Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #32 (António Guerreiro)

«O “paradoxo do ateísmo” é uma questão fascinante

“There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life.” Esta frase, exibida nos autocarros londrinos, mostra bem o “paradoxo do ateísmo”. Foi Alexandre Kojève, o último grande hegeliano e figura lendária da intelectualidade russa que veio para Paris nos anos 20 e 30, que definiu bem esse paradoxo e o colocou na base da sua antropologia filosófica: o homem está consciente de que depois da sua morte não existe mais nada e, por conseguinte, está livre de viver a sua vida.

Mas se para lá do mundo nada existe, então este “nada” existe, sob a forma de algo que se quer negar. Por outras palavras, é um facto – tal como na frase publicitária o que emerge é o facto negativo de que “provavelmente Deus não existe” e é a partir da experiência dessa “provável” não existência que o cidadão é convidado a gozar a vida. Mas o teísta, segundo Kojève, também não está livre do paradoxo simétrico, já que não consegue demonstrar o que é esse “Outro”, para além do homem no mundo, sem reportá-lo de alguma maneira ao que é dado do nosso mundo. Ernst Bloch não andava longe deste paradoxo quando escreveu: “Só um ateu pode ser um bom cristão, só um cristão pode ser um bom ateu”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 24.1.2009.


[A existência imanente daquele que crê que Deus existe 

«Até as ilusões de transcendência nos servem e nos fornecem anedotas vitais. Pois quando nos vangloriamos de encontrar o transcendente na imanência, mais não fazemos do que recarregar com a própria imanência o plano de imanência: Kierkegaard salta para fora do plano, mas o que lhe é “dado de novo” nessa suspensão, nessa paragem de movimento, são a noiva ou o filho perdidos, é a existência no plano de imanência. Kierkegaard não hesita em o dizer: no que se refere à transcendência, bastaria um pouco de “resignação”, mas é necessário além disso que a imanência seja dada de novo. Pascal aposta na existência transcendente de Deus, mas o que está em jogo nessa aposta, aquilo em que se aposta, é a existência imanente daquele que crê que Deus existe. Só essa existência é capaz de cobrir o plano de imanência, adquirir o movimento infinito, produzir e reproduzir intensidades, enquanto a existência daquele que crê que Deus não existe cai no negativo. Poder-se-ia dizer aqui o que François Jullien diz sobre o pensamento chinês, que nele a transcendência é relativa e não representa mais do que uma “absolutização da imanência”. Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparem, os seleccionem e decidam que um é “melhor” que outro. Pelo contrário, os únicos critérios são imanentes, e uma possibilidade de vida avalia-se por si mesma através dos movimentos que traça e das intensidades que cria um plano de imanência; será rejeitado tudo o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, pleno ou vazio, independentemente do Bem e do Mal e de qualquer valor transcendente: nunca há outro critério senão o teor de existência, a intensificação da vida.


É isso que Pascal e Kierkegaard sabem perfeitamente, eles que são entendidos em movimentos infinitos e tiram do Antigo Testamento novas personagens conceptuais capazes de fazer frente a Sócrates. O “cavaleiro da fé” de Kierkegaard, o que salta, ou o apostador de Pascal, o que lança os dados, são os homens de uma transcendência ou de uma fé. Mas não cessam de recarregar a imanência: são filósofos, ou melhor os intercessores, as personagens conceptuais que valem para estes dois filósofos, e que não se preocupam já com a existência de Deus, mas somente com as infinitas possibilidades imanentes que traz a existência daquele que crê que Deus existe.

O problema mudaria se se tratasse de um outro plano de imanência. Não que aquele que crê que Deus não existe pudesse aí levantar cabeça, pois pertence ainda ao antigo plano como movimento negativo. Mas, no novo plano, pode acontecer que o problema se refira então à existência daquele que crê no mundo, não propriamente na existência do mundo, mas nas suas possibilidades em movimentos e em intensidades para fazer nascer outros modos de existência mais próximos dos animais e dos rochedos. Pode ser que crer neste mundo se tenha tornado a nossa mais difícil tarefa, ou a tarefa de um modo de existência a descobrir no nosso plano de imanência hoje. É a conversão empirista (temos tantas razões para não crer no mundo dos homens, perdemos o mundo, é pior do que perder uma noiva, um filho ou um Deus...). Pois é, o problema mudou.»

Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Lisboa, Presença, 1992, pp. 67-68, sublinhado meu.]

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