O que é um povo?
Menk/Nós (1969) de Artavazd Pelechian
(excertos)
Ainda não começámos a pensar
We have yet to start thinking
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Uma autêntica explosão de loucura, cómica para uns, insustentável para outros... que se traduz num dilúvio de discursos, numa epidemia de prega partidas, e de jogos de sociedade muitas vezes ferozes, pondo em relevo uma arte muito quebequiana de fazer pouco. Um gosto pelos penachos, pela fanfarronice, que manifesta um espírito típico, mais que gaulês: joualeresque! E uma maravilha de expressão que parece, oh paradoxo! tomar um prazer maldoso em negar as suas efusões. Mas com o cansaço, à medida que o tempo passa, as almas exacerbam-se, revelam-se, tornam-se vulneráveis. Pois atrás da silhueta da besta luminosa, que enche os corações de desejo, perfila-se a outra, mais complexa, do amigo a encontrar, das grandes fidelidades de homens marcados por uma ternura que defende a sua existência e se cobre de rudeza, confundindo-se nas mil e uma voltas do pudor.
Stéphane-Albert vive intensamente o seu encontro com Bernard, o amigo de infância. A caçada não será um pretexto? Não certamente para Bernard, o cozinheiro encarregue dos estômagos esfomeados, mas também o caçador de experiências que procura mais um pretexto para deixar os seus caldeirões! Uma situação virtualmente ameaçada por um mal-entendido, que desemboca num terrível momento de verdade...
A exaltação do início descolora-se com a chuva, com o vento, com o frio, com a neve. As caminhadas esgotantes e as esperas intermináveis. A decepção paira. As máscaras vacilam. E é assim que os costumes selvagens de uma matilha de lobos se instalam, detendo-se insidiosamente sobre o grupo. O que levará alguns a determinar a vitima ideal, que se submeterá à tortura de uma implacável ironia...
E a quem se montará um cerco perfeito.
Inenarrável! Imperdoável!
No coração da natureza reencontrada.
Veio-me a tentação de exprimir a sua alma... Eu procurava antes de tudo o segredo do meu encantamento. E pensei na caça, pois eles habitam como num santuário, como uma perseguição ao fundo deles mesmos... A caça que não tem. aqui no Quebeque, o sentido que pode ter noutro lado. Festa do fresco Outono, que encanta na madrugada coberta de geada. Festa também da palavra e jogo da verdade.
Como explicar o seu temperamento? A sua eloquência? Eles frequentam apenas a corda bamba. Vivem no superlativo. Mudam em exploração o vil peso da banalidade.
Ao mínimo incidente fazem o maior estardalhaço, como se o mínimo gesto devesse retornar à história... Este estranho poder é puramente local. Eles não têm o sentido de estátua. Eles erigem o discurso apenas para o estilhaçar em pedaços. Eles são grandes adversários, Eles retorizam o presente. Eles investem toda a pretensão. Eles sacrificam toda a ternura sob o altar do espírito. Eles nunca se dão ao espectáculo, mesmo que estejam sempre em representação. Um temperamento claro e franco, que não toma a palavra nas assembleias onde há um notável Como se esperasse a sua hora.
Pois somos todos filhos de lenhadores. Mas constatei que a alma dos lenhadores se transformou em cultura e que aqueles que nunca abateram uma árvore eram da mesma madeira da cruz, partilhavam da mesma poesia, da mesma vivacidade, da mesma extravagância. Eles têm a alma terna até não acreditar nos seus ouvidos, mesmo se se recusam a reconhecê-lo, mesmo se eles fazem tudo para provar o contrário aqueles que mais amam no mundo... para demonstrar que a amizade é a toda a prova...
Para eles o alce não é apenas o animal a abater, mas um animal a amar, a tornar uma lenda, a recitar, para justificar a floresta e esse incrível refúgio fechado de certos homens que se fecham no seu mito. A caça é, enfim, a oportunidade da exploração nas nossas vidas sem exploração, rotineiras, monótonas e generosas... quando o Inverno se anuncia como um ajuste de contas... A caça é a ocasião de construir uma alma a toda a prova, uma alma escudada, uma alma para o Inverno para calçar as botas da exploração. Uma espécie de caça furtiva ao sonho. Um modo de se emancipar. Na verdade trata-se de uma espécie de exorcismo...
Jogar a grande jogo da caça, quer dizer, auto-insultar-se, auto-vangloriar-se, recomeçar o mundo, e oficializar o grande rito da caça com as suas prudências milenares, a paciência dos primeiros antepassados... É o lugar onde aquele que toma a palavra se atira para a boca do lobo. Não sem o saber por vezes. Quando temos variedade, é para aprontar o discurso e as suas consequências. Imaginava esta mesa redonda à volta de uma besta luminosa... a que eles não se sentarão talvez, como um certo Graal... »
Se a alternativa real-ficção é tão completamente ultrapassada, é porque a câmara, em vez de talhar um presente, fictício ou real, liga constantemente a personagem ao antes e ao depois que constituem uma imagem-tempo directa. É necessário que a personagem seja primeiro real para que afirme a ficção como uma potência e não como um modelo: é necessário que se ponha a fabular para se afirmar tanto mais como real, e não como fictícia. A personagem não cessa de tornar-se outra, e não é separável deste devir que se confunde com um povo.
