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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #172 (António Guerreiro): Tetas e divertimento

Se seguirmos a lição de Simmel, dando importância sociológica ao que ele chamava “manifestações de superfície”, a publicidade surge-nos com a eloquência patética de um sintoma: o da infantilização generalizada a que nos sujeita a sociedade capitalista na sua fase tardia. O consumidor construído pela publicidade é um indivíduo em estado de regressão a um narcisismo primário, em que triunfa o princípio do prazer. Dir-se-á que esse é desde sempre o princípio de toda a publicidade e nada de novo se vislumbra. Mas não é verdade: nunca a tendência regressiva e o convite à ausência de todos os limites atingiram o grau superlativo que têm hoje, acompanhados, aliás, por outras manifestações de superfície, como é o caso da proliferação da atividade artística. Como a entrada no mercado de trabalho é cada vez mais tardia ou está mesmo bloqueada, as atividades ‘diletantes’, que requerem o lazer, aumentam. Assim, a sociedade infantilizada pelos mecanismos da publicidade, do consumo e do discurso político que segue a lógica da despolitização é um imenso ateliê de ofícios artísticos. Em suma: um parque infantil.  
Tanta atividade artística faz-nos temer aquilo que Nietzsche exprimiu nestes termos: “Se acreditarmos que a cultura tem uma utilidade, acabamos por confundir o que é útil com a cultura” (um aviso aos que rejubilaram com a ‘descoberta’, feita por alguns economistas, de que a cultura é de um grande interesse económico) Está assim garantido o projeto do tittytainment – um mot-valise formado por tits, seios, no calão americano, e entertainment –, concebido em 1995 pelos poderosos deste mundo, reunidos em São Francisco, e destinado a apaziguar uma população de supranumerários, cada vez mais numerosa. Tetas e entretenimento, alimentação suficiente e divertimento: eis o que fazer a 80 por cento de população infantilizada e excedentária.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.12.2011.

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