Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #176 (António Guerreiro): Bouvard e Pécuchet

A mais cómica fotografia publicada na imprensa, em tempos recentes, é a da passagem de testemunho, de António Mega Ferreira para Vasco Graça Moura, à porta do Centro Cultural de Belém. A coreografia é elementar – o primeiro sai e o segundo entra – e admite imaginariamente a reversibilidade: o que entra podia estar no lugar do que sai e o que sai podia estar no lugar do que entra. Os dois estão ligados por uma função gramatical, a conjunção copulativa e, tal como Bouvard e Pécuchet. Podemos mesmo dizer que eles atualizam esse famoso par flaubertiano de copistas enciclopédicos que perseguem a totalidade do conhecimento e das artes, mas com suficiente sobriedade para não se prestarem a uma comédia do saber. Na hora de os classificar, um e outro angariam qualidades que, somadas nas suas diversas parcelas (e são tantas), resultam numa totalidade muito lisonjeira para ambos. Reconhecidos por igual na competência para governar a coisa cultural, qualidade rara em quem habita os empíreos das letras, das artes e da cultura, eles são dotados daquela inteligência que não pode ser olhada sem o polo oposto da “bêtise” (no sentido flaubertiano do termo, que não iremos atraiçoar com uma tradução).  
E, no entanto, apesar de ambos serem sempre considerados os homens certos nos lugares certos, eles são projeções de algo errado que os persegue e ultrapassa: estão sempre lá, sempre eles, a transpor uma porta que se abre para os dois lados, a fazer a figura do mesmo, da existência irrevogável, do ser-assim de um estado de coisas que nos cerca de todos os lados. Eles são ur-fenómenos, fenómenos originários, morfologias goethianas, quase arquétipos, perante os quais não há história a desenvolver-se no horizonte. Este bloqueio de toda a possibilidade do novo e a submissão ao irreparável, o eterno retorno do mesmo, é a regra em que vivemos em todos os domínios.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.1.2012.

 



Ao pé da letra #175 (António Guerreiro): O desconforto da burguesia

Assistiu-se no século XX, nos países ocidentais, à emergência de uma burguesia remunerada. É possível que no século XXI, a avaliar por alguns sinais que emergem com evidência, se assista ao seu declínio. Aquilo que no discurso político se chama “ataque à classe média” corresponde à instauração de uma nova ordem que até há pouco tempo não era previsível. A expansão e universalização da lei do mercado precisou também da generalização do que começa agora a ser visto como um sobressalário, até porque a paz social era garantida através da promessa aos trabalhadores da satisfação das suas necessidades, cada vez mais amplas, quer porque o horizonte se alargava quer porque foram sendo suscitadas à medida das exigências das exigências do sistema económico. Ora, neste momento, em que a lei do mercado se estendeu ao mundo inteiro, uma nova ordem dá os seus primeiros passos, com base na convicção pragmática de que a burguesia custa demasiado caro e “vivemos acima das nossas possibilidades”.  
Daí, a entrada em cena de uma nova regra da ação e do discurso políticos: a de que é necessário empobrecê-la, subtraí-la à sua “zona de conforto”. Mas, deste modo, vem à luz uma contradição fundamental: como é possível manter o desenvolvimento capitalista ao mesmo tempo que se dá o declínio desta burguesia maioritária? Uma questão afim é a de pensar criticamente o trabalho e dar conta das suas metamorfoses, quando é a privação do trabalho e a humilhação do desemprego que estão a fazer-nos regressar a modelos de dominação conhecidos de fases anteriores do capitalismo. Marx, que tinha enunciado como axioma da economia política que os coveiros da burguesia seriam também os coveiros do capitalismo, estava longe de prever o que já está a ser anunciado por alguns índices: que o próprio capitalismo será em breve o coveiro da burguesia.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.1.2012.

Ao pé da letra #174 (António Guerreiro): O CEO foi de baixa

Alguém que tentasse hoje examinar as mitologias quotidianas construídas pelos media, seguindo o exemplo de Barthes, haveria de se aplicar com tanta verve analítica na fábula para adultos do colapso do CEO do Lloyds Bank como Barthes se aplicou na análise da mitologia do escritor em férias. Por uma espécie de justiça imanente própria dos heróis, o nosso homem ‘fabuloso’, o protagonista de uma fábula, vive numa relação tão íntima e total com a sua missão – jamais poderemos reduzi-la a um trabalho – que contraiu a doença do sistema bancário onde está imerso: stresse ampliado por privação do sono. Moral da fábula: os mercados não dormem, mas um CEO precisa de dormir. Um super-homem que comprou dois bancos comerciais num fim de semana, enquanto o Lehman Brothers falia, que no primeiro semestre do ano passado pagou 60 mil milhões de libras ao Banco de Inglaterra, que geriu 12 bancos em três países, descobre-se subitamente humano e passa por uma “experiência de humildade”.  

