Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Se vamos falar de espectáculos por que não começar por falar de espectáculos (Ana Bigotte Vieira)




Se vamos falar de espectáculos por que não começar por falar de espectáculos?
Os espectáculos que vejo merecem ser acompanhados. Dão muito trabalho a fazer, a pensar, a imaginar, a ensaiar. Bem ou mal, interessem-me ou não me interessem, em cada um deles há uma visão de mundo, uma tentativa de criar mundos possíveis, um viver em colectivo que se experimenta praticando, várias questões que se levantam. Há também uma questão de olhar, de autoria, de linguagem estética, de enquadramento na história das formas das artes, formas estas igualmente enquadráveis socialmente. Acredito que há em muitos deles um corpo a corpo com possibilidades outras, possibilidades que se realizam habitando, com o corpo, um espaço de potência - potência de ser, de estar, de estar com; de representar ou presentificar possibilidades de existência, resistência, re-existência, e (por que não?) aceitação ou mesmo glorificação do existente. Interessa-me a sua relação discursiva com a sociedade, o modo como se inscrevem ou não inscrevem na ordem dos discursos, o modo como o que dizem se relaciona com o que fazem, e o que fazem a quem os vê. Interessa-me fazer essa relação visível tal como eu a vi, ajudando assim a faze-los visíveis, acusando que é de uma visão, a minha, que se trata.

Se vamos falar de espectáculos por que não começar por perguntar como vamos falar de espectáculos?
O discurso possível é possível porque os discursos o fazem possível. É contra o pano de fundo maior da questão da “participação” na sociedade portuguesa que uma iniciativa como a deste seminário se enquadra. Por que razão não há crítica de artes performativas nos jornais? Por que razão não há nenhuma iniciativa de crítica de artes performativas relevante na blogosfera portuguesa? Por que razão tiveram instituições como a Culturgest, o São Luiz Teatro Municipal, o Alkantara e o Maria Matos de dar o pontapé de saída? Por que o fazem nestes moldes? O que são as “formações” hoje em dia, que papel cumprem?
Quando me candidatei ao Mais Crítica não pensei a sério nestas questões. Parecia-me que fazia falta um espaço de discussão, estava farta de ver os espectáculos não terem críticas e achei que podia dar um contributo, mesmo não sendo grande adepta da crítica tal como ela é feita nos jornais ou na academia por via Estudos Literários, mas sim da reflexão dos Estudos de Performance nos seus cruzamentos com as Ciências Sociais. Estava sinceramente entusiasmada com o facto de a iniciativa ser em grupo, apetecia-me acompanhar espectáculos numa base regular e discuti-los com mais gente. Só que quando a coisa começou a questão do lugar colocou-se à frente de tudo: quem pode falar, onde, em que moldes, como é recebido o discurso tendo em conta de onde se fala. Era o modo como a nossa escrita se inscrevia ou não na ordem dos discursos - a nossa escrita vinda de uma “formação” e apoiada pelas instituições o que primeiro de tudo estava em causa. Não quero repetir aqui uma discussão que se fez pública aqui, antes remeto para ela. Menciono-a porque me fez repensar a minha participação no Mais Crítica.
À medida que a minha argumentação nessa discussão se ia desenvolvendo o meu entusiasmo inicial foi-se desvanecendo e fui tendo vontade de participar num projecto de crítica, sim, mas não nestes moldes. Interessa-me não a fomentada e acompanhada formação de seis vozes especializadas em Artes Performativas, mas a abertura de um espaço de discussão entre gente que faz, gente que vê e gente que escreve (e vice-versa, as posições não são fixas – é uma conversa). Interessa-me pensar em conjunto sobre como as coisas “agem” e nisso poder escrever sobre espectáculos, blogs, discursos, gestos, leis, manifestações, hierarquias, o que falta e o que está em potência, “agindo” com isso.
Não estou com isto, de todo, a desacreditar o projecto do Mais Crítica, antes pelo contrário, é por me parecer relevante e por a crítica fazer falta que me candidatei: Força Mais Crítica! Apenas cheguei à conclusão de que não me revejo nele e que por isso não consigo ter vontade de participar.

