Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Soberania | Sovereignty



A natureza do choque no cinema, tão enganadora, é difícil de compreender. Não apenas o choque não vive por si, mascarando-se de outras sensações, que são o verdadeiramente importante, como está muitas vezes a ser construído no decorrer de todo filme, para se desencadear num dado momento, por exemplo, naquilo que faz precipitar o choro. Algumas pessoas levantam-se, conversam e caminham na direcção das suas vidas, enquanto outras, na escuridão preservada pelo genérico, soluçam de alegria, desapossadas da compreensão.

«Há mais de um ano, estava nas Ardenas, em Sedan e Charleroi, e, num posto dos correios de lá vi fotografias de raparigas que tinham desaparecido na Bélgica e na França. Tinham desaparecido há muito tempo. Havia sempre a sua última fotografia, e depois uma série de imagens geradas por computador. As imagens mostravam como as raparigas podiam parecer há três ou quatro anos atrás e agora. Os retratos gerados por computador eram estranhamente fantasmáticos. Neles viam-se rostos sem qualquer traço de experiência social, estranhamente pálidos, não deste mundo. Na verdade, mortos. Retratos de fantasmas» (Petzold)

Nina, uma adolescente vulnerável, sozinha no mundo, envolve-se amorosamente com uma jovem delinquente e atravessa com ela a cidade. Neste percurso é abordada por uma mulher que diz ser sua mãe e lhe indica alguns sinais corporais como provas dessa filiação. Esta mulher é assombrada pela perda de uma filha há mais de dez anos. Depois de abandonada pela companheira, a adolescente deixa-se acreditar no reencontro com os pais. No entanto, é afastada pela descrença de um pai cansado e de uma mãe perturbada. Na última cena do filme, a adolescente recupera do caixote do lixo de um parque a carteira anteriormente roubada à mulher. Nela encontra algumas fotografias da infância daquela criança desaparecida e um papel que, ao desdobrar, imagem por imagem, lhe descobre alguns dos retratos possíveis do tempo naquele rosto. A cada dobra se confirma a semelhança, a filiação. A adolescente, sem outra ligação ao mundo, deixa cair tudo de novo no caixote do lixo e some-se, com o seu andar envergonhado, pelo parque da cidade.

Este final de Gespenster de Christian Petzold é do mais simples, do mais violento que se possa imaginar. (Lamento profundamente que a minha descrição não lhe faça justiça). Na brusquidão com que se dá, desapossa-nos de qualquer esperança – é mesmo uma apresentação do sem-esperança – e desapossa-nos de qualquer ideia de compaixão, pois não há ali compaixão de nada por ninguém, de ninguém por nada. Nem da personagem por si, nem do mundo que a espera. No entanto, deixamo-la conquistadora de uma liberdade inigualável, dolorosa e à beira do insuportável. E aí é toda a esperança, se a pode haver, toda a paixão, que fica como resto. Uma paixão, uma esperança, depois de tudo perdido.
Ao deixar cair no caixote do lixo (da memória) as fotografias, surge uma dificilmente compreensível espécie de recusa, gesto que o orgulho não abrange, nem o despeito, nem a displicência. As explicações que possamos ou queiramos dar-lhe desvanecem-se, por fraqueza, como meras interpretações, narrativas ou psicológicas (ou qualquer que seja a sua natureza), sem poder nenhum, de existências destruída perante a força do gesto que rejeita a semelhança e a filiação. [Conhece-se o peso e a importância enorme que tem a procura da filiação, do vínculo familiar. No extremo oposto, não punha o A.I. de Spielberg uma criança, alheia a tudo, a descobrir e a atravessar a imensidão do cosmos só para encontrar a mãezinha?]
A força deste gesto não deriva, no entanto, apenas de nos ser incompreensível. Trata-se de um gesto próprio de uma ambiguidade de tipo superior; uma que não oscila entre elementos incomportáveis, antes os destrói. Uma acentuação daquela que é a estratégia mais profunda da ambiguidade, o esvaziamento. Estratégia tanto mais cruel quanto nada, rigorosamente nada, nos é permitido entrever do destino futuro da jovem personagem, absolutamente deserdada. Terrível é a suspeita de que seja preciso deserdar absolutamente para que se consiga uma fresta de vida livre.
A verdadeira soberania parece estar na apropriação, na abertura forçada desse hiato esvaziado. Porque não é soberano quem quer. Como noutras matérias, há um equilíbrio incógnito, desconhecido, entre vida consciente e inconsciente, que cabe a cada um encontrar, no seu tempo de vida. Será precisamente à personagem aparentemente mais frágil, mais desesperada, mais sujeita ao desequilíbrio, que caberá o gesto mais livre, mais soberano, o de uma criança que esteve ausente, e que é irremediável.


