Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Quando o tratamento figurativo contradiz... o cinema acede ao verdadeiro problema (Nicole Brenez)


Nicole Brenez termina o seu brilhante ensaio sobre INDIA: MATRI BHUMI (1959) de Roberto Rossellini, referindo-se ao segundo episódio desse filme:

«A forma radical da desclassificação é sem dúvida a aporia, quando a força igual dos contrários impede a absorção ou ultrapassagem de uma contradição. O tratamento do trabalho em Irakud releva de uma ambiguidade violenta e testemunha de uma dificuldade mantida ao longo do episódio, que se torna talvez no conto mais impressionante de India, um conto de ressonâncias fantásticas, quase fantasmagórico, porque o que vos assombra é sempre um problema não resolvido. 

O assunto declarado do episódio consiste no celebrar da indústria, do trabalho, da potência humana capaz de vergar a natureza à sua lei. Mas o tratamento figurativo contradiz violentamente tal afirmação: as imagens dos trabalhadores são imagens de escravos, India  parece-se de súbito a The Land of Pharaohs de Howard Hawks. A descrição triunfal da barragem faz-se por ocasião de uma fuga sentimental (o esposo já não consegue suportar a tristeza da sua mulher, apanha o primeiro camião que passa), o passeio recapitulativo transforma-se em peregrinação, vemos menos o que se ergueu do que o que desapareceu: um cadáver que arde, um monumento para os trabalhadores mortos no estaleiro, a selva engolida, a piscina sagrada alagada. 
A música concreta de Philippe Arthuys sobre as construções eléctricas, os travellings de viatura enquanto que o narrador anda a pé, as cores fúnebres, os céus tempestuosos, tudo nos reenvia ao mistério, a um enigma impraticável que se assemelha à própria vida, a uma melancolia profunda de que se alimenta o discurso imperturbavelmente orgulhoso do engenheiro. E quando por sua vez Nokul se põe a chorar, o seu choro comunga menos das lágrimas da sua mulher desesperada por deixar a barragem do que daquilo que, no universo do progresso, transforma o mundo no seu próprio fantasma, como esses trabalhadores filmados a contraluz cujas magras silhuetas negras parecem uma procissão de espectros no inferno comum do trabalho industrial. O legítimo orgulho do engenheiro em India 58 nada esqueceu da angústia de Irene em Europa '51 e, por uma vez, o cinema acede à tensão, à intensidade e à emoção que suscita um verdadeiro problema.»

Nicole Brenez, «Déclasser. Hommes, femmes, animaux: les espèces dans India», De la figure en général et du corps en particulier: l'invention figurative au cinéma, De Boeck, 1998, pp. 101-102.

Sem comentários:


Arquivo / Archive