«“Estamos a tentar dar a melhor prenda possível às pessoas que a saibam receber”
Óscar Faria
No Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, foi ontem inaugurada a exposição “Fora!”, que reúne trabalhos de um escultor, Rui Chafes (n. 1966), e de um cineasta, Pedro Costa (n. 1959). A conversa, registada durante o processo de montagem, é atravessada por questões relacionadas quer com os conteúdos da mostra, co-comissariada pelo director da instituição, João Fernandes e pela francesa Catherine David, responsável pela Documenta X (1997, Kassel, Alemanha), quer por algumas preocupações político-sociais dos artistas. Uma prenda para os espectadores, no dia em que o realizador recomeçou a fumar.
MIL FOLHAS – Robert Bresson nas suas “Notas Sobre o Cinematógrafo” afirma ser impossível “exprimir fortemente alguma coisa pelos meios conjugados de duas artes”. Sendo cada um proveniente de uma área diferente, a escultura e o cinema, até que ponto é compatível fazer uma exposição a dois?
RUI CHAFES – Acho que é incompatível, de facto, e a prova está nisto. O que é interessante não é saber se é compatível ou incompatível, nem sequer interessante saber se é possível. O meu ponto de partida é tentar chegar a algum ponto, não sabemos qual, partindo do princípio da impossibilidade, da incompatibilidade. Com essa consciência, a gente há-de chegar a algum ponto, não no sentido da ilusão que seja possível, mas sim da certeza que é impossível.
PEDRO COSTA – O que sinto é que eu trabalho e o Rui trabalha, já não é mau.
P. – Como é que vos foi apresentada a ideia desta exposição?
R. C. – A ideia foi uma proposta concreta do João Fernandes [director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves], que depois ficou cheio de medo do resultado. Foi uma proposta, penso, para testar como é que dois trabalhos com contornos tão definidos podiam, ou não, entrar em conflito. Aceitei pela admiração que tenho pelo trabalho do Pedro e pela crença de que era possível chegar a algum ponto, a alguma temperatura, que é o que me interessa conseguir.
P.C. – Agora o problema não é nosso. É apagar um bocado esta história de alguma provocação que reste. Se calhar, o princípio de ideia, isso não me interessa, mas se calhar existe, porque somos da mesma geração, de áreas diferentes, temos estatutos parecidos nas artes respectivas. Depois há uma ideia; agora é preciso que isso seja abolido com o que a gente fez.
R. C. – Seja negado com o que nós fizemos
P. C. – Não é abolido, pois, nem sequer é negado. O que a gente faz é o que gente faz. Eu, pelo menos, trabalho todos os dias e o Rui também, acho. Não ia trabalhar com alguém que não trabalhasse, portanto.
Depois a Catherine [David] entrou no barco, uma pessoa que nos conhecia aos dois. Faz um bocado a ponte.
P. – A partir da ideia inicial de juntar, os comissários tiveram em conta a vossa ideia de desfazer...
P. C. – Desfazer também não é um propósito, pelo menos falo por mim: trabalho, dia a dia, com imagens e sons. Não trabalho para desfazer nada, não trabalho nem para destruir nem para construir nada; nós juntámo-nos acho que com uma ideia, agora é preciso que aquilo se transforme noutra coisa que não só uma ideia.
R. C. – É aquilo que está a acontecer, agora, com a montagem.
P. – A ideia inicial veio de um terceiro exterior a vocês, disseram que sim para ver o que dava...
P. C. – Trabalho mais lá fora do que cá em coisas de museus, já fiz duas coisas com a Catherine, vou fazer outra em Viena. Se fizer uma coisa aqui, como é o caso, queria tentar apagar-me um bocadinho como autor. O Museu de Serralves é um sítio onde passa muita gente; pelo menos vou tentar que cheguem lá uns murmúrios, que com o Rui podem ter mais força ainda. Se calhar, o que faria lá, sozinho, podia ser mais uma espécie: “ Eis a instalação daquele que faz uns filmes”; assim, não sei se sobe, se desce, de nível, de tom. Pelo menos há um contrapeso, uma contradição, há um percurso, há salas, nem todas são minhas; há quase nada, há muita coisa, há muito som. Há ferro. Como Serralves é muita gente, se calhar mais do que [a que vai a] um cinema qualquer no Porto ou em Lisboa, acho que vale a pena, para mim.
