Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Outro final para o 25 de Abril



Eduardo Lourenço julga reconhecer, na vitória do esqueleto de armário num concurso televisivo, a «morte simbólica do 25 de Abril» (Público, 27.3.2007). A reacção mais comum a esta interpretação da "morte simbólica" é a de que se trata certamente de um exagero. Pelo contrário, pensamos que, noutra visão, menos circunscrita ao impacto estatístico e mediático, tal se poderia previamente ter encontrado, com muito mais força, na obra de Pedro Costa que aqui convocamos.
Algumas afirmações deste realizador, explicitamente provocantes, passam por vezes desapercebidas. No nosso pobre contexto, ainda bem que assim é. Assim, não tivemos de lidar com ondas solenes de indignação por Pedro Costa comparar as barracas da Damaia aos campos de concentração. O tom vagamente insuportável com que Pedro Costa faz afirmações semelhantes, desprezando habitualmente de antemão qualquer possível diálogo e qualificando todos os seus interlocutores (na verdade, apenas os portugueses) de pequenos-burgueses, não ajudará.
Devemos então tentar fazer um esforço para distinguir entre aquilo que releva de uma afirmação criativa e de uma opinião, e depois avaliar acerca da sua consistência respectiva. Há que reconhecer um valor social conservador na manutenção da confusão entre afirmações e opiniões, já que as opiniões meramente se equivalem. Para mais, há quem queira fazer de tudo isto que se faz e diz um mero debate de opiniões. Talvez por isso não haja escândalo, ou então ninguém está atento à enormidade do que vai sendo dito. A impunidade vai-se assim instalando...
Portanto, a afirmação polémica relativa aos campos podemos deixá-la cair no silêncio, convocando-a apenas para nos desequilibrar. Não é este silencio que pretendemos perturbar, mas sim outro. Serve, apesar de tudo, de contexto para um questionamento. Que função cumprem as afirmações de um realizador perante a apresentação da sua obra? E assim, que papel social cumpre ele? Talvez um inversamente proporcional, em autoridade, ao número dos que vêem os seus filmes, dos que o evitam mesmo, e não são assim tão poucos.

