Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A doce Delphine. Fragilidade e obstinação (Susana Duarte)


Le Rayon Vert (1986) de Eric Rohmer, com Marie Rivière

Delphine, a doce Delphine que aspira ao raio verde, recebe um telefonema no escritório onde trabalha; a amiga com quem ia passar férias abandona-a à última da hora e Delphine fica sem projectos para os dias de descanso que se irão seguir; o filme mete-se em marcha e desenha os movimentos de Delphine no interior deste Verão inesperado e esvaziado do seu programa. Que fazer, agora? É o problema que Delphine vai afrontar e do qual se desprende de um modo muito mais fundamental o caminho da vida na sua incerteza. A partir da relação com este acontecimento imprevisível, é toda a vida de Delphine que vacila, o seu modo de se dar e existir que são confrontados. E o cinema de Rohmer mostra que Delphine e o mundo dependem e se exprimem agora nessa relação. Lançando-a na indeterminação, Rohmer dá rédea solta às determinações do acaso. Mas ao contrário de outros filmes de Rohmer, aqui Delphine não tem nada nas mãos, não há teoremas ou pressupostos de partida conscientes e definidos, para pôr à prova... há contudo, uma ideia vaga, quase inexprimível, que a inspira e à qual aspira, de que se trata de “escolher o que já está escolhido”, e o que o momento de dizer “sim” a alguém, porque é de amor e de solidão que se trata, não será verdadeiramente da ordem da escolha, mas da evidência (não uma evidência da razão, mas uma misteriosa evidência da vida). É esta ideia que a faz mover, que a anima, e nas suas férias forçadas emerge uma espécie de itinerário espiritual, em que protegendo com obstinação esta ideia sem imagem, que ela mais do que conseguir nomear, pressente, e cuja força nós vamos pressentido com ela e através dela, Delphine abandona-se ao jogo dos encontros e do acaso, tal como o filme de Rohmer, e nesse abandono exila-se e arrisca-se na mais alta solidão, como se esse ponto indefinido, mas não arbitrário, que defende obsessivamente, a abandonasse a cada encontro que se desenha, tornando-o numa espécie de prova de resistência, e a entregasse ao vazio, para aí poder brilhar com mais intensidade.
Estamos no mais próximo da vida, “que não explica nada por sua conta e deixa nas criaturas zonas indeterminadas, hesitantes, que desafiam qualquer esclarecimento”. Rohmer não explica Delphine. Não há ponto de vista privilegiado. Vêmo-la do exterior a conservar até ao fim o seu mistério, mistura de fragilidade e obstinação. Seguimos Delphine, nas suas idas e vindas de Paris, avançamos com ela ao sabor dos acasos, da sorte, dos dias de verão que se sucedem, pois também ela se entrega totalmente ao exterior, se exclui da análise das razões, da psicologia dos motivos, para obter aquilo que eles não lhe podem dar, o que não consegue nomear, justamente aquilo que a move nos encontros, na procura do amor...
Sozinha, perdida e hesitante, “somente com o chão que faz falta aos seus dois pés”, Delphine “apenas tem de passear e pode fazê-lo em qualquer lado”. Depois de algumas visitas a amigos e familiares em Paris, apesar de pouco entusiasmada, Delphine põe a hipótese de ir até Irlanda com a família. Acaba por ir para Cherbourg, com Françoise, uma amiga. Regressa a Paris passado cinco dias. A seguir viaja até aos Alpes, depois de ter falado com Jean-Pierre, o seu antigo namorado. Regressa a Paris no próprio dia. Vai ter com Françoise e chora. Diz-lhe que “é duro estar sozinha e que como não espera nada, talvez encontre alguém; não sabe o que quer fazer”. Alguns dias mais tarde, num passeio, encontra uma outra amiga que a convida a usar o seu apartamento, em Biarritz. Delphine segue então para Biarritz. Uma vez mais, pouco tempo depois da chegada, decide partir novamente...
Delphine mostra-se à flor da pele e todos falam sobre ela e sobre a sua solidão, como se quisessem tomar conta da fragilidade que ela lhes oferece, como se ao exibi-la sem máscara, ela não tivesse como recusar as palavras de conforto, de boas intenções, as questões e os pressupostos benevolentes dos outros. Para a salvarem da sua solidão os outros pressionam-na a dizer “sim”, a escolher, forçam-na a trair essa ideia indefinida, secreta, simultaneamente profunda e exterior, que age nela e a faz agir (e que é também o motor do filme). Mas para a fazer sobreviver, Delphine diz “não”, ou por vezes “não sei”, ou ainda “sim... e não”, tornando irrelevantes, ou inoperantes as palavras dos amigos ou desconhecidos com quem se vai cruzando, que progressivamente se deixam de distinguir, de uma situação para outra, de encontro em encontro. Assim, Delphine para uma rapariga sueca que conhece em Biarritz: “Para mim isso é vago, é uma conversa. Fazer alguma coisa... “Faz alguma coisa”. Já ouvi isso antes. As minhas amigas de Paris já mo disseram: “É preciso fazer alguma coisa, procurar, blá, blá, blá. É só conversa...”
Não lhe interessa o “sim” assente nos pressupostos razoáveis dos outros, mesmo sob pena de manter toda gente à distância e de se perder para o mundo.
As sucessivas recusas de Delphine, mais do que recusas, são recusas na suspensão da escolha, que mantêm a escolha aberta, mas sem definir afirmativamente os seus contornos. Cada “não” ou “não sei”, não nos dá referências claras sobre o que poderia ser escolhido, ao mesmo tempo que a verdadeira escolha que parecem querer preservar, parece afastar-se cada vez mais dos “possíveis”. O “não” é perturbador porque, serve para guardar o “sim” em relação a um acontecimento, a alguém, indeterminado, no qual se projecta, sacrificando, na espera, os “possíveis” que se oferecem; responde a um ponto cego, cujo conhecimento misterioso e irracional só Delphine detém...
No entanto, é neste gesto, por um lado, de abandono, por outro, de subtracção sucessiva ao mundo exterior, de corte com ele, que se evidencia a perseverança e a força desse ponto íntimo que é simultaneamente “um exterior mais profundo”.
A confiança nesse exterior, que as palavras de Delphine, em resposta às interrogações dos outros sobre a sua possibilidade e realidade, só conseguem apreender de forma balbuciante, é como que confirmada pela entrada de pequenos objectos verdes, que a estrutura do filme põe em destaque: tratam-se de objectos que Delphine encontra ao longo da narração e que assinalam uma espécie de “dimensão metafísica do acaso”; indiciam, apesar da má sorte, que a sua obstinação encontrará, pela mão enigmática do acaso, um ponto em que este se fará graça, milagre, dando finalmente sentido a todo o seu movimento...
O instante procurado, que parece impossível, o da verdadeira escolha, que é também o do verdadeiro encontro, esse instante que parece não lhe estar destinado, em torno do qual o filme deambula com o personagem, numa busca que se faz na abertura paciente, uma paciência que parece aos outros fechamento caprichoso, Rohmer mostra-o no fim do filme, em toda a sua fragilidade: “o raio verde, momento único, raro, que Delphine e a câmara querem fixar no seu presente, para não viverem somente a sua virtualidade”.