R. C. – É curioso ver que, a maior parte das vezes, uma instituição, quando pensa ou programa uma obra ou um artista, sabe mais ou menos aquilo que vai ter, então se são artistas com uma carreira muito sólida... em termos de anos de prática.
P. C. – Só por causa dessa palavra [carreira] és testemunha e o PÚBLICO também...
R. C. – Vais fumar um cigarro...
P. C. – Não é um cigarro, é uma cigarrilha.
R. C. – O convite do João foi completamente laboratorial, ele não sabia, nem nós, até ao último momento, o que é que ia acontecer.
P. C. – Suspeitávamos...
R. C. – Suspeitávamos, mas, repara, partes de um ponto e, neste momento, já estás noutro, porque a força dos objectos, em si, é, às vezes, maior do que nós pensamos. No caso de um trabalho a dois, que é, e não é, um trabalho de equipa, são surpreendentes os conflitos e as coincidências que vão dos objectos. De repente, chegas à sala “x” e percebes que a tua ideia não é assim. Isto é um teste para todos e vai ser uma dificuldade para o público.
P. C. – Eu apelo ao público mais jovem. É sempre difícil uma coisa deste género, o cinema, como é que entra no museu? Normalmente monto o filme, misturo o filme e o som. Depois, há as bobinas que vão para os cinemas. Digo vagamente, o formato é tal. Aqui não, aqui há outras coisas. Até ao último segundo há uma espécie de montagem doutro género, que não estou habituado a fazer. Há cineastas hábeis nisso, o Godard, por exemplo, outros muito resistentes a isso, como o Straub; é um trabalho que não conheço e que sou obrigado a fazer, resisto, combato, tenho dúvidas, provoco... mas é muito engraçado e faz-me avançar, também. Se calhar também trago coisas com que o Rui se inquieta. Há uma espécie, como ele diz, de temperaturas, de arrefecimentos, de aquecimentos, de sujidades, de coisas que eu trago... acho sempre que um escultor, um pintor, são pesos pesados, assim como no boxe; são pessoas com grandes convicções. O cinema é sempre uma coisa de dúvidas, não há assim grandes artes ali, nunca houve... Funciona doutra maneira, mesmo a montagem, que é uma coisa muito séria... porque a rodagem de filmes, em geral, gerem muitas coisas diferentes, muito dinheiro, muitos temperamentos, muitas raparigas, rapazes, comidas... Não é que eu trabalhe assim, já consegui outras coisas.
R. C. – È importante frisar que a metodologia tem sido sempre, desde que começamos a preparar esta exposição, há dois anos, dizer não. É a metodologia do não. Em vez de dizer sim é dizer não, ou seja, instauras sempre a dúvida em cada passo, em cada decisão, em cada movimento de um ponto ao outro; é sempre o método do não. A lista de nãos é maior do que a lista de sins.
P. C. – Acho que, e sem grandes pretensões, que é coisa que não aguento... acho que há uma luz qualquer que pode iluminar as coisas do Rui doutra maneira.... Não sei como é que hei-de dizer... vou arriscar, de um certo social... estou a dizer coisas chatas, mas por outro lado ele também está a ser puxado e tem que ser puxado para este lado, porque o trabalho é o mesmo. Acho que há algumas coisas com som e imagem que o ajudam a ele e ele com o peso e a leveza, que são as coisas que ele trabalha... são ofertas, são prendas; acho que estamos a tentar dar a melhor prenda possível a pessoas que a saibam receber. Tento sempre dar o melhor presente às pessoas; o melhor, o mais bem feito que possa, agora são... É um bocadinho assustador o que se passa naquelas salas: isso é para mim, porque, se calhar, estou menos habituado ao museu, estou menos habituado ao público dos museus...
