Ao pé da letra #158 (António Guerreiro): Vícios linguísticos
Como é que uma palavra, uma expressão, um vocabulário ‘pegam’ como um tique ou um hábito social e entram na engrenagem da repetição mimética? Nos últimos tempos, este mecanismo que funciona como uma câmara de ecos pôs em circulação a palavra ‘narrativa’ no comentário político, em frases do tipo: “Afinal, a narrativa da dívida é outra”; ou: “Não devemos acreditar na narrativa da superação do défice.” Nas colunas de opinião de jornais, este uso da palavra ‘narrativa’ sofreu uma inflação e difundiu-se como acontece aos estereótipos. De onde vem esse uso? Podemos descobri-lo, na sua origem mais plausível, num pequeno livro que teve um grandioso efeito: La condition postmoderne (1979), de Jean-François Lyotard. Aí, este filósofo francês, entretanto falecido, definia a pós-modernidade como uma crise das narrativas, como o fim de um metadiscurso a que ele chamou “narrativas da legitimação”. Na sua perspetiva, o modernismo ter-se-ia caracterizado por grandes discursos legitimadores (por exemplo, o discurso do iluminismo e do marxismo) que chegaram ao seu fim.
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Ora, é precisamente neste sentido de narrativa de legitimação que, de repente, por um fenómeno mimético, a palavra ‘narrativa’ passou a fazer parte do jargon do comentário político. Tão interessante como este fenómeno das palavras que pegam é o do uso errado de palavras ou expressões até ao ponto em que esse uso se torna quase universal. Por exemplo: ‘grau zero’. É escusado lembrar que ‘grau zero’ não é pura e simplesmente ausência de qualquer coisa. Designa algo diferente: consiste numa presença que se faz notar pela ausência de um indicador, é uma existência que se torna notável exatamente por estar ausente. Assim, podemos dizer, por exemplo, que o liberalismo atual não é tanto a defesa de que o Estado se ausente da economia mas que ele se reduza ao grau zero.
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.9.2011. |