Ao pé da letra #176 (António Guerreiro): Bouvard e Pécuchet
A mais cómica fotografia publicada na imprensa, em tempos recentes, é a da passagem de testemunho, de António Mega Ferreira para Vasco Graça Moura, à porta do Centro Cultural de Belém. A coreografia é elementar – o primeiro sai e o segundo entra – e admite imaginariamente a reversibilidade: o que entra podia estar no lugar do que sai e o que sai podia estar no lugar do que entra. Os dois estão ligados por uma função gramatical, a conjunção copulativa e, tal como Bouvard e Pécuchet. Podemos mesmo dizer que eles atualizam esse famoso par flaubertiano de copistas enciclopédicos que perseguem a totalidade do conhecimento e das artes, mas com suficiente sobriedade para não se prestarem a uma comédia do saber. Na hora de os classificar, um e outro angariam qualidades que, somadas nas suas diversas parcelas (e são tantas), resultam numa totalidade muito lisonjeira para ambos. Reconhecidos por igual na competência para governar a coisa cultural, qualidade rara em quem habita os empíreos das letras, das artes e da cultura, eles são dotados daquela inteligência que não pode ser olhada sem o polo oposto da “bêtise” (no sentido flaubertiano do termo, que não iremos atraiçoar com uma tradução). | E, no entanto, apesar de ambos serem sempre considerados os homens certos nos lugares certos, eles são projeções de algo errado que os persegue e ultrapassa: estão sempre lá, sempre eles, a transpor uma porta que se abre para os dois lados, a fazer a figura do mesmo, da existência irrevogável, do ser-assim de um estado de coisas que nos cerca de todos os lados. Eles são ur-fenómenos, fenómenos originários, morfologias goethianas, quase arquétipos, perante os quais não há história a desenvolver-se no horizonte. Este bloqueio de toda a possibilidade do novo e a submissão ao irreparável, o eterno retorno do mesmo, é a regra em que vivemos em todos os domínios. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.1.2012. |