R. C. – Tu estás habituado à intimidade. Tu constróis durante anos um trabalho de intimidade...
P. C. – Trabalho o melhor que posso, com um esforço tremendo, com mãos, coração, cabeça e estômago, mas o que quero é continuar a trabalhar, arranjar maneira de, todos os dias, sair de cada às seis, sete, oito da manhã, ir para lá fazer... Acho que o Rui é a mesma coisa. Isto não engana, a gente não está aqui para enganar ninguém.
P. – Maurice Blanchot falava da “comunidade dos amantes” como um objectivo a atingir. O que se pressente é que a possibilidade de realizar esse desejo é cada vez menor, a realidade está cada vez mais asfixiada...
P. C. – Não sei... Na minha vida activa ou não activa, mesmo a dormir, tenho convivido sempre com coisas... por exemplo, os Straub ou o Hölderlin ou o Godard ou os Clash ou os Sex Pistols, tenho vivido sempre, sempre, sempre, numa espécie de... como é que hei de dizer...
R. C. – Nunca estás sozinho...
P. – Tudo está no sangue; essas pessoas, amigas reais ou modelos de vida, estão dentro de nós, formam uma comunidade interior que se transporta para todo o lado e se vai integrando noutras comunidades...
P. C. – Há coisas que valem, há valor nas coisas. Por exemplo, num filme há que saber o que é que aquilo vale, é a primeira pergunta. O que é que vale um filme? “Viste o último não sei quê?” “Iá, iá”. A crítica do PÚBLICO hoje resume-se um bocado ao “iá”; depois não há um valor nas coisas, parece que somos uns velhadas.
P . – Os Straub, Godard, The Clash formam uma determinada comunidade; as pessoas que habitam as imagens trazidas para dentro do museu constituem uma outra?
R. C. – Andamos muito perto e andamos a arrancar coisas ao mundo; aliás o método do Pedro e o meu é arrancar coisas ao mundo, arrancá-las e trabalhá-las. Depois também há maneiras de fazer isso; nalgumas coisas são métodos próximos; por exemplo, a gordura e a ferrugem: há muitos filmes gordurosos, filmes que escorrem gordura pelos cantos do ecrã. Detesto isso, os filmes do Pedro não têm gordura, não são filmes pegajosos, não têm sentimentalismo, não têm emoções baratas...
P. – São filmes enxutos...
R. C. – Não têm o ranço nem a gordura das emoções fáceis. As minhas esculturas não têm ferrugem, não gosto ferrugem, porque quando a ferrugem aparece numa obra é como a gordura no cinema, é já para convocar o sentimentalismo, para provocar a memória sentimental e emocional do tempo que já passou. A ferrugem quando é usada intencionalmente é uma atitude sentimental, emocional, para amolecer o coração do espectador. Há aspectos técnicos na maneira de fazer cinema do Pedro, ou na minha maneira de fazer a escultura que nos aproximam, ou seja, a repelência por alguns ingredientes doutros filmes ou doutras esculturas. Essa repelência, esse não, aproxima-nos. Isso, em si, cria uma comunidade ínfima, minúscula, uma comunidade sem importância nenhuma, a nossa comunidade
P. – O que se observa no museu, no caso das imagens, são planos fixos. Essa fixidez pode ser associada às esculturas, que, por seu lado também, em temos perceptivos, têm movimento. Este permanente reenvio entre esculturas e imagens é uma leitura que vos interessa?
R. C. – Gosto do movimento das esculturas. Tento, que a minha escultura traga a cidade inteira para dentro do museu ou do espaço onde é mostrada. Atrás da escultura há uma cidade inteira, com prédios, ruas, árvores, casas, túneis de metro... A escultura é apenas uma pequena hipótese; não acredito em objectos, não é um resultado final, é apenas um modo do pensamento.
P. C. – Essa história dos planos fixos ou da fixidez é como a história dos acordes no punk.
P. – O que se observa são planos fixos e a acção que decorre no interior desses planos. A câmara está imóvel...
P. C. – A câmara não anda, o que anda é a cabeça das pessoas. Só acredito no ser humano enquanto ele faz coisas, o sapateiro que a gente conhece, em Benfica. A gente gosta do sr. João, porque a cabeça dele se mexe, não se vai mexer mais porque vou lá andar a filmar a orelha, a cabeça ou a nuca, por trás, o sovaco... É preciso também não assustar as pessoas com essa história da fixidez. No cinema não é porque se mexe a câmara que a coisa se dá mais depressa.