A monstruosidade pela metáfora



« Quando penso no modo como a literatura influenciou o meu cinema - e acho que não é uma coisa directa, é até algo subtil - penso que tenho esta obsessão com a metáfora. Como fazer... não se pode fazer literalmente, quer dizer, Eisenstein experimentou equivalências literais de metáforas. O povo levantava-se e rugia como um leão, e ele depois cortava para um leão levantado a rugir. Era tolo, era ridículo, afastava as pessoas do cinema e não resultava. E, no entanto, a metáfora é verdadeiramente a pedra basilar de toda a prosa, de toda a literatura.
Como se faz uma metáfora em cinema? No meu caso, apercebi-me que é pela criação de imagens, imagens de monstros... Se se fala de ideias puras... As ideias puras são invisíveis, não se tem nada para fotografar. O que é algo que se pode fazer em literatura, mas não do mesmo modo em cinema. Então, como... como dar ideias... Tenho de tornar a palavra carne. E então filmar a carne, porque não posso filmar a palavra. É isso que sinto.
Estou sempre à procura de metáforas. E tenho de as criar eu próprio. Normalmente os meus argumentos geram-as. Não têm de ser monstros no sentido da ficção científica ou do filme de terror. Podem ser os instrumentos cirúrgicos em Dead ringers, por exemplo, que são realizáveis, fisicamente realizáveis. E, no entanto, também são monstruosos. Não tem de ser uma mosca de noventa quilos, podem ser intrumentos cirúrgicos ou... Mas preciso disso, ou antes, procuro-o.
A alternativa seria fazê-lo através dos diálogos, através das palavras que as pessoas dizem umas às outras, e também o faço. Mas estou à procura da metáfora. E isso leva-me a uma certa monstruosidade. Acho que é por isso que invento estas coisas.»
David Cronenberg in David Cronenberg: I Have to Make the Word Be Flesh (1999) de André S. Labarthe, em projecção contínua na Sala 6x2 da Cinemateca, Lisboa

