Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #210 (António Guerreiro): A magia da comunicação

Desde há muito que a política é desencantada, mas a comunicação, essa, é mágica. É isto que temos de concluir do investimento comunicacional que os políticos assumiram como tarefa e a cujas falhas atribuem todos os desentendimentos e diferendos com os cidadãos. A comunicação não é propaganda (estamos longe desses tempos do totalitarismo moderno), mas pedagogia. A propaganda criava uma realidade, era o instrumento da política entendida como obra de arte total; a comunicação é o discurso do mestre dirigido a quem não acedeu ao estatuto de maioridade. Ostensivamente, e como se fosse algo cheio de qualidades, instalou-se a comunicação em vez do discurso político e a pedagogia em vez da discussão. O político comunicante e pedagogo tem uma convicção: a de que tem uma atividade pastoril que consiste em conduzir o rebanho por bons caminhos e todo o desvio se deve ao facto de não ter comunicado de maneira eficaz as instruções e os objetivos.  
E tem uma missão: impor as suas iluminações como saber único, virtuoso e indiscutível. Do ponto de vista desta racionalidade comunicativa, se os cidadãos reagem é porque não perceberam: porque a competência comunicativa foi escassa ou – hipótese sempre implícita – porque são genuinamente estúpidos. Esta crença sem limites na comunicação vê na linguagem um mero veículo em sentido único, nos cidadãos uma massa inerte e destituída de palavras próprias, eliminando assim toda a racionalidade política. Neste sentido, a comunicação é o ato pelo qual se opera uma espoliação do discurso político e se esvaziam os lugares onde ele era tradicionalmente produzido. Estes novos magos da comunicação vivem no mundo da transparência, da pedagogia dos mestres, do material didático de hipermercado. A regra que os determina pode ser enunciada desta maneira: quanto menos têm para dizer, mais têm para comunicar.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 22.9.2012.

 

Ao pé da letra #209 (António Guerreiro): A anatomia masculina do crime

Com uma cadência regular e nada lenta chega a notícia de que mais uma mulher foi morta por um homem: marido, namorado, companheiro, amante e demais espécies masculinas de grande vulnerabilidade passional. Alguns matam-se, depois de matarem, ou entregam-se à polícia. Raras vezes temos a notícia de que uma mulher matou um homem e, quando tal acontece, há geralmente uma longa história de maus tratos que se interpõe. Se toda a violência exercida pelos homens sobre as mulheres fosse castigada, o cárcere seria a morada permanente de uma parte considerável dos machos humanos. Ainda assim, à conta de outros crimes que não são tipificados como masculinos, as prisões estão cheias de homens – a população carceral feminina é uma pequeníssima minoria. Dizem-nos que as escolas são lugares de grande violência. Mas falta acrescentar: são sobretudo lugares de violência masculina, com uma incidência enorme de insucesso dos rapazes relativamente ao das raparigas. Mal ganharam liberdades e direitos, as mulheres encheram as universidades, tanto quanto os homens enchem as prisões e os lugares obscuros onde se chega sempre em queda.  
A dominação masculina, baseada em algo que se transmitiu como um ‘direito natural’, tem por sua conta uma história tão infame e criminosa que, comparados com ela, os grandes genocídios são notas de rodapé no livro negro dos terrores. E, no entanto, perante este irreparável, a ideia de uma “guerra dos sexos” nunca teve e continua a não ter outra conotação que não seja a que diz respeito à questão metafísica (mesmo muito metafísica) da diferença sexual. Outrora, a afirmação feminista foi muitas vezes acusada de decalcar a lógica da luta de classes e, por essa via, entrar no radicalismo. Mas se imaginássemos uma resposta do feminismo à altura da realidade com que ele se confrontou, teríamos de achar plausível a hipótese de vivermos numa guerra civil sem tréguas até ao dia do Juízo Final.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.9.2012.

