Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #125 (António Guerreiro)

Sobre a narrativa moderna do progresso, na época em que ela se revela como uma grande fantasmagoria 

Ao nosso tempo coube em sorte confrontar-se com esta situação: a geração que na última década entrou (ou aspira a entrar) no mercado de trabalho é a primeira, depois de um longo período de progresso contínuo, que vai regredir, nos índices de riqueza, em relação aos pais. Tal facto suscita até alguma indignação. No entanto, em termos teóricos, o diagnóstico já tinha sido feito no final dos anos 70, quando o filósofo francês Jean-François Lyotard falou do “fim das grandes metanarrativas”. Uma dessas metanarrativas era a do progresso, tal como ela tinha sido contada pela modernidade, com o seu suplemento de utopia. O progresso é uma categoria que não existia antes do século XVIII e que só serve para descrever experiências modernas que têm que ver com a ideia de uma ‘perfectibilidade’ contínua. Ora, do ponto de vista lógico, tal coisa não é concebível, não se pode imaginar uma linha de progresso contínuo até ao infinito (nem em termos materiais nem espirituais). Deveríamos, portanto, reagir com toda a naturalidade. Mas não é o que acontece. 

Desdenhando de tudo o que é plausível do ponto de vista lógico, temos dificuldade em aceitar que essa linha contínua seja interrompida e, ainda por cima, que isso aconteça diante de nós e que seja a herança do nosso tempo. Porque é que reagimos assim? Porque, se racionalmente sabemos que não pode haver uma continuidade ilimitada do progresso, do ponto de vista ideológico estamos cheios dessa convicção e já não somos capazes de conceber outro horizonte. O progresso como uma fantasmagoria é aquilo que nos alimenta todos os dias e a todas as horas, aquilo em que estamos todos viciados e do qual não nos podemos libertar mesmo quando os seus efeitos são de terrível ressaca. À geração que aí vem cabe a tarefa de construir uma outra história que não os expulse. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 29.1.2011.

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