Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #219 (António Guerreiro): Precioso, isto é, sem preço

Nos últimos tempos, temos sido informados do preço de tudo: quanto custa um aluno do ensino básico, do secundário, da universidade; quanto custa oferecer na escola X a disciplina de opção Y; quanto custa um doente que depende da hemodiálise; quanto custam os funerais daqueles que não deixaram dinheiro — nem família — para o seu próprio funeral. Esta ostentação do preço é um exercício de má-fé com consequências perigosas, na medida em que quebra uma regra de universalidade e de anonimato e instaura uma espécie de guerra civil que já começa a emergir num confronto intergeracional. Um aluno de qualquer nível do ensino sempre teve um preço, o que é novo é o facto de essa quantificação ser ostentada publicamente, se ter tornado objecto de um cálculo e instrumento ideológico. Devemos ver aqui uma regressão que quebra a lógica da reciprocidade e do dom que funda a sociedade. Afixar um preço a tudo significa considerar intolerável o que faz parte de uma economia não produtiva, da perda sem contrapartida e do gasto gratuito: aquilo a que Bataille chamou dépense, inspirado no princípio do potlach, de Marcel Mauss.  

A teoria do dom, de Mauss, mostra bem como não é possível uma sociedade sem o elemento heterogéneo, o gasto improdutivo, que transgride a homogeneidade da lógica da produção. A heterogeneidade da dépense é a festa, a arte, o sexo, as atividades rituais. Em suma, tudo aquilo que implica o gasto que é um fim em si. Ora, no domínio político, o discurso que estamos mergulhados é o da exclusão pura e simples de todo o elemento heterogéneo. Pode a política suprimi-lo? Não. E é por isso que, mais inteligente do que todos os políticos europeus, Obama terminou o seu discurso de vitória dizendo que “o melhor está para vir”. Não é uma promessa eleitoral: é uma alusão à festa, ao potlach, que constitui a própria condição de possibilidade da política.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.11.2012.

Ao pé da letra #218 (António Guerreiro): Os jovens e os novíssimos

Quando hoje nos confrontamos com “Rumor Branco”, de Almeida Faria, publicado em 1962, tinha o autor 19 anos, temos de pensar que se trata de um livro de juventude; e que isso não é apenas uma circunstância da identidade civil do escritor mas algo que marca o romance e a que poderíamos chamar, com palavras alheias, “metafísica da juventude”. Grandes obras literárias, artísticas e filosóficas do início do século XX muito devem a esta metafísica da juventude. No nosso tempo, a juventude tornou-se um padrão comportamental e de consumo, mas desapareceu como categoria do espírito: não tem pretensões históricas (não interrompe nem desvia o curso do mundo) nem metafísicas (tornou-se mero objeto sociológico). No lugar da juventude está agora a novidade; em lugar dos escritores impregnados dessa força utópica, com um forte alcance político, que é a metafísica da juventude, temos agora “os novos”, que na versão superlativa são “os novíssimos”.  

Ainda há poucos dias ficámos a saber que o grupo editorial Leya tinha enviado ao Brasil uma delegação de “novíssimos autores”, com o apoio do Instituto Camões, que, pelos vistos, se sentiu mobilizado por uma operação comercial. A reportagem que Alexandra Lucas Coelho faz do acontecimento, no “Público”, é muito cruel: a imagem que dá dos “novíssimos” é a de que estão num tour de tagarelice pelo Brasil. “Novíssimos”, não emerge neles uma réstia de juventude, apenas de infantilidade. Lendo a reportagem, parece que regressaram à fase do chichi e do cocó. A ideia de uma metafísica da juventude está ligada a uma geração trágica delapidada pela guerra: os “novíssimos”, sem juventude nem metafísica, são também soldados de uma guerra em curso, sem grandeza nem tragédia, mobilizados para a batalha da novidade, com a linguagem que os velhos lhes forneceram, sem nenhuma conceção da História.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.11.2012.

