Dotado de uma boa-fé gravosa ao ponto da perversão, tocado pela surpresa –
ah, o gosto da boa surpresa, o saber deixar-se inclinar pelos acontecimentos inesperados ou meramente não previstos... –, este espectador ocioso, contrariando os seus juízos anteriores sobre as projecções em Dvd, deixar-se-ia levar de boa-vontade a experimentar a excepção que confirmaria a regra. A raridade dos encontros com os filmes de Vittorio de Seta em Portugal [«Pastor di Orgoloso» (1958) e «Banditi a Orgoloso» (1961) n’“A utopia do real” (Olhar de Ulisses, Porto 2001); «Parabola d’oro» (1955) e «Sulfarara» (1955) num ciclo sobre “o trabalho” (no Doclisboa de 2006); e que mais?], a que não pôde comparecer, bem como os posteriores relatos míticos, deixaram-lhe tanta água na boca. Um grupo de jovens italianos e outros Erasmus propunha assim de repente, sem aviso prévio, com a generosidade de uma mera hora e meia de antecedência, um programa com «pequenos documentários de Vittorio di Seta realizados entre 1954-1955 ambientados em sua Sicília natal», que incluia «Parabola d’oro», «Lu tempo di li pisci spata» (1954) e «Pasqua in Sicilia» (1955) e, nem vem ao caso, o
Sicília! de Straub-Huillet [seria um crime sem desculpa vê-lo naquelas condições] na Academia do Recreio Artístico, Rua dos Fanqueiros, 286, 1º, numa programação do
cinemalfa. Era, portanto, uma noite temática.
Chegado àquela simpática associação recreativa, o ambiente era tão descontraído e jovem que se começou logo por duvidar da paciência que teriam aquelas pessoas para ver sequer um filme às escuras, sem outra diversão durante algum tempo. Havia os bidões internamente iluminados que aconchegava a sala e várias janelas abertas para a rua. Preparava-se uma leitura de poesia sicíliana musicada para o intervalo entre os filmes. Nada a obstar. Mas a projecção antecipava-se como feita a partir de um portátil para um projector, vulgo
datashow, que é uma coisa que serve para ver ficheiros de Power Point, que não são certamente o supra-sumo da subtileza gráfica. Dos lados, o ecrã borrava manchas de cor enjoativas. Os filmes começaram mais ou menos com uma hora de atraso. Mas estava-se bem. Quem aprecia, podia beber uma cerveza e tal, observar as miúdas bonitas, o modo desenvolto da gente jovem...
Quando a projecção finalmente se prepara para começar, os receios vêm ao de cima. Temos então uma tela com um quadrado de projecção que é já uma imagem dentro do espaço da imagem que seria o ecrã total, depois lá dentro, no ambiente de trabalho projectado, uma janela do Windows Media Player (é um PC, ainda por cima) que vai ler o Dvd, apesar de não ter sido feito para estas dignidades, com os seus efeitos coloridos de fundo. À vista as inúmeras configurações, todos aqueles atríbutos gráficos do ecrã de computador, ícones e barras laterais, e etc., coisas que serão talvez quase inofensivas se, digamos, nos estivermos a preparar para ver o «Curb your enthusiasm», mas que são absolutamente perturbadoras para ver cinema numa sala, que demanda silêncio visual. Como se não bastasse, mais tarde, um
pop-up irritante do Messenger iria interromper a projecção ainda a meio de um dos filmes.
Enfim, começa com «Lu tempo di li pisci spata», um filme sobre a faina dos pescadores de peixe-espada. Mas, como seria de se esperar, alguma coisa estava errada. Neste caso, um formato de imagem completamente quadrado que me pareceu impossível. Fiquei estacionado naquela posição, para mim, extremamente incómoda, que é a de não saber se a imagem é ou não proporcional. [Os meus pais têm um grande televisor com múltiplas e desesperantes opções de formatos de imagem, com “zoom”, “inteligente”, etc., em que nunca percebo o que estou a ver e, principalmente, a deixar de fora]. Nunca tinha visto um tal quadrado perfeito, e as gentes na pesca, a que por isso quase nem dei atenção, pareciam-me demasiado delgadas, isto apesar da compreensível escassez alimentar na Itália popular dos anos 50. Por outro lado, estavam todos também de tal forma pálidos que fiquei na dúvida se o filme seria a preto-e-branco ou a cores, pois só algumas emergiam. Podia ter sido tintado, como fez o Ted Turner aos clássicos americanos, com aqueles tons desmaiados e uniformes, tipo aguarela. Era o que aqui também acontecia, uns amarelos de vez em quando e, sobretudo, um vermelho que sobressaia. Aquilo trouxe-me a horrível lembrança da criancinha a lápis de cor vermelho do ‘Schindler’s list’ de Spielberg. Para lavar a memória, lembrei-me logo do porno desaturado/saturado pelo Godard, por exemplo neste
excerto particularmente ambicioso das «Histoire(s)», em que a escolha das áreas coloridas é selectiva, não neutra, sendo o amarelado ou o avermelhado da pele, mais precisamente, o carmin que faz sobressair. Neste de Seta, dada a pobreza da imagem projectada, só podia supor aquele jogo como involuntário, e tentar imaginar o que seriam as cores daquele filme numa cópia de película não degradada.