No nada podemos mostrar tudo



« O que me agradava no documentário que se torna ficção, nessa chávena de café... Lembro-me de como foi filmada: colocámo-nos diante da chávena de café, eu mexi-a e então o Coutard [director de fotografia] dizia: "Não vejo nada, não vejo nada, não se passa nada", aquilo mexia e mesmo assim ainda durou dez minutos; depois, a dado momento, não havia mais nada... E então, nesse momento de que gosto tanto, a partir de uma chávena de café, vimos o mundo desfazer-se e depois, de repente, o mundo criou-se de novo, de repente imóvel... Havia coisas que se passavam, e é nisso que tudo é interessante; é possível fazer um filme com nada, porque no nada podemos mostrar tudo.»

Jean-Luc Godard sobre 2 ou 3 choses que je sais d'elle (1967)

Um gesto, duas morais



Em Saboteur de Hitchcock, o herói (Robert Cummings), acusado de um acto de sabotagem numa fábrica de aviões de guerra, procura quem o incriminou numa fazenda remota. Para escapar ao chefe dos espiões alemães recém-descoberto, pega na neta deste e foge com ela às costas até à esquina da casa, impedindo a tentativa de o suster com uma arma de fogo, cujo uso poria em perigo a vida da criança. O filme já nos tinha mostrado anteriormente que os espiões nazis sibilinos gostam particularmente das netas. Trata-se portanto de uma espécie de escudo humano, sob a forma de uma criança, que este herói hitchcockiano brevemente ostenta. A saborosa sabedoria malévola de Hitchcock faz passar este acto quase desapercebido, num tom ligeiro, de tal forma que não podemos deixar de elogiar a esperteza deste herói. Esperteza certamente ambígua, mas os homens de acção não têm tempo para ambiguidades.
Já em Dead zone de Cronenberg, o vilão (Martin Sheen), no decorrer de um comício eleitoral, e posto sob fogo das balas do herói (Christopher Walken), que o pretende impedir de chegar a presidente dos EUA pois teve a visão terrífica da megalomania daquele, para se proteger dos tiros, pega num bebé que estava próximo na assistência e ostenta-o no ar, igualmente como escudo. Se o herói falha a sua missão de aniquilar o vilão, os média, nomeadamente uma capa da Time com uma fotografia da cena, encarregam-se do assunto, ao mostrarem este preciso gesto cobarde de ostentação do bebé para sua própria protecção.
Temos portanto dois gestos que se podem e devem reconhecer como semelhantes e duas morais absolutamente contrastantes. A não ser que se condicione a natureza do gesto à suposta bondade das ulteriores intenções das personagens, tem de se dolorosamente admitir que se trata do mesmo gesto e de duas morais. O sentido do gesto apenas se inverte por relação a algo de exterior ao próprio gesto, por relação a um contexto mais alargado que é sempre possível invocar ao sabor das conveniências e circunstâncias. Mas não podendo nós dispensar esse contexto, como determinar concretamente onde ele se delimita? Devemos circunscrevê-lo à acção descrita, à ordem jurídica constituída, ou mesmo invocar a humanidade como horizonte de cada gesto? E sendo assim, porque não o cosmos como horizonte "moral" de cada gesto?
Como é difícil acabar de vez com a assombração dos gestos pela moral.

Materialidade = esteticização?