Mas o que é que dizemos da personagem que vale em segundo lugar, e eminentemente, para o próprio cineasta. Ele também se torna outro, no momento em que toma personagens reais como intercessores, e substitui as ficções pelas próprias fabulações, mas, inversamente, atribui a essas fabulações a figura de lendas, produz a “legendificação”. Rouch faz o seu discurso indirecto livre, ao mesmo tempo que as personagens fazem o de África. Perrault faz o seu discurso indirecto livre, ao mesmo tempo que as personagens fazem o do Quebeque. E, sem dúvida, há uma grande diferença de situação entre Perrault e Rouch, diferença que não é somente pessoal mas cinematográfica e formal. Para Perrault, trata-se de pertencer ao seu povo dominado, e de encontrar uma identidade colectiva perdida, reprimida. Para Rouch, trata-se de sair da sua civilização dominante, e de atingir as premissas de uma outra identidade. Donde a possibilidade de malentendidos entre os dois autores. No entanto, ambos como cineastas partem com o mesmo material ligeiro, câmara ao ombro e magnetofone síncrono; eles têm de se tornar outros, com as suas personagens, ao mesmo tempo que as personagens têm de devir elas próprias outras. [«As potências do falso», 194-196, 197-198]
Em suma, se havia um cinema político moderno, seria na base: o povo já não existe, ou ainda não... falta o povo.
Esta verdade valia, sem dúvida, também para o Ocidente, mas raros eram os autores que a descobriam, porque estava escondida pelos mecanismos de poder e os sistemas de maioria. Em contrapartida, estalava no terceiro mundo, onde as nações oprimidas, exploradas, ficavam no estado de perpétuas minorias, em crise de identidade colectiva. Terceiro-mundo e minorias faziam nascer autores que estariam em estado de dizer, em relação à sua nação e à sua situação pessoal nesta nação: o povo é o que falta. Kafka e Klee tinham sido os primeiros a declará-lo explicitamente. Um dizia que as literaturas menores, “nas pequenas nações”, tinham de suprir uma “consciência nacional muitas vezes inactiva e sempre em vias de desagregação”, e substituir tarefas colectivas na ausência de um povo; o outro dizia que a pintura, por reunir todas as partes da sua “grande obra”, tinha necessidade de uma “última força, o povo que fazia ainda falta'. Com mais forte razão para o cinema como arte de massa, Ora o cineasta do terceiro mundo se encontra diante de um público frequentemente analfabeto, alimentado por séries americanas, egípcias ou indianas, filmes de karaté, e é por aí que é necessário passar, é esta matéria que é necessário trabalhar, para lhe extrair os elementos de um povo que ainda falta (Lino Brocka). Ora o cineasta de minoria encontra-se no impasse descrito por Kafka: impossibilitado de não “escrever”, impossibilitado de escrever na língua dominante, impossibilitado de escrever de maneira diferente (Pierre Perrault encontra esta situação em Un pays sans bon sens, impossibilitado de não falar, impossibilitado de falar de modo diferente senão em inglês, impossibilitado de falar inglês, impossibilitado de se instalar em França para falar francês ... ), e é por este estado de crise que é necessário passar, é isto que é necessário resolver. Esta constatação de um povo que falta não é uma nova base sobre a qual se baseie, desde logo, no terceiro mundo e nas minorias. É necessário que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe nesta tarefa: não se dirigir a um povo suposto, já lá, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o mestre, o colonizador proclamam “nunca houve povo aqui”, o povo que falta é um devir, inventa-se, nos bairros de lata e nos campos, ou então nos guetos, nas novas condições de luta a que uma arte necessariamente política tem de contribuir.
A tomada de consciência é desqualificada, ou porque é feita em vão como no intelectual, ou porque é comprimida num vazio como em António das Mortes, apta apenas para apreender a justaposição das duas violências e a continuação da uma pela outra.
O que é que resta, então? O maior cinema de “agitação” que se tenha feito alguma vez: a agitação já não decorre de uma tomada de consciência, mas consiste a tudo colocar em transe, o povo e os patrões, a própria câmara, conduzir tudo à aberração, para fazer comunicar as violências como fazer passar o assunto privado para o político, e a questão política para o privado (Terra em Transe). (...) Extrair do mito um actual vivido que designe ao mesmo tempo a impossibilidade de viver pode ser feito de várias maneiras, mas não deixa de constituir o novo objecto do cinema político: pôr em transe, colocar em crise. Em Pierre Perrault, trata-se exactamente do estado de crise e não de transe. Trata-se de pesquisas obstinadas em vez de pulsões brutais. No entanto, a pesquisa aberrante dos antepassados franceses (Le Règne du jour, Un pays sans bon sens, Cétait un Québécois en Bretagne) verifica por sua vez, sob o mito das origens, a ausência de fronteira entre o privado e o político, mas também a impossibilidade de viver nestas condições, para o colonizado que colide com um impasse em todas as direcções. Tudo se passa como se o cinema político moderno já não se constituísse sobre uma possibilidade de evolução e de revolução, como o cinema clássico, mas sobre impossibilidades, à maneira de Kafka: o intolerável.
