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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #124 (António Guerreiro)

Sobre o carisma, numa época em que se lamenta não haver chefes políticos dotados desse tipo de autoridade 

Um tópico emerge no discurso público, ciclicamente, por altura das eleições presidenciais: o da falta de carisma dos candidatos. O culto do chefe carismático está ligado ao culto dos heróis, tal como ele se manifesta numa concepção da história universal que a entende como uma sucessão de altos e baixos, correspondendo os altos aos períodos em que apareceram homens que se ergueram acima dos outros para os guiar. As ilusões projetadas num chefe carismático vêm de uma dificuldade em suportar aquilo a que Max Weber chamava o “desencantamento do mundo”, isto é, o processo de racionalização. E é indispensável evocar aqui Max Weber, porque foi ele, no início do século passado, que formulou uma teoria do “carisma”, relacionando-o com um tipo de autoridade exercido pelo chefe político. A “autoridade carismática”, diz o sociólogo alemão, implica qualidades que certas pessoas recebem como um dom, e têm de ser exibidas de modo a serem objeto de uma perceção sensorial. 

Submeter-se à autoridade carismática, diz Weber denunciando o culto dos “grandes homens”, significa um compromisso íntimo, uma relação com o “chefe” associada a uma crença. O domínio carismático não se exerce, portanto, através das ideias, mas pelo modo como essas ideias são assimiladas interiormente por quem — e isto é importante — está animado pela disposição de acreditar numa pessoa que recebeu a graça de uma natureza extraordinária; e requer um dom físico, por exemplo, a voz: razão pela qual esta foi durante muito tempo o órgão fundamental da propaganda. Assim definido, o carisma contém qualquer coisa que reenvia para duas componentes fundamentais da política: por um lado, o seu carácter ‘sagrado’, que nenhum “desencantamento” consegue apagar totalmente; por outro, a que diz respeito à necessidade de se apropriar da parte irracional das afeções humanas. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 22.1.2011.

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