« Se retiro do acto de estar a fotografar ou a filmar uma certa abstracção... ou seja, se valorizo a função do objecto fotografado como imagem e vejo esta na sua materialidade (colocando focos de iluminação, criando sombras) o que estou a fazer é a exorbitar a imagem para um domínio que tende a esvaziá-la de densidades. E o problema da esteticização da política, da miséria, etc... retirar da imagem uma espécie de mais-valia e torná-la um aspecto literalmente económico. E o acto de exorbitar a importância de um significante, é usá-lo corrigido para o tornar plástica e esteticamente atractivo, afastando-o das malhas do real que o constituem. Assiste-se a uma forma extremamente hipócrita de lidar com as imagens. Promete-se e desliza-se sobre essa promessa. Esta é uma característica muito comum na publicidade actual, dos sistemas económicos dominantes e da sua estratégia de alargamento de mercado: prometer e depois recuar, e deixar as coisas hipocritamente correrem de outra maneira. As imagens estão sempre a ser jogadas, como uma espécie de mais-valia. Tornam-se uma espécie de pequeno animal amestrado. Os elementos ficcionais, ou valores puramente estéticos e descritivos, fazem sempre parte do documentário cinematográfico, contudo esses elementos são muitas vezes enfatizados excessivamente. E essa enfatização retira a meu ver possibilidades discursivas e críticas. »
(Pedro Lapa, «Inventariar instantes», Panorama. Mostra do documentário português, Apordoc/Vídeoteca Municipal de Lisboa, 2006, p. 25)
Ein bild (1983) Harun Farocki

A descrição que Pedro Lapa faz dos procedimentos de esteticização é-me simpática mas, mesmo tendo-a como um inimigo comum, não será no mínimo apressado circunscrever exclusivamente a materialidade da imagem a essa esteticização? É evidente que esta se baseia numa espécie de domínio técnico extremamente elaborado que perde progressivamente a relação com o que filma. Mas ao trabalhar a apreensão das forças, das sensações vivas, não temos igualmente de passar pela especificidade material das imagens? Como evitá-lo, a não ser que se caia na terrível inocência de achar que há uma neutralidade técnica ou material? Por exemplo, pensar que as câmaras de vídeo vêm com a cor neutra lá dentro, sem ter a consciência de que essa cor é já ela prescrita tecnicamente. Assim, na maior parte dos filmes em vídeo digital, é relativamente fácil reconhecer o director de fotografia dos filmes como o engenheiro da Sony, da Canon ou da Panasonic, etc., que elaborou o padrão técnico. Talvez isto não seja assim tão importante na soma de tudo o que constitui um filme, mas temos de procurar descrever, na sua concretude, o que faz a força de alguns filmes.
A construção das sensações em cinema não pode assim ser confundida com um lavar as mãos dessa materialidade. A inocência de supor que se nos alhearmos da problemática material ficamos mais livres só pode ser advogada por quem promova uma generalização da conceptualidade discursiva. E a relação entre materiais e forças, que define também uma arte constituída como o cinema, parece-me, para o bem e para o mal, aquém ou além dessa conceptualização.

Pas de bonheur







Para infelicidade geral,

o filme Le bonheur
da Agnès Varda
afinal não vai passar,
apesar de ter estar programado,
segundo a Agenda LX,
para 27 de Fevereiro no IFP - Lisboa.

Uma imagem, de novo



La dernière lettre (2002) Frederick Wiseman
« A magnificent black-and-white sculpts the face of Catherine Samie, her hands, her silhouette like a shadow puppet, as she herself sculpts the words in the dark substance of days. » (M.-N.T, Figaro)

Eis uma imagem, de novo, no mínimo bizarra, retirada inesperadamente do último filme à data (que ainda não vi) do tão austero e preciso Frederick Wiseman, documentarista impar, que adopta aqui um preto e branco, que prefere por ter sido assim que viu as newsreels da época, da época do extermínio dos judeus na Europa, que aborda nesta sua segunda ficção.
Confesso que me é desconfortável o uso do preto e branco para abordar o problema dos campos de extermínio ou dos genocídios históricos recentes, talvez precisamente, mas não apenas, pela confusão que pode criar com as imagens de arquivo, filmadas à época em preto e branco.
Seria por isso tentado a colocar de um lado, devido a esse uso estilizado, Schindler's list de Spielberg
, doutro, distante, pela não facilidade, a cor da actualidade, Nuit et brouillard de Resnais ou Shoah de Lanzmann, ou mesmo as imagens colhidas por George Stevens para si aquando da libertação dos campos pelos aliados. Haverá, de qualquer forma, a excepção do preto e branco da Pasazerka de Munk.
E qual será o sentido destas enigmáticas figuras esbatidas, diríamos quase genéricas, multiplicadas em sombras, nesta última carta? Que poderão acrescentar, na abstracção que aparentemente encarnam, à compreensão do problema? Uma cabeça branca para um corpo enegrecido?