Confesso não fazer a mínima ideia do grau de consciência que tem Pedro Costa destas suas afirmações, em particular, do que elas implicam, da imagem que fazem quebrar. Acredito que a tenha, no seu jeito escorregadio, ele que diz que «a memória pode ser a melhor ou a pior das prisões [...] anuncia os maiores horrores». Quanto ao que nos chama aqui, um outro final para o 25 de Abril, que não o de um retorno reaccionário, creio que o problema é mesmo esse, o de uma improdutividade da memória, como imagem destituída de força, que foi deixada à sua reprodutibilidade estéril, essencialmente defensiva.
O fim do 25 de Abril, ou da sua imagem, eis a afirmação de Pedro Costa. Salvo desconhecimento, eis a primeira rejeição séria, no sentido de consequente e associada a uma obra, do 25 de Abril enquanto acontecimento libertador, vinda de uma sensibilidade reconhecível como de esquerda. Como algo que emerge de rompante, não ligeiro, não subtil. Uma imagem que se quebra definitivamente, que nos impede de identificar a um momento histórico, a uma posição estabilizada e cristalizada. Veja-se a dificuldade tremenda para arrancar este frágil golpe que quebra a imagem. Quantos filmes não precisou Pedro Costa para esta afirmação, neste caso cinematográfica, da constituição destas figuras “reais”, que não são “partidários” de nada a não ser da sua comunidade solidária de miséria que se confunde à liberdade, comunidade política constituída pela negação de direitos e condições, que recusam os prédios brancos por não terem vida, paredes de aranhas? Não era disto que estávamos afinal à procura há tanto tempo? De quebrar a imagem que nos aprisionava, que nos cingia os sonhos políticos nocturnos e diurnos? Uma imagem-tormento, essa do 25 de Abril acontecimento. Como será não precisarmos mais dela, não nos reclamarmos apenas do que ficou por fazer, não nos consolarmos com o que de bonito foi feito e pensado? Que arqueologia necessitamos para indagar desses gritos de recusa, por exemplo, do Homem da enxada no Torre Bela, onde irrompia lindíssima a liberdade, ou de um José Mário Branco momentaneamente enlouquecido de lucidez no «F.M.I.», antes da penosa consolação do “valeu a pena”, espécie de “foi bonita a festa, pá” com que nos desviamos uns dos outros. Há aqui, então, algo de inabitual, de mais profundo, nestas novas afirmações de Pedro Costa que tomam por referência o 25 de Abril, que vêm estender bem para lá do geralmente admissível o habitual lamento com que nos comprazemos sobre o nosso destino comum. Estas duas citações, que procurei relacionar, se tomadas em atenção particular, são elucidativas por si. Mas de que é que são, de facto, elucidativas? O facto que elucidam é explicitado pelo próprio Pedro Costa: «o fracasso do 25 de Abril».
Esse fracasso não é surpresa para ninguém, muito menos para as gentes de esquerda. Não o disseram antes tantos outros, não estava já esse fracasso inscrito geneticamente na própria revolução? Afinal, não estava essa imagem comovedoramente plasmada no Torre Bela de Thomas Harlan, no relato impiedoso, se bem que caloroso, da impossibilidade concreta do sonho? Mas tomemos tudo isto sem arrependimentos, já que é o arrependimento que melhor caracteriza aqueles que cumprem as máscaras do poder. (Não se exige ainda hoje – no mesmo Público de 27.3.2007, num artigo leviano de Alexandra Prado Coelho – aos “guerrilheiros” (chamem-lhes o que quiserem) dos Bader-Meinhof um “pedido de desculpas”, por actos passados apenas trinta e tal anos depois, na mesma Alemanha tremenda dos campos de concentração e extermínio, como se um sentimental “pedido de desculpas” ou uma qualquer declaração de arrependimento tivesse algum valor na consideração de um plano político?)
Somos forçados, por muito que nos custe e inquiete, a interrogar-nos sobre a quem interessa, objectivamente, conservar hoje a memória apodrecida do 25 de Abril? Teremos, creio, que reconhecer que é aos “conservadores”, no sentido mais abrangente e que cobre a totalidade do espectro político, em si devindo inútil como cansativo teatro, a quem isso serve. É portanto o próprio fim do 25 de Abril enquanto imagem que está em causa. Que seria de uma esquerda instituída, chamamo-lhe assim por hábito ou por convicção [«A esquerda é o conjunto dos devires menores»], se destituída dessa imagem-súmula de desejos, pesos e falhanços? Que fariam os partidos ditos de esquerda entregues à memória normalizadora do 25 de Novembro que começa a ser comemorado, sua verdadeira paternidade? Que seria de Sócrates e outros que tais sem a memória de Abril, senão um mera tecnocracia ainda mais nua? Tudo isto não fará decerto sentido para os que daquela imagem nunca estiveram presos, os vagamente apolíticos que nunca foram enleados pelo vento forte da revolução, os que não se comovem com o povo que aprendia a ler, por exemplo. Mesmo a direita, saberá o que é perder a imagem do 25 de Abril? Que miserável é o 25 de Novembro sem o 25 de Abril, senão um mero exercício de normalização, uma mera reterritorialização na forma estatal, o prejuízo das forças libertas, a porcaria varrida para debaixo do tapete. É portanto o 25 de Abril como um todo (incluindo o 25 de Novembro) que exige ser repensado. O cinema e aquilo que o habita, pelo menos, exige-o. Quem mais?
Ventura em Juventude em marcha parece-nos ao mesmo tempo “uma personagem histórica (derrotada), [que] vem de um passado já quase esquecido” (como intuía Cristina Marti) e, sobretudo, uma figura nova que impregna a derrota de todos, percursor de uma política por vir, que não restrita às lutas passadas, antes linha aberta da emergência de todos. Neste sentido, não apenas um zombie, um morto-vivo “representante da história [...] do Portugal miscigenado”, mas mais «um representante da gente que vagueia “entre”, entre vidas [...], e [que] já não tem propriamente nem um lugar nem uma terra na... terra» (Luís Miguel Oliveira), precisamente uma das condições da (bio)política do nosso tempo. Por isso é ainda mais difícil a reivindicação da memória, como injunção straubiana de inspiração benjaminia de uma história por redimir, e que é, por vezes, no mínimo contraproducente e apenas vagamente familiar, porventura inútil nostalgia das lutas passadas que muitas vezes, aliás, pouco se assemelham às novas que nos circundam.
Assim, como podemos dar-nos ao luxo de não levar minimamente a sério o mais importante artista português contemporâneo, um cineasta precisamente, quando as suas composições explicitamente constróem novos sujeitos políticos, por muito deslocados de todos os centros que estejam? Convenhamos que parece praticamente impossível reinventar a política com as pessoas armadas de telemóvel num dia de sol no centro comercial, não? Alguém imagina sequer o que isso seja?
Mas, esgotamento da esquerda, fim do 25 de Abril, porquê? Não sobrevivem apenas como hipóteses, utópica ou comemorativa, sempre por vir? É a estas hipóteses que Pedro Costa põe finalmente fim com a original construção destes novos sujeitos políticos cinematográficos - em No quarto da Vanda e Juventude em marcha, nas personagens de Vanda e Ventura, respectivamente e em particular, mas não só - que, excluídos como foram no tempo e no resultado, não configuram apenas a ultrapassagem do 25 de Abril como um “pós-” aliviado. Pelo contrário, estes sujeitos políticos são, não apenas marginalizados do 25 de abril, mas excluídos da nossa política espectral e tecno-burocrática, dividida entre esquerda e direita e incapaz de dar conta do desafio biopolítico com que nos defrontamos. Apesar do repetido equívoco que pode ser a constituição de uma nova personagem-sujeito político, mesmo que esvaziada das suas funções redentoras, obriga-nos a pensar entrelaçadamente uma particular redefinição da esquerda, necessariamente não voluntarista, para confrontar-se ao advento da biopolítica.

(Doutra maneira, não era um pouco disto também que nos falava Herberto Helder há tantos anos, naquele livro por de entre os mais luminosos? Não eram essas as impressões de um amargo Joaquim Manuel Magalhães em Alta noite em alta fraga, no único livro de poesia que conheço que convoca consequentemente a vida das roulottes e do IC19, e que gritava contra «um assassino, o país»?)


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