(Às vezes, não há acasos. Harun Farocki, com quem Christian Petzold trabalhou como assistente de realização, participou na escrita deste filme. Ambos, mais a maravilhosa Julia Hummer (“Nina”, na imagem), fizeram um outro filme, alguns anos antes, filmado parcialmente em Portugal – Die Innere Sicherheit/The state I am in. O IndieLisboa teve a feliz ideia de o programar para Abril.)
The nature of shock in cinema, so deceitful, is difficult to understand. Not only shock doesn’t stand by itself, disguising in other sensations that are the truly important, as it is often being built along the film’s duration, irrupting at a certain moment, for instance, at what makes a cry burst. Some people get up, chat and walk in direction to their lives, while others, in the credits preserved darkness, sob with joy, dispossessed of understanding.

«A good year ago, I was in Ardennen, in Sedan and Charleroi, and in a post office there, I saw photos of girls who had disappeared from Belgium and France. They had been gone a long time. There was always the last photo of them, and then a series of computer-generated images. The images showed the girls as they might have looked three and two years ago, and how they might look now. The computer-generated portraits were strangely ghostlike. In them, you saw visages without any traces of social experience, strangely pale, not of this world. In reality, dead. Ghost portraits.» (Petzold)

Nina, a vulnerable adolescent who is alone in the world, becomes emotionally involved with a young female delinquent and walks through the city with her. During this journey a woman who claims to be her mother approaches her and indicates some corporal signs as proof of this parentage. This woman is haunted by the loss of a female child ten years ago. After being abandoned by her girlfriend, the adolescent lets herself believe at a reunion with the parents. However, she is kept apart by the tired father’s incredulity and the mother’s insanity. In the film’s last scene, the adolescent recovers from a trash bin at the park the woman’s wallet, which had been previously stolen. In it she finds some photographs of the disappeared child’s infancy and a paper that, when unfolded, image-by-image, reveals some of the possible pictures of time through that face. Each fold confirms the similarity, the parentage. The adolescent, by now with no other bond to the world, leaves everything again in the trash bin and flees, with her ashamed march, through that park in the city.

This ending of Gespenster/Ghosts by Christian Petzold is the simplest, the most violent one can imagine. (I deeply regret my description not making justice to it). In the abruptness in which it happens, it dispossess us of any hope – it’s actually an exhibition of the without-hope condition – and it dispossess us of any idea of compassion, for there isn’t any compassion from something to someone, or from someone to something. Neither from the character for itself, nor from the world that expects her. However, we leave her as a conqueror of some unmatchable freedom, a painful and almost unbearable one. And there, all hope, if one can have it, all passion remains. A passion, hope, after all is lost.
When she leaves the photographs in trash bin (of memory), a hardly understandable kind of refusal erupts, a gesture that pride does not enclose, nor spite, nor negligence. Explanations one can or wants to give just vanish, for their weakness, as mere narrative or psychological interpretations (or from any other kind), without any capability, mere destroyed existences facing the gesture’s strength that rejects resemblance and parentage. [One knows too well the weight and enormous importance the search for one’s parentage or family bond has. In quite an opposite way, didn’t Spielberg’s A.I. put a child, unmoved by anything, alone to discover and cross the cosmos immenseness only to find his little mama?]
This gesture’s strength does not come, however, exclusively from its non-comprehension. It’s the particular gesture of a superior type of ambiguity, one that does not oscillate between incompatible elements, and destroys them instead. That’s an accentuation of ambiguity’s profoundest strategy, the emptying process. A strategy that is so cruel, since nothing, absolutely nothing, allows us to foresee the future destiny of the young character’s future, as she’s completely disinherited. Terrible is the suspicion that one has to disinherit absolutely so that one can obtain a free life’s glimpse.
True sovereignty seems to be in the appropriation, in the forced opening of this emptied crack. Cause sovereignty is not merely a choice. As in other matters, there is an unknown balance, incognito, between conscientious and unconscious life, which everyone has to find on their own, during their lifetime. It’s precisely the apparently most fragile character, the most desperate, the most subject to unbalance, that will have the freest gesture, the most sovereign, the one from a child who was absent, the one which is irremediable.


(Sometimes, there’s no coincidence involved. Harun Farocki, with whom Christian Petzold worked as assistant director, participated in the film’s writing. Both, plus the wonderful Julia Hummer (“Nina”, in the image), made another film, some years before, partially filmed in Portugal – Die Innere Sicherheit/The state I am in. IndieLisboa Film Festival had the great idea of screening it next April.)


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