a vulnerable adolescent who is alone in the world, becomes emotionally involved with a young female delinquent and walks through the city with her. During this journey a woman who claims to be her mother approaches her and indicates some corporal signs as proof of this parentage. This woman is haunted by the loss of a female child ten years ago. After being abandoned by her girlfriend, the adolescent lets herself believe at a reunion with the parents. However, she is kept apart by the tired father’s incredulity and the mother’s insanity. In the film’s last scene, the adolescent recovers from a trash bin at the park the woman’s wallet, which had been previously stolen. In it she finds some photographs of the disappeared child’s infancy and a paper that, when unfolded, image-by-image, reveals some of the possible pictures of time through that face. Each fold confirms the similarity, the parentage. The adolescent, by now with no other bond to the world, leaves everything again in the trash bin and flees, with her ashamed march, through that park in the city.

This ending of Gespenster/Ghosts by Christian Petzold is the simplest, the most violent one can imagine. (I deeply regret my description not making justice to it). In the abruptness in which it happens, it dispossess us of any hope – it’s actually an exhibition of the without-hope condition – and it dispossess us of any idea of compassion, for there isn’t any compassion from something to someone, or from someone to something. Neither from the character for itself, nor from the world that expects her. However, we leave her as a conqueror of some unmatchable freedom, a painful and almost unbearable one. And there, all hope, if one can have it, all passion remains. A passion, hope, after all is lost.
When she leaves the photographs in trash bin (of memory), a hardly understandable kind of refusal erupts, a gesture that pride does not enclose, nor spite, nor negligence. Explanations one can or wants to give just vanish, for their weakness, as mere narrative or psychological interpretations (or from any other kind), without any capability, mere destroyed existences facing the gesture’s strength that rejects resemblance and parentage. [One knows too well the weight and enormous importance the search for one’s parentage or family bond has. In quite an opposite way, didn’t Spielberg’s A.I. put a child, unmoved by anything, alone to discover and cross the cosmos immenseness only to find his little mama?]
This gesture’s strength does not come, however, exclusively from its non-comprehension. It’s the particular gesture of a superior type of ambiguity, one that does not oscillate between incompatible elements, and destroys them instead. That’s an accentuation of ambiguity’s profoundest strategy, the emptying process. A strategy that is so cruel, since nothing, absolutely nothing, allows us to foresee the future destiny of the young character’s future, as she’s completely disinherited. Terrible is the suspicion that one has to disinherit absolutely so that one can obtain a free life’s glimpse.
True sovereignty seems to be in the appropriation, in the forced opening of this emptied crack. Cause sovereignty is not merely a choice. As in other matters, there is an unknown balance, incognito, between conscientious and unconscious life, which everyone has to find on their own, during their lifetime. It’s precisely the apparently most fragile character, the most desperate, the most subject to unbalance, that will have the freest gesture, the most sovereign, the one from a child who was absent, the one which is irremediable.


(Sometimes, there’s no coincidence involved. Harun Farocki, with whom Christian Petzold worked as assistant director, participated in the film’s writing. Both, plus the wonderful Julia Hummer (“Nina”, in the image), made another film, some years before, partially filmed in Portugal – Die Innere Sicherheit/The state I am in. IndieLisboa Film Festival had the great idea of screening it next April.)