Esta descoberta da condição humana é um topos obrigatório de toda a hagiografia, e em nada a fragilidade que ela implica tem um efeito de desmistificação. Pelo contrário, é aí que um CEO alia a sua ‘fabulosa’ – mítica – competência com a nobreza da sua humanidade e a finitude do seu corpo que também precisa de dormir. Em suma: aquilo que faz com que um herói ganhe espessura humana e seja selecionado pelo génio. E se há a musa dos poetas, há também a musa do CEO: a sua mulher. Mais do que uma figura de invocação, essa musa é o anjo da guarda, o espírito lúcido e benfazejo que não se deixa alienar por heroísmos, sejam eles vãos ou nobres, e leva o herói do nosso tempo até ao lugar onde começa o processo de reparação (como se diz também dos pecados), onde ele irá iniciar a sua “experiência de humildade”.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.1.2012.

 


Lugares de cinema: todos situados nas regiões baixas da cultura [...]. Esses lugares estão desertos, ou melhor, obstruídos por códigos tornados incompreensíveis, assombrados pelo cadáver daquele [espectador] para quem, um dia, tudo isso foi. Nostalgia? Não é certo, ainda que esse cadáver cheire.»

Ao pé da letra #173 (António Guerreiro): A engenhoca ortográfica

Regressemos ao Acordo Ortográfico, a convite de uma entrevista que um dos pais do monstro deu ao Diário de Notícias. O que diz o professor Malaca Casteleiro? Que o que muda é “a imagem gráfica da palavra” e só temos agora de “fazer um esforço de adaptação”. Esta conceção da ortografia como engenhoca gráfica baseia-se numa total desvalorização da gramma (a inscrição) em favor da phone (e daí o privilégio concedido à representação fonética), como se aquela fosse uma mera representação desta. A filogénese da escrita mostra que esta é autónoma do oral, o que levou Barthes a afirmar: “Tudo se passa como se a escrita já tivesse sido inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada.” Ora, este dado filogenético transpõe-se para o nível do indivíduo:: aprender a ler e escrever é entrar numa ordem ortográfica que transporta uma memória cultural e um imaginário que nos constituem, tal como a língua.  
É nesse sentido que a ortografia é sempre mais do que o design convencional das palavras: na ontogénese da consciência, há uma escrita que precede a fala (leia-se a crítica de Derrida a Saussure). E essa escrita acaba por se confundir, para cada uma de nós, com uma manifestação ortográfica, de um modo tão profundo como o sonho é uma espécie de texto que transcreve a imagem latente. É certo que a resistência a uma nova ortografia só pode vir de quem foi constituído pela ordem da ortografia anterior. Mas nem por isso ela pode ser vista com o simplismo do professor Casteleiro, que, com uma perna na Academia, outra na escola primária, e a cabeça numa órbita que não é a da Linguística, afirma: “Se pensarmos nas crianças que estão a aprender a escrever, para elas é muito mais fácil escrever sem as consoantes mudas.” Este álibi manhoso da literacia foi o mesmo que serviu para expulsar em larga escala os textos literários do ensino da língua.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 7.1.2012.

Ao pé da letra #172 (António Guerreiro): Tetas e divertimento

Se seguirmos a lição de Simmel, dando importância sociológica ao que ele chamava “manifestações de superfície”, a publicidade surge-nos com a eloquência patética de um sintoma: o da infantilização generalizada a que nos sujeita a sociedade capitalista na sua fase tardia. O consumidor construído pela publicidade é um indivíduo em estado de regressão a um narcisismo primário, em que triunfa o princípio do prazer. Dir-se-á que esse é desde sempre o princípio de toda a publicidade e nada de novo se vislumbra. Mas não é verdade: nunca a tendência regressiva e o convite à ausência de todos os limites atingiram o grau superlativo que têm hoje, acompanhados, aliás, por outras manifestações de superfície, como é o caso da proliferação da atividade artística. Como a entrada no mercado de trabalho é cada vez mais tardia ou está mesmo bloqueada, as atividades ‘diletantes’, que requerem o lazer, aumentam. Assim, a sociedade infantilizada pelos mecanismos da publicidade, do consumo e do discurso político que segue a lógica da despolitização é um imenso ateliê de ofícios artísticos. Em suma: um parque infantil.  
Tanta atividade artística faz-nos temer aquilo que Nietzsche exprimiu nestes termos: “Se acreditarmos que a cultura tem uma utilidade, acabamos por confundir o que é útil com a cultura” (um aviso aos que rejubilaram com a ‘descoberta’, feita por alguns economistas, de que a cultura é de um grande interesse económico) Está assim garantido o projeto do tittytainment – um mot-valise formado por tits, seios, no calão americano, e entertainment –, concebido em 1995 pelos poderosos deste mundo, reunidos em São Francisco, e destinado a apaziguar uma população de supranumerários, cada vez mais numerosa. Tetas e entretenimento, alimentação suficiente e divertimento: eis o que fazer a 80 por cento de população infantilizada e excedentária.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.12.2011.


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