Ao pé da letra #217 (António Guerreiro): O jornalismo e o homem médio

A ameaça de extinção que paira sobre os jornais convida-nos a um olhar retrospetivo, a recordar que o jornalismo e a universidade foram os dois grandes instrumentos da racionalidade iluminista, do seu projeto de socialização do saber e da cultura, criando uma sociedade para a cultura e desenvolvendo uma cultura para a sociedade. A crise dos jornais é apenas um dos aspetos do fim desse projeto, declarado com grande estrondo no final dos anos 70. No entanto, nunca faltaram membros destacados das elites para lançarem sobre os jornais a sua desconfiança ou até o seu radical desprezo. Se Hegel falava da leitura do jornal como a oração matinal do homem moderno, Balzac achava que, “se o jornalismo não existisse, seria sobretudo necessário não inventá-lo”. A crítica ao jornalismo teve quase sempre origem num pensamento reacionário (seja ele o de Balzac, o de Kierkegaard ou, numa dimensão militante, o de Karl Kraus). Mas ele também se tornou num alvo fácil quando passou a alienar a sua matriz crítica, quando a oração matinal foi substituída pelo entretenimento e quando passou a servir exclusivamente uma figura que ele próprio construiu: o homem médio.  

Em “La Ricotta”, de Pasolini, há uma sequência em que Orson Welles, sentado na cadeira de realizador, é entrevistado por um jornalista e acaba por ler um poema ao seu entrevistador. No final da leitura, pergunta ao jornalista: “Entendeu alguma coisa?” O jornalista começa a fazer uma paráfrase idiota e é interrompido: “Você não entendeu nada porque é um homem médio. Um homem médio é um monstro, um perigoso delinquente.” Estas palavras têm de ser compreendidas à luz da visão apocalíptica de Pasolini, da sua ideia da classe média como o fim do mundo, mas é certo que, ao estabelecerem o “homem médio” como o seu padrão, os jornais se dissolveram na mediania que não precisa deles para nada e os aniquila.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.11.2012.

Ao pé da letra #216 (António Guerreiro): Mais tempo, menos história

Devemos olhar com muita impaciência e pouca tolerância o modo como os políticos procuram legitimar a sua ação e justificar os seus erros regressando sempre ao passado imediato e aos seus antecessores. Não só porque há sempre aí uma razão fraudulenta que consiste em selecionar ad hoc a história que lhes interessa e nos limites cronológicos que servem para a justificação, mas sobretudo porque isso faz dos políticos profetas virados para o passado, incapazes de verdadeiramente apreender o seu tempo e de ter a coragem e a sabedoria de serem contemporâneos. Nesta errância que os leva a sacar do passado recente como quem saca da pistola, há um fator de esterilização do discurso e de impotência da ação. Esse impulso, que já há muito tempo ultrapassou os limites do razoável e arrastou o discurso político para as regiões ínferas do mesquinho (aí, onde o pântano cresce), é a manifestação dramática — às vezes, de um dramma giocoso — de que os políticos que assim agem (e não é fácil encontrar exceções) não estão à altura da exigência mais própria e mais urgente de toda a política: a de saber manter o olhar fixo no seu tempo, não para o apreender nos seus aspetos evidentes, luminosos, mas para perceber o que nele há de escuro.  

Apreender a ocasião contida no tempo, aquilo a que a sabedoria grega chamava o kairos (o tempo de agora e não o tempo de então), antes que ela seja mais uma vez traída por saltos no tempo (de pulgas e não de tigres), é a única tarefa política digna desse nome, capaz de nos salvar de exercícios mesquinhos amplificados na forma do espetáculo. Em tempos, o artista americano Robert Rauschenberg, numa entrevista, reclamou para os artistas “mais tempo, menos história”. Devemos reatualizar esta reivindicação, trazê-la para o campo da política e saber ver em cada segundo que passa a força de uma presença — e não de uma história — inaudita: um tempo messiânico.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.11.2012.


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