Os monitores são o controlo | Monitors are control

«Porque é que não usa monitor nas filmagens?
Christian PETZOLD - Porque assim só se dizem disparates. Porque assim não se vê o que os actores estão a fazer, vê-se apenas o que irá acontecer mais tarde na sala de montagem. Quando estou sentado na sala de montagem, em frente a uma imagem, falo dela diferentemente de quando tenho os actores à minha frente. Na sala de montagem, a imagem é o importante, já não considero o conjunto. Mas quando nas filmagens olho fixamente para o monitor, por trás do qual os actores representam, só consigo dizer “um pouco mais para a esquerda, para a direita...” A coisa morre. Os monitores são o controlo. Na sala de montagem, onde tenho dois monitores, já não se trata de controlo, mas de combinações. Apenas com uma imagem, a do monitor nas filmagens, consigo aperceber-me de que a representação dos actores não funciona, mas não o porquê disso. Estou concentrado na imagem e não na representação. Depois de filmar uma cena, a primeira coisa que faço é ir ter com os actores e perceber o que acharam. Só depois vou ter com o Hans [Fromm, director de fotografia] e lhe pergunto se ficou bem tecnicamente. De qualquer modo, a verdade obtenho-a pelo engenheiro de som, através dos auscultadores. Para a representação, penso que o som é bastante mais importante do que a imagem. Os tons das vozes dizem-me se a representação num take era uma merda ou não. Isso não se consegue ver nas imagens.»
«Why don’t you use a monitor on set?
Christian PETZOLD - Because then you talk utter rubbish. Because then you don’t watch what the actors are doing, you watch what’s going to happen in the cutting room later. When I’m sitting in front of an image in the cutting room, I talk about it differently than when I have the actors in front of me. In the cutting room, the image is important, I don’t consider the blocking anymore. But when I stare into a monitor on set – and the actors are beyond it – then I just say “a bit further to the right or left...” The whole thing dies. Monitors are control. In the cutting room, where we have two monitors, it’s not about control anymore, it’s about combinations. But with just one image, on a monitor on set, I can see that a scene between the actors isn’t working, but I can’t tell why not. I’m concentrating on the image and not on the acting. After shooting a scene, the first thing I do is to go to the actors and find out how it was for them. Only then do I go to Hans and ask whether it was technically okay. Anyway, I get the truth from the soundman, through the headset. I find that, in acting, sound is far more important than visuals. The tones of the voices tell me whether the take was crap or not. You can’t see that in the images.»
Christian Petzold, «Gespernster» Press Kit

Fêmeas

?

[E agora, algo de completamente diferente...]

Assim a modos de antropologia precoce, e em jeito de esclarecimento introdutório, queria salientar um dos aspectos mais caricatos e surpreendentes dos blogues em geral. Trata-se da tendência para a súbita aparição de imagens de "gajas boas", mesmo ou sobretudo no meio de discussões e textos aparentemente sérios. Tal curto-circuito mental, tão cândido, não pára de me espantar. A ingenuidade do gesto é comovedora.
Como pretendia iniciar uma série dedicada a algumas "fêmeas" em particular, e cujo objecto de análise são as mulheres propriamente ditas, não queria que houvesse qualquer confusão. Não uso o termo "fêmea" com qualquer sentido pejorativo, embora reconheça que socialmente o tem. Se desviar os sentidos que as palavras têm é dos trabalhos quotidianos mais nobres e urgentes que se podem ter, neste caso, reconheço que o desvio se afigura difícil. E, de resto, nem sei bem ainda explicar porque o prefiro a esse mais abrangente de "mulheres". Assim, "fêmea" refere o «indivíduo cujos órgãos reprodutores produzem um óvulo; por ext. animal do sexo feminino». Talvez seja então o "animal" que me interessa, mas num sentido não meramente reprodutor, muito menos no de "animal de palco".
A ideia desta série vem de longe, mas só a inicio agora, quando quase resolvi este equívoco na minha cabeça. E tal foi apenas possível devido a esta imagem, encontrada um pouco ao acaso. Trata-se de uma fotografia que exala feminilidade, da mais extrema, diria. Precisamente daquela com que nos presenteiam frequentemente, embora em poses de modelo e fotografia estilizada, por exemplo, de cada vez que aparece a querida Scarlett Johansson com as suas mamas. Mas, como tanta coisa nestes tempos, ainda bem que nem tudo é o que parece...
Presumo que não seja de bom tom falar de gratificação em público. Mas parece-me que todas estas imagens têm uma função social reconhecível, de que se fala muito pouco. Uma espécie de último segredinho sujo nesta exposição da sexualidade. Sinto-me bastante idiota por referi-lo, dado que é tão óbvio, mas vejo-me obrigado, for the sake of argument. Estas imagens têm por principal função, aliás de grande utilidade social, o facilitar a libertação das pulsões sexuais solitárias dos homens, em suma, a masturbação. Conscientes deste facto, as bancas de jornais com tantas revistas impregnadas deste género ganham também outra cor.
O que me apetece perguntar é se não é esta imagem que aqui apresento também uma que serve esse propósito de aceleradora da pulsão? Convinha perguntar então a muitos homens se serviria ou não. É pois preciso fazer as perguntas mais estúpidas. Depois da resposta (ou da experiência), deveríamos facultar-lhes a seguinte informação contida nesta série de imagens, que espero elucidativas. Se se limitarem a vê-las aqui, no entanto, dado o tamanho da imagem, será impossível de perceber. Tem de se seguir o link da imagem e procurar pelo trabalho conjunto do fotógrafo Ricardo de Sousa. Depois já não haverá lugar para a suspeita, surgirá bruscamente a evidência.