P. – O caso do plano fixo de oito horas que lembra, por associação, alguns dos filmes de Andy Warhol...
P. C. – Não é um plano fixo, é um olhar.
P. – Qual é então a diferença entre Andy Warhol, que deixava a câmara...
P. C. – Para mim, nem o Warhol, nem o John Ford, nem o Straub, nem, às vezes, o Godard, fazem, planos fixos; o cinema não é uma linguagem. É uma língua, a gente fala a mesma língua, ou então não fala. Quero que venham pessoas para o nosso lado. É tão simples como isso; é outra vez uma coisa de oferenda. Só vejo uma maneira, nesta coisa horrível que a gente tem aqui à volta, que não tem nada a ver com a provocação, que é ser o mais concentrado, o mais delirante e lúcido, ao mesmo tempo, na maneira de olhar; porque não estou disposto a fazer, mais uma vez a tanga do costume. Não estou, não consigo. O Rui, acho que também não consegue; não é sequer não conseguimos: não temos estômago para isso. Se fizer um movimento de câmara, como faço às vezes, tem de haver uma razão, tem de ser diferente de tudo o resto que já foi feito, sempre, e estou a incluir o John Ford, o Ozu, todos. Se não conseguir vou para casa e vou dar com um pau na tola e tenho que fazer melhor para a próxima. Tem de haver qualquer coisa que nunca foi feita. Isto é um bocado pretensioso, mas... nunca foi feita, para mim.
P. – Um plano de oito horas nunca terá sido feito?
P. C. – Sim, é um olhar sobre uma coisa e ali propõe-se... Aquilo ali são várias salas, o museu; cada uma tem um sentimento, ou uma temperatura, ou uma cor. Vamos ver se uma contradiz a outra, se há uma narrativa, se há uma psicologia, se há uma economia, se há uma política... Era bonito que houvesse tudo, que fosse tudo confluente, ao mesmo tempo que contraditório, porque há palavras nas minhas imagens – realmente, há português, há crioulo –, há silêncios, há uma música, há um ruído, há ferro, há luz... há passos, há um caminho que as pessoas têm de fazer. Há aqui uma espécie de contradição. Fixidez? Não, acho que as pessoas vão ter que andar. No fundo, não há ali um plano fixo, a pessoa mexe-se em frente ao ecrã; mesmo no cinema a pessoa mexe-se, a cabeça da pessoa não pára. Ninguém está parado em frente a uma coisa que não se mexe. Ninguém está parado em frente a uma escultura do Rui, ou então, pronto, vamos para casa. Agora, falar-me em plano fixo, panorâmica, travelling, formalismo, construtivismo, é pouco interessante, preferia falar de uma maneira de fazer com que as pessoas olhem para algumas coisas, que nos interessam a nós, de uma certa maneira.
P. – É muito mais difícil chegar ao social e ao político a partir do olhar para uma escultura de Rui Chafes...
P. C. – O que quero é fazer com que duas coisas tenham um só valor. É uma espécie de sonho mútuo. As pessoas vão viver coisas delas... e que seja sensual; a gente não quer embrutecer mais as pessoas, apesar de tudo há uma sensualidade. Não tem a ver com planos fixos, com formalismos, com coisas desse género. Fiz um filme sobre a pior coisa que se pode imaginar, que é o Jean Marie-Straub e a Danièle Huillet. Custa muito dar valor a uma coisa que é gigantesca sendo atacado sem querer. Os Straubs são do mesmo valor que um castanheiro, que um belo amanhecer em Sintra, que molhar o pé num riacho, é a mesma sensação; agora trabalhar isto custa muito, custou-me muito... isto não tem a ver com arte, nem com vida. Devemos dar às pessoas o prazer de viver e dizer isto assim não dá. Se admiro alguém é porque ela diz: há qualquer coisa aqui que não dá, eu proponho outra. Essa coisa é tentar mudar qualquer coisa, já não tem a ver com a linguagem, é uma questão de sensibilidade, é não tentar embrutecer mais as pessoas ainda. O nosso esforço é esse. Mesmo que em casa eu seja sozinho, monstruoso, solitário. Só quero que me julguem pelo que vêem em imagem e som.
