Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

CARTA BRANCA a André Dias
20-22 Janeiro 2011 — Cinemateca Portuguesa, Lisboa
A generosidade da carta branca torna-a também um pouco gratuita. É certo que não se substitui aos programas que ficaram por realizar. E pede o brilho singular dos filmes soltos e desligados, mais do que programas complexos. Mas se programar é arranjar desculpas para passar bons filmes, convém igualmente que as desculpas sejam boas. Um autor, por exemplo, ainda que desconhecido, é sem dúvida uma velha e insistente desculpa. Talvez porque algo de vivo e impessoal, difícil de cingir e todavia essencial, se esconde por trás dessa aparição do nome. Já o cânone, indutor de vertigens, mais do que mostrar, oculta. Há então que fingir que essa acumulação hierárquica não existe sequer e dar simplesmente importância ao que um dia tivemos perante os olhos: a intuição de cada um. Uma ideia de programação pede assim a declinação quase infinita dessa “menoridade”. Acima de tudo, pede a clarificação da necessidade dos filmes, o que é inseparável do gesto – talvez ilusório, porque dificilmente antecipável – de experimentar fazê-los chegar a quem deles precisa. Afinal, não sabemos nós como as obras mais delicadas e subtis são enterradas vivas logo à nascença? Por que haveriam outras épocas de ter sido menos empenhadas na sua cegueira do que a nossa?
Algumas “descobertas” feitas em viagens de estudo: as duas primeiras na distante Austrália, oferendas do crítico Adrian Martin; no Brasil, Ozualdo Candeias, objecto do entusiasmo generoso dos cinéfilos locais e, sobretudo, exposição crua de como os limites do cinema e da sua história não estão definidos; e NEAR DEATH, quinze anos depois da sua passagem nesta mesma Cinemateca pela mão de um professor, porque há que continuamente experimentar a extraordinária complexidade redentora, que é a matriz de toda a obra de Wiseman, mesmo quando se dá neste contexto extremo de proximidade com a morte.
(André Dias estará presente em todas as sessões.)



Qui. [20] 19:30 | Sala Luís de Pina
WORDS AND SILK: THE IMAGINARY AND REAL WORLDS OF GERALD MURNANE
de Philip Tyndall
com Gerald Murnane
Austrália, 1989 - 86 min / legendado electronicamente em português
Impressionante filme num género raramente feliz: o retrato de um escritor. Neste caso, trata-se do australiano Gerald Murnane, autor do espantoso The Plains (1982). A subversão das regras do género passa aqui pelo profundo mergulho na matéria labiríntica, ainda que aparentemente circunscrita, da obra literária de Murnane, despoletada pela voz e presença do próprio escritor e configurada pelas suas obsessões: a escrita, as corridas de cavalos, a paisagem, os pássaros e a cor. Uma oportunidade para repensar as equívocas relações entre literatura e cinema. Primeira exibição na Cinemateca.


Sex. [21] 19:30 | Sala Luís de Pina
BEHINDERT
de Stephen Dwoskin
com Carola Regnier, Stephen Dwoskin
Reino Unido, 1974 - 96 min
Um tratado sobre o rosto. Primeira exibição na Cinemateca.


Sex. [21] 22:00 | Sala Luís de Pina
A HERANÇA
de Ozualdo R. Candeias
com David Cardoso, Rosalvo Caçador, Bárbara Fazio, Deoclides Gouveia
Brasil, 1971 - 83 min
Adaptação peculiar de um clássico da literatura mundial ao contexto brasileiro do Sertão por Ozualdo Candeias, “marginal entre os marginais”. “Quando viram A HERANÇA, meu Hamlet caipira, uns caras disseram que eu tinha avacalhado a peça de Shakespeare. Então falei: vocês estão muito enganados. O Hamlet p’ra mim é um puta babaca, se visto no lado social, e eu dei uma dignidade para a morte dele. Antes de morrer, pegou as terras dele e deu para aquele pessoal que trabalha. E o pessoal que trabalha, os caras que eu botei como essas pessoas, são os mais fodidos possíveis. Então o que eu fiz foi livrar a cara do Hamlet e vocês ainda vêm aqui me encher o saco?». Na ausência de diálogos propriamente ditos (se exceptuarmos algumas legendas), substituídos por ruídos de animais e outros sons, uma espantosa cena com uma moda de viola cantada e infinitas trocas de olhares dá conta, ao mesmo tempo, do esplendor da voz humana e do poder restituído do cinema mudo. Porque “deve haver mais coisa entre o céu e a terra que a nossa já estúpida filosofia”. Primeira exibição na Cinemateca.


Sáb. [22] 18:00 | Sala Luís de Pina
NEAR DEATH
de Frederick Wiseman
Estados Unidos, 1989 - 358 min / legendado electronicamente em português
NEAR DEATH é talvez a mais intensa experiência oferecida pela filmografia de Frederick Wiseman. Não se trata simplesmente, e como na generalidade dos seus filmes, de documentar “como vivem as pessoas”, mas, liminarmente, “como morrem as pessoas”. Filmado na unidade de cuidados intensivos de um hospital de Boston, NEAR DEATH segue uma série de casos de doentes em estado terminal, e a forma como médicos, familiares e amigos se relacionam entre si e com os pacientes, em função, por vezes, das decisões difíceis que é preciso tomar ou, pelo menos, discutir. Também é esta, e talvez seja sobretudo esta, a questão: os vivos perante a morte, no momento em que a morte deixa de ser uma abstracção.

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