Mas é precisamente aqui que fica algo por compreender. Na posse desta informação adicional, ainda se consideraria tal imagem como um objecto de desejo, pelo menos confessável? A mim, parece-me que não faz absolutamente nenhum sentido, se falamos de imagens (é afinal delas que falamos?), dizer conscientemente, a posteriori, que não.


Esta pequena excursão destina-se simplesmente a permitir-me, no futuro incerto, escrever a sério sobre as seguintes fêmeas singulares: Pascale Ogier, Madhabi Mukherjee e Eleonora Rossi Drago, entre outras. Sem peso na consciência e, de resto, completamente vestidas, elas.

Ode a Bruno S. | Ode to Bruno S.


«A natureza do seu relacionamento de trabalho com Klaus Kinski está já muito bem documentada, mas como descreveria a sua experiência com Bruno S., a estrela de Kaspar Hauser e Stroszek?
HERZOG – Isso requereria uma resposta muito longa, vou tentar centrar-me. Bruno é um homem cuja vida foi catastrófica na juventude e isso obviamente tornou-o uma pessoa “difícil” de lidar, porque ele suspeitava de qualquer pessoa do exterior, não confiava em ninguém. Tive de estabelecer uma confiança com ele e, depois de ter estabelecido essa confiança, ele tornou-se alguém muito fácil de trabalhar com. Por vezes parava de trabalhar vociferando contra as injustiças do mundo. Eu mantinha a equipa toda nos seus lugares. Dizia-lhes que mesmo que levasse três ou quatro horas com Bruno sempre a falar das injustiças, estaríamos lá e todos ouviríamos. Era sempre significativo. Fazia sempre contacto físico com ele. Agarrava-o sempre e segurava-lhe o pulso. Isso fazia-lhe sempre bem. De resto, é um homem de capacidades fenomenais e de uma profundidade e sofrimentos fenomenais. Transparece na imagem como nada que eu alguma vez fiz transparece. É, para mim, o Soldado Desconhecido do cinema.
Ainda está em contacto com ele?
HERZOG – Dado que agora vivo nos Estados Unidos, há já bastante tempo que não o vejo. Já está reformado. Costumava trabalhar numa fábrica de aço como condutor de uma empilhadeira.»
«The nature of your working relationship with Klaus Kinski has been very well documented, but how would you describe your experience with Kaspar Hauser and Stroszek star Bruno S?
HERZOG – That would require a very long answer but I'll try to focus. Bruno is a man whose life in his youth was catastrophic and obviously made him a "difficult" person to deal with because he would be suspicious of anyone from outside, he would not trust anyone. I had to establish trust and having established trust with him he was very easy to work with. Sometimes he would stop work by ranting against the injustices of the world. I would stop the entire team in their tracks. I told them that even if it takes three or four hours of non-stop Bruno speaking about injustice we would be there and we would all listen. That was always significant. I would always make physical contact with him. I would always grab him and just hold his wrist. That always did him good. Otherwise, he is a man of phenomenal abilities and phenomenal depth and suffering. It translates on the screen like nothing I have ever done translates onto a screen. He is, for me, the Unknown Soldier of Cinema.
Are you still in touch with him?
HERZOG – Since I live in the United States now I have not seen him for quite a long time. He is retired now. He used to work in a steel factory as a forklift truck driver.»

Werner Herzog, in BBC Four Q&A, 27.3.2003

Pessoas anómalas | Abnormal people

«A maior parte das suas personagens parece viver numa terra de ninguém entre a realidade e a ilusão. O que talvez explique o porquê de os objectivos que atribuem a si próprias estarem fora do seu alcance [...]
KIAROSTAMI - Alguém me disse uma vez que a razão pela qual eu era atraído por estas personagens era a de elas serem todas anómalas. E eu acho que as pessoas anómalas, que se esforçam bastante e quebram as barreiras e atravessam as linhas, fazem-nos um serviço, neste sentido, ao dizerem-nos, “Os limites que definiram para nós são demasiado apertados e precisamos de mais espaço.” Devemos olhar para as pessoas anómalas do ponto de vista de um artista. Não devemos agir como num tribunal e julgá-las. Nunca deveríamos querer apresentar as suas fraquezas. Devíamos mostrá-las como exemplos de pessoas que não receberam o cuidado adequado ou atempado. Apesar de todas as leis feitas para a protecção das pessoas desprovidas, elas foram de algum modo deixadas desamparadas e começaram a usar a sua imaginação numa altura em que já não havia qualquer lugar para usar a imaginação – que então inevitavelmente se vira para si própria.»
«Most of your characters seem to be living in a no man’s land between reality and illusion. That may explain why the goals they set for themselves are out of their reach [...]
KIAROSTAMI - Someone once told me the reason I was drawn to these characters was that they were all abnormal. And I think the abnormal people who go to great lengths and break the boundaries and cross the lines do us a service, in a sense, by telling us, “The limits you have set for us are too confining and we need more space.” We should look at abnormal people, that is, from an artist’s point of view. We should not act like a court and put them on trial. We should never want to display their shortcomings. We should show them as examples of people who didn’t receive proper and timely care. Despite all the laws designed for the protection of deprived people, they were somehow left uncared for and started using their imaginations at a point where there was no room left for using one’s imagination — which then will inevitably turn in on itself.»
Abbas Kiarostami, in bright lights