Curiosamente, como os filmes do de Seta estava todos alinhadinhos num enorme ficheiro, e nos estavam a ser apresentados todos de seguida, acabámos por não ver os filmes anunciados, mas outros semelhantes, pois parece que tanto fazia. Em vez de «Parabola d’oro» e «Pasqua in Sicilia», foi-nos presenteado pela ordem informática, incompreensível no que concerne ao programa, mas, confirmariamos depois, correspondente à cronologia da obra, o «Isole di fuoco» (1954) e o «Sulfarara». Passavam assim de seguida os céus daquelas ilhas tornados amarelo-canário-vibrante-de-electricidade-vídeo e vermelho-alaranjado-de-pôr-de-sol-que-nem-nos-piores-clichês-fotográficos. Na mais das vezes, sobretudo na erupção do vulcão em «Isola de fuoco» e no interior das minas de «Sulfarara», só se via o pouco que escapava à escuridão, a lava e a carne dos trabalhadores. Não se via absolutamente nada do trabalho. Todo esse resto não chegava sequer à penumbra, não era permitido existir na projecção. O nosso olhar estava brutalmente seleccionado. Eis assim as paisagens brutas mas não indiferentes das ilhas sicilianas (Stromboli!) mascaradas pela falta de resolução, pelo varrimento do vídeo para onde foram transcritas, pela mesquinhez dos pixeis do computador.
Uma vez, numa sessão do Porto 2001, disse ao João Bénard da Costa, para sua impaciência, que o «Johnny Guitar» até em
slide funcionaria. Mas temo que, mais uma vez, me enganei. Porque é muito diferente aceder de início a uma obra cinematográfica numa cópia precária ou absolutamente degradada/processada. Foi o que me aconteceu com estes filmes do Vittorio de Seta, projectados a partir da digitalização mal feita de uma mais que provável péssima cópia vídeo. No entanto, e apesar disso, estes filmes surgem ainda, mesmo nesta matéria pobre, como lindíssimos. Claro que a potência de um filme não passa sobretudo pela sua qualidade fotográfica, pelo contrário; mas é diferente quando não se vê na imagem degradada/processada nenhuma das outras coisas que deviam lá estar e que, ao lê-las, concorrem para nos dar o que o filme pode dar. A degradação da imagem torna irremediavelmente o filme noutra coisa, mais precisamente, num espectro paradoxal, como se a essência do filme sobrevivesse nos vestígios que deixa e, ao mesmo tempo, neles se perdesse. Daí a situação estranha que ocorre quando se vê filmes assim, que é a de não se saber, para si próprio, se efectivamente se os viu. Eu não sei dizer se vi estes filmes de de Seta. E agora não estou a falar sequer de uma sua suposta plenitude fotográfica, etc. Falo de ver simplesmente. De ter visto um filme. E de não saber. Creio que será este o limbo dos filmes, ou talvez o seu particular purgatório, onde errarão como espectros. E será assim que posteriores evocações podem (e devem obrigatoriamente) ter menor qualidade de imagem, como nas
Histoire(s), por essa degradação fazer parte do poder da evocação. Como se houvesse uma estranha equivalência ou equiparação entre uma degradação histórica ou processual do material fílmico e o trabalho artístico de evocação sobre essas imagens. Das duas nascendo a projecção das ruínas.
Lá no meio da, para ele, enfadonha sessão, o projeccionista-informático-na-óptica-do-utilizador, sentado a ver o filme, puxa de um cigarro, tal como a sua namorada, sentada a seu lado. Fumavam, e o fumo dos seus cigarros subia e era mais um obstáculo, mais uma camada a interpôr-se entre nós e o filme. Por cada elemento que se acrescenta à escuridão-solidão da sala de cinema, mais uma camada de névoa ou gordura que se barra no filme. Eis pois o cúmulo de ver televisão em conjunto, numa sala grande, com todos muito à vontade. Mas, ainda assim, se existem talvez condições optimais para ver um filme, curiosamente, parecem não existir condições mínimas indispensáveis. Como se tudo dependesse da paciência do espectador e da singular troca que ambiciona realizar no escuro. Com ou sem fumo, ela pode realizar-se. Desde que tenha paciência para tentar reconhecer, debaixo da névoa e da gordura e dos outros gestos humanos difíceis de apagar, a matéria nervosa do filme.
Quando de repente parou a projecção, insensível ao pequeno milagre que era aqueles pequenos filmes resistirem àquelas condições, o jovem organizador-apresentador, impaciente e cumpridor do número de filmes inicialmente estipulados, apenas três, mesmo se não aqueles, foi também insensível aos olhares solicitos de alguns espectadores, inebriados talvez pelo próprio paradoxo. Depois de passar um terço do ficheiro, se tanto, ficou na sala uma sensação de vazio. Os espectadores ociosos continuariam infinitamente, na urgência de não se poder parar, mesmo que assim precárias, aquelas imagens fantasmáticas. Que significará afinal que não possa ser parado mesmo o que é tão precário? O insensível rapaz que, no início da projecção assim apresentou os filmes, bem que insistia ainda no final com «os camponeses, os camponeses...», nem reparando que eram pescadores, mineiros, crianças, outras tantas coisas. Segundo a Wikipédia, parece que de Seta «realizou [apenas] dez pequenos documentários entre 1954 e 1959». Que alguém salve estes [poucos] filmes, no gesto simples de os mostrar.