Ana Bigotte Vieira

Ao pé da letra #215 (António Guerreiro): “Sentido de Estado”

“Sentido de Estado” é uma qualidade tão reclamada e respeitada que, muito embora ninguém tenha, alguma vez, dado uma definição segura de tal coisa e, em rigor, ninguém saiba o que é, nunca ela é dita sem o gesto enfático da reverência. Tal como é geralmente entendido, o sentido de Estado evoca com alguma evidência aquilo que no teatro clássico se chamava as “regras da bienséance”, segundo as quais tudo o que se passava no palco devia ser conforme à verosimilhança e à moral. É fácil perceber a pertinência desta analogia: não é possível pensar aquilo que é designado como sentido de Estado sem o relacionar com a performance teatral na cena política, sem que se exponha o plano da representação e da encenação. Por exemplo, um político como Mário Soares libertou-se manifestamente da obrigação de representar o sentido de Estado — uma prerrogativa que lhe vem da idade e do capital simbólico que acumulou. Mas que pode significar um tal “sentido”, quando ele é proclamado e reivindicado até por quem recita diariamente a ladainha (que não deixa de ser verdadeira, muito embora a sua verdade seja diferente da que ela nos quer convencer) de um Estado empecilho, ineficaz e, em si mesmo, tendencialmente monstruoso?  

Foi certamente quando o Estado começou a perder todo o sentido que se começou a falar de sentido de Estado. Em tal expressão, ecoa um sisudo anacronismo e dá-se a ver uma roupagem vetusta, usada em palcos e representações que já não são os nossos. “Razões de Estado” — eis o que se dizia noutro tempo, anterior ao sentido de Estado (que pode ser definido por antífrase: é o Estado anestésico), quando a vocação dominadora e guerreira era assumida como uma missão. Será então o sentido de Estado a prova de que o Estado perdeu a sua razão — e anda à procura do seu sentido — e, como uma corista reformada, sobe ao palco de um cabaret decadente e imagina que está no Grande Teatro Nacional?.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.10.2012.

Ao pé da letra #214 (António Guerreiro): A pilhagem legal

Em tempos não muito recuados, a linguagem rude que reduzia todas as decisões políticas a uma cleptocracia tinha um autor tipificado: os taxistas. Sabemos agora que em determinadas circunstâncias essa linguagem se vai universalizando e até o antigo presidente de um partido pôde dizer que a subida dos impostos é “um assalto à mão armada”; e um cronista e comentador político, que tem um gosto especial pela alarvidade, falou mesmo em sodomização. Concluindo: quando o humor psicopolítico das elites se torna semelhante ao das classes menos cultas, a linguagem também é análoga. Importantes são, pois, as determinações do humor psicopolítico. E esse, como já reparámos, sofreu uma mudança brusca e geral, tendo como motivo mais óbvio os impostos. O paradoxo da “pilhagem legal”, formulado por Tomás de Aquino, passou a fazer parte das conversas: na rua, no táxi, no café, nos jornais e nas televisões.  

Ora, mesmo quem nunca sentiu necessidade de pensar os processos de um Estado fiscal, tem agora motivos urgentes para o fazer, já que o que resta da democracia sofreu um forte embate: o sistema fiscal recorre a práticas absolutistas ‘naturalizadas’ (o filósofo Peter Sloterdijk, num livro de 2010 sobre os impostos, faz essa referência ao absolutismo, indo até mais longe: “Não saímos da Idade Média fiscal”). Mas essa práticas, ao serem exasperadas, levadas a um limite extremo, dão-se a ver na sua arbitrariedade e quebram o vínculo necessário entre os rendimentos do Estado e os benefícios que os cidadãos deles extraem. Enfraquecido esse vínculo aos olhos do cidadão, o modo de arrecadar e justificar os impostos ganha uma dimensão inaceitável para uma ordem democrática. E é aqui que estamos: o humor psicopolítico dominante mostra que já foi transposto um limiar que abre para um território do qual não temos ainda a cartografia, mas adivinhamos que deve ser bastante acidentado.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.10.2012.

Ao pé da letra #213 (António Guerreiro): A república universal das Letras

Tendo-se tornado raríssima — e quase exclusivamente por conta de editoras universitárias — a edição de livros de crítica literária, surpreende, à primeira vista, que a Quetzal edite um livro de um crítico inglês, James Wood, que vive na América e escreve para publicações como “The New Yorker” e “The New York Review of Books”. Bons motivos de regozijo se ofereceriam em tal iniciativa se ela não fosse um sintoma eloquente do estado miserável — disfarçado de cosmopolitismo — da república das letras. Traduzir este livro — “A Herança Perdida” — e editá-lo baseia-se no pressuposto de que há um público afastado dos meandros eruditos e especializados da crítica literária (a capa, com as letras do título em relevo, é o primeiro índice indiscreto da vontade de popularização) interessado em bibliografia secundária sobre autores americanos e ingleses modernos e contemporâneos (V. Woolf, T. S. Eliot, Don DeLillo, John Updike, Philip Roth, Julian Barnes e outros), na condição de o autor ser alguém que “conseguiu transformar a crítica literária num assunto pop sem ceder em nada à facilidade” (assim é apresentado James Wood na badana).  