Sabzian


Sr. Sabzian,
como dizia, como fazia
vamos repetir
mais uma vez
agora a sério
aproximamo-nos
vamos interromper
vamos repetir
vamos interromper
o jornalismo,
a família,
os transportes,
o tribunal,
a prisão,
o trabalho,
o desemprego
a família novamente
vamos interromper
a pobre verdade
institucional
oposta
dos cinemas que se prezam mais a si mesmos
fingindo prezar, preservar os outros, cinemas parados no cinema

diga-nos lá, o que raio é o cinema?
como é que se faz?

o cinema e o povo
aqui não, temos
esse cúmulo, em tribunal,
vamos interromper
o juiz, os queixosos,
vamos interromper o tribunal
com o alegado Sabzian,
verdadeiro Mahkmalbaf
dos cansados
desmembro útil da sociedade
vamos interromper
Teerão de mota,
agora sem repetir
de flores, Sabzian-Mahkmalbaf
de ciclista a motociclista
é preciso muito tempo e sofrimento

com Hossein Ali Sabzian, Mohsen Makhmalbaf e Abbas
Kiarostami

2004
(comprem, roubem, espreitem, vejam)
Mr. Sabzian,
like you said, like you did
let’s repeat
one more time
now seriously
we’re getting closer
let’s interrupt
let’s repeat
let’s interrupt
journalism
family
transportation
the court
jail
work
unemployment
family again
let’s interrupt
the poor institutional
opposed
truth
from cinemas who treasure more themselves
seeming to treasure, to preserve others, cinemas stuck
in cinema

please tell us, what the hell is cinema?
how is it done?

the cinema and the people
here we don’t have
that assembly, in court
let’s interrupt
the judge, the plaintiffs
let’s interrupt the court
with the alleged Sabzian
true Mahkmalbaf
of the tired
useful dismember of society
let’s interrupt
Teheran by motorcycle
now without repeating
with flowers, Sabzian-Mahkmalbaf
from bicyclist to motorcyclist
it takes a lot of time and suffering

with Hossein Ali Sabzian, Mohsen Makhmalbaf and Abbas
Kiarostami

2004
(buy, steal, take a peak at, see it)


Não- | Non-

O filósofo deve devir não-filósofo, para que a não‑filosofia devenha a terra e o povo da filosofia.

Deleuze-Guattari, O que é a filosofia?
The philosopher must become non-philosopher so that non‑philosophy becomes the earth and people of philosophy.

Deleuze-Guattari, What is philosophy?

Outros filmes de Março


Deux fois
Jackie Raynal
1968-69, 72’
5ª, dia 1, 19h30
Cinemateca, Lisboa

Stroszek
Werner Herzog
1976, 108’
Sáb, dia 3, 18h30
Malaposta, Odivelas

Journal d’un curé de campagne
Robert Bresson
1951, 110’
Sáb, dia 3, 21h30
Cinemateca


Full frontal
Steven Soderbergh
2002, 101’
4ª, dia 7, 21h30
Cinemateca

Malina
Werner Schroeter
1990, 125’
Sáb, dia 10, 21h30
Malaposta


The naked city
Jules Dassin
1948, 96’
Sáb, dia 10, 22h
Cinemateca

Belle de jour
Luis Buñuel
1967, 100’
5ª, dia 15, 21h30
Cinemateca

Passion
Jean-Luc Godard
1982, 103’
5ª, dia 22, 19h
Cinemateca

Querelle
Rainer Werner Fassbinder
1982, 108’
de dia 22 a 28
Quarteto, Lisboa

La prise du pouvoir par Louis XIV
Roberto Rossellini
1966, 102’
5ª, dia 22, 21h30
2ª, dia 26, 22h

Cinemateca


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