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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #127 (António Guerreiro)

Sobre o uso imoderado das obscenidades como traço de estilo e expressão de uma ‘incorreção’ infantil  

Umas das manifestações da democratização dos media e do fácil acesso à autoedição é o uso imoderado da obscenidade. Quando vemos o regozijo com que se escrevem palavras obscenas, recordamo-nos da abertura de “O Grau Zero da Escrita”, de Roland Barthes: “Hébert nunca começava um número do ‘Père Duchêsne’ sem introduzir alguns foutre e alguns bougre. Essas grosserias não significavam nada, mas assinalavam. O quê? Toda uma situação revolucionária.” Esclareça-se que o “Père Duchêsne” é um jornal radical criado durante a Revolução Francesa e editado por Jacques Hébert; esclareça-se, ainda, que seria um risco — o risco da contradição — traduzir as duas palavras que, na citação, ficaram em francês. Hoje, não é uma posição revolucionária que se adota através das obscenidades. É, antes, uma situação de proximidade coloquial e de convívio com o leitor, promovida como uma exigência, que se quer simular. Assim, obscena é também uma utilização do Eu nos meios de comunicação, quando a impessoalidade deveria ser a regra, e não apenas por pudor. 

Mas a disseminação das palavras obscenas tem outra razão de ser: elas conferem ao texto um estilo desenvolto e despachado e colocam imediatamente o autor do lado da força natural que não se detém diante das convenções da correção. Acontece assim com a escrita jornalística (categoria que não se limita ao que se escreve nos jornais) o que aconteceu, por cá, ao “politicamente correto”: é coisa de má fama, conotada com umas delicadezas exageradas e artificiais, que são determinadas pela ideologia e deturpam toda a verdade. Não é que isso não seja com frequência verdade. Mas há ideologia mais óbvia do que a do “politicamente incorreto” por reação? Escrever obscenidades tornou-se mais do que uma interjeição: é um expressionismo infantil. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.2.2011.

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