A propósito do debate final no PANORAMA: uma ideia de programação

I.
"Já não posso pensar o que quero pensar. As imagens em movimento tomaram o lugar dos meus pensamentos." (George Duhamel, Scènes de la vie future)

Há na montagem um mecanismo que pela afinidade se parece substituir ao pensamento. Será talvez este um dos alcances do “efeito de choque” do Benjamin: de repente já não sou o único a pensar, vejo numa sala escura projectada numa tela branca a construção de um pensamento que se substitui à minha.

"De facto a sucessão de imagens perturba o processo de associação daquele que as observa. Neste facto reside o efeito de choque do cinema que, como qualquer efeito de choque, deve ser suportado por uma presença de espírito acrescida." (Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”)

Quando uma cara de mulher se sucede ao enquadramento de um pão, vemos fome na expressão. Vemos uma imagem a partir de outra, lemos a partir da ligação, de um intermédio feito na construção da sequência. Um plano é lido com base no anterior (ou anteriores), pensamos na relação, no diálogo construído entre planos. A resistência a essa sucessão exterior, passa talvez pela consciência de onde se está, pela observação dos mecanismos construtores da associação… passa talvez por um simultâneo participar dessa torrente, e saber que se está a ir. Conseguir visualizar, desconstruir mentalmente ou em discussão a montagem das atracções.

Há talvez na programação um princípio que, inevitavelmente a outro nível, numa outra escala, actualiza alguns dos mecanismos de associação da montagem. Passando do plano ao filme, a programação pode ser construção de leitura, construção de uma teia de ligações e relações feitas num segundo nível a partir das relações interiores ao próprio filme. Colocar num programa um filme a seguir a outro é trabalhar parte da matéria da montagem (retira-se obviamente o tempo, a descoberta do momento, mas mantém-se a possibilidade de ver e ler um plano a partir de outro… mantém-se assim uma espécie de contorno da montagem, aquilo que se manipula, não aquilo com que se manipula…).

Há portanto na programação um potencial de dar a ver em relação, e de dar a ver a relação mais facilmente que no interior de uma sala e durante um só filme. A programação como relação construída entre salas, entre telas, entre filmes, poderá constituir o campo de uma importante resistência ao tal fluxo que corre, concedendo a possibilidade de uma “presença de espírito”. A relação estabelece-se já não dentro de um pensamento, mas entre pensamentos, entre discursos. Torna-se possível falar sobre.

II.
Na discussão final em volta do PANORAMA, Mostra do Documentário Português, discutiu-se muito mais a Mostra do que o panorama desse tal documentário português. Faço um comentário a duas das críticas apontadas à programação da mostra (outras notas podem ser lidas no DOC-LOG da Leonor Areal).
A primeira: uma “cobarde” falta de escolha, de critérios, de selecção e consequentemente de programação (confundindo duas coisas diferentes: programar e selecionar); uma demissão do acto de programar.
A segunda: o público tem de ser protegido, algo que o PANORAMA não fez ao colocar lado a lado filmes bons e filmes maus, filmes de escola, institucionais, ou de realizadores firmados. Não o fez ainda ao colocar numa mesma sessão e sob o mesmo tema filmes com durações e trabalhos ou resoluções muito diferentes. O espectador saiu da sala indignado e não voltou.