P. – O que vemos é a tentativa de dar a voz ao outro, a um terceiro que não tem voz social. Esse é um gesto político. Há um autor norte-americano, Craig Owens, que afirma não termos o direito de falar pelo outro [“’The Indignity of Speaking for Others’: An imaginary Interview’, in “Beyond Recognition” (University of California Press, 1992]... Até que ponto, seja no jornalismo, seja no cinema, seja na arte, temos o direito de falar pelo outro....
P. C. – Tu estás a puxar... tu vais-te queimar, isto era preciso ser escrito, tu vais-te queimar...
P. – Queimo-me...
P. C. – Porque é preciso saber donde é que a gente fala... tu não podes atirar para a mesa coisas deste género... Então aqui vamos falar de coisas sérias.
P. – Falemos...
P. C. – A sério...
P. – A sério...
P. C. – Já falei muito disto com os críticos esses decepcionam-me mesmo. Hoje já ouvi a palavra decepcionar... Não trabalho para isto; trabalho para uma espécie de responsabilização total. Não ando aqui a brincar ao cinema... Se já viste filmes que fiz...
P. – Vi.
P. C. – Só posso filmar aquilo que existe, não vou inventar um mundo que não existe. Não vou, não posso, não quero, não sei. O mundo que vejo está podre, é merdoso, está mal fabricado. Há pessoas que têm para mim um valor monumental, maior que outras, que vivem muito mal. Acho que as pessoas deviam estar mais ao nível umas das outras. Há pessoas que deviam estar presas. Por exemplo, Emídio Rangel, devia estar preso. Foram pessoas que destruíram Portugal, como o Salazar. Tive muito medo quando era pequeno; tive pessoas de família que morreram e não só porque estiveram na prisão, morreram na cabeça. Coisas dessas é preciso dizer. Não estamos aqui numa urgência, não é uma urgência. Estamos sempre. O sangue circula, a gente tem de acreditar que ele corre. Aquela frase bonita do Cézanne: “Acreditar na perpetuidade colorida do sangue”. Os rios correm, devem correr, quase não correm, e não é só pelas secas. É porque há uns cabrões numas fábricas... há gajos super ricos que são da treta, que são uns brutos do carago... é preciso dizer essas merdas e os críticos não fazem o seu trabalho. O crítico é uma palavra bonita, um gajo que pensa e ajuda a pensar e faz um texto ainda mais bonito que a mais bonita escultura do Rui. É preciso arriscar um bocadinho.
P. – O Hans-Jürgen Syberberg, no documentário The Ister afirma mesmo que os rios já não têm poesia...
P. C. – O meu amigo Jean Marie-Straub diz uma coisa lindíssima: cada filme que se faz, cada obra de arte que se faz, deve ter sempre uma coisa presente, é que hoje em dia já não se pode tomar banho num rio. Não se vai para a Escola de Cinema aprender isto. Fui para a Escola de Cinema para aprender umas coisas de química, para ver filmes, porque não tinha hipótese; O João Bénard da Costa mostrou-me muitos filmes, o João Miguel Fernandes Jorge mostrou-me muitos filmes, alguns professores assim. Depois cada um tem de fazer o seu trabalho.
R. C. – Há aqui um atordoamento. Se falamos em oferecer coisas às pessoas, é um bocado diferente da estética “vídeo-clip” com que as pessoas gostam de ser bombardeadas desde o pequeno-almoço até ao jantar. Aquilo que gostamos de chamar plano fixo, se calhar não é um plano, é um olhar, como lhe gosta da chamar o Pedro, é uma chamada de atenção para uma coisa muito diferente do embrutecimento colorido, “flashante” e rapidíssimo da estética “vídeo-clip” em que estamos a ser envolvidos pela televisão pelas notícias, por tudo. As notícias passam em rodapé em baixo e alguém fala por trás; há uma desatenção enorme e as pessoas gostam.
