Ao pé da letra #219 (António Guerreiro): Precioso, isto é, sem preço
Nos últimos tempos, temos sido informados do preço de tudo: quanto custa um aluno do ensino básico, do secundário, da universidade; quanto custa oferecer na escola X a disciplina de opção Y; quanto custa um doente que depende da hemodiálise; quanto custam os funerais daqueles que não deixaram dinheiro — nem família — para o seu próprio funeral. Esta ostentação do preço é um exercício de má-fé com consequências perigosas, na medida em que quebra uma regra de universalidade e de anonimato e instaura uma espécie de guerra civil que já começa a emergir num confronto intergeracional. Um aluno de qualquer nível do ensino sempre teve um preço, o que é novo é o facto de essa quantificação ser ostentada publicamente, se ter tornado objecto de um cálculo e instrumento ideológico. Devemos ver aqui uma regressão que quebra a lógica da reciprocidade e do dom que funda a sociedade. Afixar um preço a tudo significa considerar intolerável o que faz parte de uma economia não produtiva, da perda sem contrapartida e do gasto gratuito: aquilo a que Bataille chamou dépense, inspirado no princípio do potlach, de Marcel Mauss. | A teoria do dom, de Mauss, mostra bem como não é possível uma sociedade sem o elemento heterogéneo, o gasto improdutivo, que transgride a homogeneidade da lógica da produção. A heterogeneidade da dépense é a festa, a arte, o sexo, as atividades rituais. Em suma, tudo aquilo que implica o gasto que é um fim em si. Ora, no domínio político, o discurso que estamos mergulhados é o da exclusão pura e simples de todo o elemento heterogéneo. Pode a política suprimi-lo? Não. E é por isso que, mais inteligente do que todos os políticos europeus, Obama terminou o seu discurso de vitória dizendo que “o melhor está para vir”. Não é uma promessa eleitoral: é uma alusão à festa, ao potlach, que constitui a própria condição de possibilidade da política. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.11.2012. |