Ao pé da letra #208 (António Guerreiro): Defender Rui Ramos contra os seus defensores

Esta croniqueta tem o propósito avantajado de defender o historiador Rui Ramos contra os seus defensores. Para refutar e defender-se de um crítico – Manuel Loff – mais exaltado do que a atitude científica recomenda, tem o próprio todos os meios – como se viu – e até espaço largo para repousar sobre a frágil argumentação esgrimida pelo adversário, que não parece ter ouvido o coro angélico a soprar-lhe ao ouvido uma antiga exortação revolucionária: “Manuel encore un effort...”. Mas para se defender dos seus defensores indignados que se puseram em fila e foram gritando, à vez, que era preciso banir o difamador e retirar ao aleivoso a coluna do jornal onde ele exerce os seus pérfidos ofícios – para se defender desta gente, dizíamos, que só tem para exibir a verdade enfática do gesto nas grandes circunstâncias da vida (a parte final da frase é de Baudelaire e não precisa de aspas) e é um estorvo na relação de um investigador com os seus pares, Rui Ramos ficou desarmado como um refém. 
Do discurso do seu crítico, ou detrator, para darmos um sentido mais puro às palavras da tribo (a parte final é de Mallarmé), podíamos ainda assim esperar, com uma boa vontade nascida do desejo, que ele seria um pretexto para inaugurar a nossa serôdia “querela dos historiadores”, sem Nolte nem Habermas, mas fazendo do nosso modesto “passado que não quer passar” um estimulante campo de batalha, como é toda a historiografia. Mas essa pequena frincha por onde podia ter entrado o debate foi imediatamente fechada pela dança pública da indignação, por um nauseabundo cortejo do desagravo que age com um pressuposto inaceitável e ofensivo: o de que os leitores, na sua ignorância, estão à mercê de um reclamado manipulador, cujas manobras de prestidigitador só eles – os espertos e iluminados – topam. E foi assim que ganho carácter de urgência a defesa de Rui Ramos contra os seus defensores.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.9.2012.

Ao pé da letra #207 (António Guerreiro): O espírito da classe média

A classe média, de que tanto se fala hoje, é uma categoria sociológica que já teve um nome muito mais carregado de significado político-cultural: pequena burguesia. A nomeação e caracterização da pequena burguesia foi uma tarefa a que se entregou com persistência a crítica da ideologia. Esta chegou ao seu fim precisamente quando a pequena burguesia, a sua bête noire, que Barthes disse ser “histórica e politicamente a chave do século XX”, se tornou universal, quase sem exterior porque nela se dissolveram as velhas classes. O triunfo planetário da classe média, que na verdade declina qualquer identidade social e só conhece o inautêntico e o impróprio, corresponde ao que noutro plano se chamou o fim da História – último ato da tragicomédia da História universal. Sob o nome de pequena burguesia, ela significava a intelectualização do kitsch, o filisteísmo cultural, um estado de espírito que julga tudo em termos de utilidade imediata e de valores materiais, o culto da individualidade e do hedonismo. 
O pequeno burguês não é necessariamente ignorante, mas a sua cultura procede pela homogeneização e anulação de tudo o que pode ameaçar a sua utopia concreta da mediocridade que se impôs, aliás, como estilo de vida a que todos aspiram. Assim, para ele, a literatura reduzir-se-á à cultura literária, na arte perseguirá sempre a cultura artística, e assim por diante: a cultura da cultura foi sempre, do ponto de vista intelectual, o seu único objetivo. Pasolini viu esta burguesia como responsável por uma destruição totalitária, como um agente do fim do mundo. Pensar, como é hoje frequente, que a classe média está a reduzir-se por via de um empobrecimento generalizado é desconhecer que ela é infinitamente dúctil, já que se trata de uma categoria do espírito, mais do que uma classe social: e é na condição de tal categoria que ela vive, sobrevive e se reproduz.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 1.9.2012.


Arquivo / Archive