É deste modo que se vê (...) Perrault denunciar toda a ficção que um autor poderia criar. Resta ao autor a possibilidade de se atribuir “intercessores”, isto é, de tornar personagens reais e não fictícias, mas ao colocá-las elas próprias em estado de “ficcionar”, de “fazer lenda”, de “fabular”. O autor dá um passo na direcção das suas personagens, mas as personagens dão um passo na direcção do autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é uma ficção pessoal: é uma palavra em acto, um acto de palavra pelo qual a personagem não pára de ultrapassar a fronteira que separa a sua questão privada da política e produz ela própria enunciados colectivos. (...)
É Perrault, no outro extremo da América que se dirige as personagens reais, os seus “intercessores”, para prevenir toda a ficção, mas também para conduzir a critica do mito. Procedendo pela colocação em crise, Perrault vai libertar o acto fabulador da palavra, ora gerador de acção (a reinvenção da pesca ao marsuíno em Pour la suite du monde), ora tomando-se ele próprio como objecto (o inquérito aos antepassados em Le Régne du jour), ora suscitando uma simulação criativa (a caça ao orignal em La Bête lumineuse), mas sempre de tal maneira que a fabulação seja ela própria memória, e a memória, invenção de um povo. Talvez tudo culmine com Le Pays de la terre sans arbres que reúne todos os meios, ou, pelo contrário, com Un pays sans bon sens, que os rarefaz (porque, aqui, a personagem real goza do máximo de solidão, e já nem sequer pertence ao Quebeque, mas a uma minúscula minoria francesa em pais inglês, e salta do Winnipeg para Paris, para melhor inventar a sua pertença quebequesa, e produzir um enunciado colectivo). Não o mito de um povo passado, mas a fabulação do povo por vir. É necessário que o acto de palavra se crie como uma língua estrangeira numa língua dominante, precisamente para exprimir uma impossibilidade de viver sob a dominação. É a personagem real que sai do seu estado privado, ao mesmo tempo que o autor do seu estado abstracto, para formar a dois, a vários, os enunciados do Quebeque, sobre o Quebeque, sobre a América, sobre a Bretanha e Paris (discurso indirecto livre). [«Cinema, corpo e cérebro, pensamento», 277-279, 280-281, 284-285]
Se é verdade que o cinema moderno implica a ruína do esquema sensorial motor, o acto de palavra já não se insere no encadeamento das acções e reacções e já não revela uma trama de interacções. Curva-se sobre si mesmo, já não é uma dependência ou uma pertença da imagem visual, torna-se inteiramente uma imagem sonora, toma uma autonomia cinematográfica e o cinema devém verdadeiramente audiovisual. E é isto que faz a unidade de todas as novas formas do acto de palavra quando passa para este regime do indirecto-livre: este acto pelo qual o sonoro se torna finalmente autónomo. já não se trata de acção-reacção, nem de interacção, nem mesmo de reflexão. O acto de palavra mudou de estatuto. Se nos referirmos ao cinema “directo”, encontramos completamente este novo estatuto que dá à palavra o valor de uma indirecta livre: é a fabulação. O acto de palavra torna-se acto de fabulação, em Rouch ou em Perrault, o que Perrault chama “o flagrante delito de fazer lenda”, e que toma o alcance político de constituição de um povo (é somente por aí que se pode definir um cinema apresentado como directo ou vivido).
(...) porque o falso deixa de ser uma simples aparência, ou mesmo uma mentira, para alcançar esta potência do devir que constitui as séries ou os graus que ultrapassa os limites, opera metamorfoses e desenvolve sobre todo o seu percurso um acto de lenda, de fabulação. Para além do verdadeiro e do falso, o devir como potência do falso. (...) várias figuras nesta potência do falso. (...) Ora é uma personagem que ultrapassa ela mesmo o limite e que devém uma outra, sob um acto de fabulação que o relaciona com um povo passado ou por vir: vimos por que paradoxo este cinema se chamava “cinema-verdade” no momento em que punha em questão qualquer modelo do verdadeiro; e há um duplo devir sobreposto, porque o autor devém outro como a sua personagem (por exemplo, em Perrault que toma a personagem como “intercessora”...)
Pour la suite du monde de Pierre Perrault e Michel Brault (1963)
4ª, dia 17, 21h30 - Cinemateca
Os canibais (1988) de Manoel de Oliveira