Primeiro: a falta de escolha, ou de discernimento, ou de atitude selectiva. Acho que não poderia ter havido uma escolha mais corajosa do que aquela que tivemos na organização do PANORAMA: a escolha de mostrar tudo (encaminhámos dois ou três filmes para outras mostras, e deixámos duas peças jornalísticas de lado… algo que aqui poderá funcionar contra a minha argumentação… deixo para outro texto…). A programação foi feita a partir do pressuposto inicial de que não iria existir uma selecção, que seria criado terreno para a discussão em volta das fronteiras do documentário, sobre o estado das coisas feitas entre nós, e que esse averiguar só seria possível se déssemos a oportunidade de se ver tudo. A discussão só poderia existir se as coisas fossem vistas. A partir de 89 filmes criámos uma série de blocos organizados por temas (organização que se prende com a pesquisa específica desta primeira edição, em volta exactamente dos objectos filmados pelos documentários em Portugal, “para onde olham os documentários portugueses?”). O objectivo não era criar uma ilustração do tema, mas juntar os filmes por linhas de força mais ou menos abstractas que pudessem fomentar uma discussão em volta dos filmes e da sua associação. Foi o que aconteceu em alguns debates (Em Comum, Detrás do Traço) em que os espectadores, que facilmente perceberam o esquema e curiosamente protagonizaram debates muito animados (para o habitual em Lisboa), comentaram os filmes a partir de outros. Ou seja, conseguiram verbalizar o que faltava num filme ao sentirem a mesma falta num outro filme, mas de forma mais exacerbada; ou conseguiram perceber o que um filme tinha de bom, ao ver um outro onde esse “bom” particular faltava... Os espectadores conseguiram falar sobre os filmes pelo criar de uma relação entre eles. E isto, mesmo não tendo acontecido em todos os debates, ao acontecer pontualmente deu corpo à programação, deu-lhe sentido.

E aqui se introduz o segundo ponto: a protecção do espectador. Será proteger o espectador oferecer-lhe uma programação limpa, cheia de certezas, onde ele poderá navegar sem grandes entraves ou obstáculos por aquilo que lhe é apresentado como “bom”? Não será também proteger o espectador dar-lhe armas, criar-lhe dúvidas (mais sãs porque dele), fazê-lo sair da cadeira, indignado, fazê-lo sair, reagir? Não gosto do “proteger o espectador”, é uma expressão que me irrita e me incomoda, não quero nela ser incluída, não quero ser protegida. Protegida contra quê? Contra quem? Um dos objectivos do PANORAMA é claramente criar públicos. Mas é criá-los onde eles já existem, no sítio exacto onde existem, nos nichos deixados abertos. De dentro dos consensos é criar dúvidas, é criar espectadores ou públicos que sabem o que estão a ver, e que se indignam ou se comovem. Públicos que não se limitam a perpetuar o escrito e o dito sobre os filmes, que de repente têm armas para ver e discutir, para ver em relação. E assim construir uma leitura própria, individual, única.

The Big Parade


os soldados avançam por entre as árvores. são pequenos entre os grandes troncos. avançam até alcançarem campo aberto, aberto de buracos onde os soldados se enfiam com as suas armas. a guerra das trincheiras, cada buraco seis homens. de novo têm cara e nome. do lado de lá, do outro lado, está o inimigo. dele não conhecemos nenhuma cara, nenhum nome, nenhum gesto pequeno, apenas as suas bombas, as manchas de fogo, o fumo, o pó. o campo está separado pela distância que dita um lado contra o outro. dos buracos avistam-se os outros buracos e dos buracos os soldados matam de longe sem que vejam de perto a morte que provocam. a guerra passa-se nessa cegueira. passa muito tempo e depois é noite e o tempo passa ainda mais lentamente. esperam-se sinais para alvos: os homens na trincheira esperam, acendem um cigarro e na escuridão surge um ponto de luz - estranho farol - que aponta para onde lançar fogo e o fogo é lançado. o companheiro que fumava morre e o soldado sai da trincheira sob o tiroteio. não há recuo, não há regresso. resta aquele caminho impelido para a frente, com a espingarda empunhada. avança a peito aberto, dispara, atira, avança. depois chega a um buraco do lado de lá, ele tem a espingarda na mão e outro está ferido, deitado por terra. podem se ver, dois homens, com as suas caras sujas, com o cansaço o tomar-lhes os corpos e o absurdo a cair sobre a terra. estão lado a lado, com os seus nomes e línguas para cada um incompreensíveis. no escuro devastado por explosões, os dois homens partilham em silêncio um cigarro. a guerra está do lado de fora, e o mundo, maior que os dois lados da guerra, tem o tamanho daquele buraco.


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