P. C. – Não acho que as pessoas gostam. As pessoas não sabem do que é que gostam. Há muitas pessoas que gostam seja do que for. As pessoas não sabem, as pessoas levam com o que Rangel lá põe, ou punha, o dono da outra lá põe, o patrão da Lusomundo lá põe. Talvez o mundo da arte escape um bocadinho, não sei. Acho que quase tudo participa do mesmo logro. O papel do artista, embora não goste da palavra, é outro. Sempre foi, sempre será, não há maneira de evitar a questão.
P. – Gostava também que o Rui falasse também acerca da possibilidade de se falar pelo outro através de um objecto escultórico...
P. C. – Acho que a gente não está a falar por mais ninguém...
R. C. – Nunca falo pelo outro. Nunca falo para um outro. O que vejo em cada dedada de uma escultura de Giacometti são milhões de pessoas, milhões de vozes. Senão aquilo não me interessa. Não me interessa o ego de Giacometti, nem me interessa o ego de nenhum artista no mundo. Interessa-me o que o Giacometti conseguiu só por ter amolgando um pouco de barro: fazer ouvir milhões de pessoas. Aliás, o Genet fala disso, das vozes... Isso interessa-me, essa imersão em cada obra de arte. È por isso é que há algumas obras de arte que me interessam mais do que outras. Interessam-me as obras de arte nas quais eu oiço a vibração, não é do outro, é de milhares de outros. Não me interessam egos, não me interessam vaidades, não me interessam indivíduos. Nesse sentido, interessa-me saber que o indivíduo tem de se defender do mundo e ao mesmo tempo tem que se abrir ao mundo. O sim e o não estão juntos, não estão separados; a morte e a vida não estão separadas, estão juntas. Interessam-me objectos que transportam em si um mundo inteiro, milhares de pessoas. Isso não é dar a voz ao outro, é dar a voz a milhares de outros.
P. – No caso dos filmes apresentados em Serralves, vemos o outro a falar e a tocar-nos...
R. C. – Mas não há outro ali...
P. – É o outro que não sou eu, é o outro que vive com dificuldades, é o outro que já levou mais de vinte anestesias numa perna, é o outro que consome heroína, o outro que sofre...
P. C. – Não sei onde é que andas...
R. C. – Acho que somos nós todos que temos a perna partida e consumimos heroína; não vejo ali nenhum outro. Todos consumimos heroína, todos temos a perna partida... Aquilo está muito bem feito, já vi com muito cuidado, de facto, parece que há ali um outro. E o Pedro já faz aquilo há muitos anos, de facto não oiço ali a voz de um outro; oiço mais a nossa própria voz, ali. Quando digo a nossa falo dos espectadores.
P. – Há muitos anos, no Porto, numa conferência, Jacques Derrida afirmou a necessidade de se receber incondicionalmente o outro, mesmo correndo o risco de sermos expulsos da nossa própria casa...
P. C. – Vivemos num mundo em que os maus e a crítica dos maus é a mesma coisa. O Valentim Loureiro e o Prado Coelho, para mim é a mesma coisa, participam no mesmo embuste. É uma questão de sensibilidade, não é uma questão de cultura. Se a gente fala do Hölderlin não é cultural. Porque há valores nas coisas. Há pessoas que trabalharam para algumas coisas. Não trabalharam para elas. Acredito sinceramente nesse valor. Todas as pessoas que eu mais prezo são pessoas que trabalharam muito, são anónimos, é uma massa, são 90% deste muito, deste planeta. É a África toda, é a Ásia toda, falo dessas pessoas. Falar delas pessoas é falar deste planeta quase inteiro.
R. C. – Há uma grande diferença entre uma pessoa que diz, nunca te dês com um loser, um falhado, porque senão vais estar em maus lençóis, ou uma pessoa como o Beckett, que dizia que só lhe interessavam as histórias de fracasso. Há aqui uma clivagem enorme. O que é que está por detrás de uma história de um fracassado? Se calhar, os bandidos não são aqueles que nós pensamos que o são. »
[Esta é a versão completa da entrevista feita por Óscar Faria para o Mil Folhas do Público e que estará apenas disponível na versão online deste jornal]