Entretanto, o último volume da obra completa de Eduardo Prado Coelho, que compreende “A Mecânica dos Fluídos” e “A Noite do Mundo“ (editado pela Imprensa Nacional), nem sequer chega às livrarias. Em todos os seus cálculos e operações, a “vida literária” supõe que o que interessa é uma nova ideia de literatura universal — dominada por uma ficção de lugar nenhum — que atravessa fronteiras mal é publicada, quase sem precisar de ser traduzida, e que chegou ao fim toda a herança da “literatura nacional”. Em suma: aquilo que faz com que um João Tordo e um José Luís Peixoto sejam internacionalmente premiáveis, enquanto uma Agustina e uma Maria Velho da Costa nunca conseguiram sair, mesmo quando traduzidas, do seu lugar minoritário.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.10.2012.

Ao pé da letra #212 (António Guerreiro): A vida pobre

O que significa a promessa, em fase de cumprimento, de que vamos empobrecer? Como a pobreza é sempre relativa — ensinou Simmel num estudo de 1907 sobre os pobres —, em relação a quê estamos a empobrecer? A resposta é óbvia: em relação aos padrões e modos de vida das últimas décadas. Mas aqui impõe-se uma distinção entre modo de vida e forma de vida, que é uma noção essencial em Foucault. A forma-de-vida (os hífenes ajudam-nos a perceber melhor do que se trata) é uma vida que não se pode tornar objeto de cálculos estratégicos governamentais porque é inseparável da sua forma: uma vida em que todos os atos e processos que a definem são possibilidades de vida e não meras contingências. Neste sentido, quando os governantes nos dizem que é preciso alterar os modos de vida, isso implica forçosamente separar a vida da sua forma. Só esta separação garante que se pode dar um empobrecimento generalizado sem que, por isso, se inventem novas formas-de-vida: algo que os aprendizes de feiticeiro da planificação económica têm como missão evitar a todo o custo que aconteça.  

Usando um exemplo esclarecedor: podemos todos empobrecer, até cair na indigência, o que não podemos — ou, pelo menos, poderosas são as forças que zelam para que tal não se dê — é inventar uma forma-de-vida em que a pobreza seja uma potência (como foi o franciscanismo, para dar o exemplo mais extremo). O que nos é prescrito com inaudita violência é que ‘ajustemos’ a nossa vida, a ‘modelizemos’ segundo as novas circunstâncias, mas que isso se faça sobretudo sem que mudemos de forma de vida. E se a noção foucaultiana de forma de vida nos ajuda a perceber teoricamente a questão, em termos histórico-pragmáticos o facto catastrófico de a vida ser separada da sua forma foi apreendido, com uma consciência trágica, por Pasolini, que dizia de si: “Mais moderno que todos os modernos [...] eu sou uma força do passado.”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.10.2012.

Ao pé da letra #211 (António Guerreiro): Prémio e castigo

Por uma espécie de inversão que vale como índice indiscreto do filisteísmo, os prémios literários, na sua maioria, servem para celebrar a instituição que os dá e não para honrar quem os recebe. Nestas circunstâncias, ser nomeado como vencedor de um prémio pode revelar-se um castigo infligido a um autor, que vai ter de se conformar ao cerimonial de afirmação e glorificação alheias como se a festa fosse sua e a tivesse reclamado. Ao recusar que o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, lhe fosse entregue pelo primeiro-ministro, Maria Teresa Horta não fez mais do que usar uma prerrogativa a que tinha pleno direito. Visto como um mero gesto de hostilidade da escritora em relação ao poder político do momento, o episódio fica encerrado num estreito espaço, para onde confluem acriticamente apoiantes e detratores. Ora, o que está em jogo tem um alcance mais vasto, de modo a suscitar esta questão: porque é que um prémio literário concedido por uma Fundação que não é tutelada por nenhum Ministério há de convidar um ministro — seja ele primeiro, segundo ou terceiro — a entregar o prémio, obrigando o premiado a ser oficiante numa cerimónia regida pelos protocolos governamentais?  

Se a esta pergunta respondermos que ela está no pleno direito de o fazer, teremos também de responder que o premiado está no pleno direito de recusar. E decorre daqui que deveria também recusar o prémio? Mas esse foi atribuído sem que o premiado se tivesse apresentado a um concurso (portanto, sem dar o seu assentimento implícito ou explícito) por um júri que, presume-se, gozava de plena autonomia. Nunca passou pelas cabeças destas instituições que poderiam estar a cometer uma violência completamente ilegítima e que, na verdade, já muita gente antes da Maria Teresa Horta se sentiu violentada nessas cerimónias — presididas por outros primeiros, segundos ou terceiros ministros — de autocelebraçao do mecenas?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 29.9.2012.


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