Ao pé da letra #110 (António Guerreiro)
Sobre a “rentrée” e o admirável mundo das novidades que nela fica prometido, até que venham os balanços | |
«A palavra francesa rentrée não só entrou nos hábitos lexicais dos média portugueses como tem vindo a aperfeiçoar-se no plano pragmático. Dantes, a nossa rentrée chegava visivelmente atrasada, seguia com lentidão a chegada tardia do outono e, mal dávamos por isso, já estava encavalitada nos preparativos do Natal. Mas, agora, para cumprir de maneira eficaz a sua função, a rentrée entra em cena mal declina a primeira quinzena de agosto: são os calendários do consumo a interromper a letargia solar. Das editoras, começam a chegar as listas das ‘novidades’ a sair, como se o culto sem tréguas da novidade tivesse alguma vez isso interrompido. A estratégia da rentrée consiste precisamente em escandir o tempo de modo a criar o efeito de recomeço num tempo circular e homogéneo. À semelhança das revoluções que impõem uma nova contagem do tempo, a rentrée também pretende criar a ideia de que se interrompeu o curso da História e que o que se anuncia é um nouveau régime. | A tarefa não é fácil: trata-se de convencer-nos que é possível enxertar um período de festa no seio de um tempo em que não há um único dia que não seja de festa. A ilusão dura pouco, mas, mal se começa a extinguir, já a exceção festiva do Natal está em marcha. A consagração deste calendário cada vez mais apertado, onde o que aí vem se transforma imediatamente em destroços do passado, conta com a fé dos progressistas que se deixam embalar por um ritmo onde há cada vez menos tempo para mais História e que entram com entusiasmo no contra-relógio das listas. Essa História é depois escrita, consentaneamente, sob a forma de balanços no final do ano. Para esta historiografia instantânea, onde é remoto tudo o que não é o que aí vem, penetrar no que se passou antes da última rentrée é quase um trabalho de arquivo antiquíssimo.» António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 28.8.2010. |