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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

La bête lumineuse


La bête lumineuse de Pierre Perrault (1982)
6ª, dia 26, 22h - Cinemateca

« Numa floresta nos arredores de Maniwaki, no Quebeque, citadinos vestidos de caçadores empreendem o grande regresso à natureza. Enfim, está na hora da caça ao alce [orignal]. É também a ocasião de agradáveis encontros entre amigos que se tinham perdido de vista há muito tempo. A emoção é visível. Mas não se manifesta sem paradoxo... Implicamos uns com os outros. Conseguiremos matar este ano? Quem ganhará o troféu?
No início a intenção é edificante. Fazer as pazes com a natureza caçando, como caça toda a natureza! Submeter-se corajosamente a essa experiência de dar a morte como para exorcizar a nossa própria morte, segurando toda a cadeia da vida. Deitar abaixo todos os intermediários que privam o homem moderno desse precioso contacto com a natureza, com a realidade concreta. E aceitar a auto-imposição de um pouco de infelicidade, à vista de todo o mundo. Acabou o conforto de carregar num botão! Enfim, poder-se comparar consigo e com os outros, jogar com o instinto de poder, adorar os actos heróicos, encarando o desafio das armas, as astúcias dos animais, os obstáculos das intempéries e a prova da iniciação. Todo um programa!
Mas a realidade não existe sem algumas surpresas... Sob o olhar paciente do guia índio, testemunha silenciosa, portadora de toda uma tradição de natureza, a buck fever faz as suas vitimas entre os homens possuídos por uma fascinante ideia fixa, que esbate a distinção entre o sonho e a realidade! E é a confrontação quotidiana, cada noite, durante longas e ruidosas noitadas, na cabana, quando cada um vem contar as suas aventuras... ou desventuras a camuflar!
Levados pelo delírio crescente da excitação e do esgotamento, alguns esquecem-se e deixam-se levar pela gabarolice, fanfarronice, expondo-se ao ridículo, enquanto que outros observam, silenciosos, de olhar malicioso, armando já as ciladas! E a temperatura sobe depressa nos homens isolados, privados das suas mulheres, e com um temperamento levado a todos os extremos, abundantemente regados de álcool, abre-se a um incrível senso de humor, do absurdo!

Uma autêntica explosão de loucura, cómica para uns, insustentável para outros... que se traduz num dilúvio de discursos, numa epidemia de prega partidas, e de jogos de sociedade muitas vezes ferozes, pondo em relevo uma arte muito quebequiana de fazer pouco. Um gosto pelos penachos, pela fanfarronice, que manifesta um espírito típico, mais que gaulês: joualeresque! E uma maravilha de expressão que parece, oh paradoxo! tomar um prazer maldoso em negar as suas efusões. Mas com o cansaço, à medida que o tempo passa, as almas exacerbam-se, revelam-se, tornam-se vulneráveis. Pois atrás da silhueta da besta luminosa, que enche os corações de desejo, perfila-se a outra, mais complexa, do amigo a encontrar, das grandes fidelidades de homens marcados por uma ternura que defende a sua existência e se cobre de rudeza, confundindo-se nas mil e uma voltas do pudor.

Stéphane-Albert vive intensamente o seu encontro com Bernard, o amigo de infância. A caçada não será um pretexto? Não certamente para Bernard, o cozinheiro encarregue dos estômagos esfomeados, mas também o caçador de experiências que procura mais um pretexto para deixar os seus caldeirões! Uma situação virtualmente ameaçada por um mal-entendido, que desemboca num terrível momento de verdade...

A exaltação do início descolora-se com a chuva, com o vento, com o frio, com a neve. As caminhadas esgotantes e as esperas intermináveis. A decepção paira. As máscaras vacilam. E é assim que os costumes selvagens de uma matilha de lobos se instalam, detendo-se insidiosamente sobre o grupo. O que levará alguns a determinar a vitima ideal, que se submeterá à tortura de uma implacável ironia...

E a quem se montará um cerco perfeito.

Inenarrável! Imperdoável!

No coração da natureza reencontrada.



Veio-me a tentação de exprimir a sua alma... Eu procurava antes de tudo o segredo do meu encantamento. E pensei na caça, pois eles habitam como num santuário, como uma perseguição ao fundo deles mesmos... A caça que não tem. aqui no Quebeque, o sentido que pode ter noutro lado. Festa do fresco Outono, que encanta na madrugada coberta de geada. Festa também da palavra e jogo da verdade.

Como explicar o seu temperamento? A sua eloquência? Eles frequentam apenas a corda bamba. Vivem no superlativo. Mudam em exploração o vil peso da banalidade.

Ao mínimo incidente fazem o maior estardalhaço, como se o mínimo gesto devesse retornar à história... Este estranho poder é puramente local. Eles não têm o sentido de estátua. Eles erigem o discurso apenas para o estilhaçar em pedaços. Eles são grandes adversários, Eles retorizam o presente. Eles investem toda a pretensão. Eles sacrificam toda a ternura sob o altar do espírito. Eles nunca se dão ao espectáculo, mesmo que estejam sempre em representação. Um temperamento claro e franco, que não toma a palavra nas assembleias onde há um notável Como se esperasse a sua hora.

Pois somos todos filhos de lenhadores. Mas constatei que a alma dos lenhadores se transformou em cultura e que aqueles que nunca abateram uma árvore eram da mesma madeira da cruz, partilhavam da mesma poesia, da mesma vivacidade, da mesma extravagância. Eles têm a alma terna até não acreditar nos seus ouvidos, mesmo se se recusam a reconhecê-lo, mesmo se eles fazem tudo para provar o contrário aqueles que mais amam no mundo... para demonstrar que a amizade é a toda a prova...

Para eles o alce não é apenas o animal a abater, mas um animal a amar, a tornar uma lenda, a recitar, para justificar a floresta e esse incrível refúgio fechado de certos homens que se fecham no seu mito. A caça é, enfim, a oportunidade da exploração nas nossas vidas sem exploração, rotineiras, monótonas e generosas... quando o Inverno se anuncia como um ajuste de contas... A caça é a ocasião de construir uma alma a toda a prova, uma alma escudada, uma alma para o Inverno para calçar as botas da exploração. Uma espécie de caça furtiva ao sonho. Um modo de se emancipar. Na verdade trata-se de uma espécie de exorcismo...
Jogar a grande jogo da caça, quer dizer, auto-insultar-se, auto-vangloriar-se, recomeçar o mundo, e oficializar o grande rito da caça com as suas prudências milenares, a paciência dos primeiros antepassados... É o lugar onde aquele que toma a palavra se atira para a boca do lobo. Não sem o saber por vezes. Quando temos variedade, é para aprontar o discurso e as suas consequências. Imaginava esta mesa redonda à volta de uma besta luminosa... a que eles não se sentarão talvez, como um certo Graal... »


Pierre Perrault, documentação do 18º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, 1989

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