Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #110 (António Guerreiro)

Sobre a “rentrée” e o admirável mundo das novidades que nela fica prometido, até que venham os balanços

«A palavra francesa rentrée não só entrou nos hábitos lexicais dos média portugueses como tem vindo a aperfeiçoar-se no plano pragmático. Dantes, a nossa rentrée chegava visivelmente atrasada, seguia com lentidão a chegada tardia do outono e, mal dávamos por isso, já estava encavalitada nos preparativos do Natal. Mas, agora, para cumprir de maneira eficaz a sua função, a rentrée entra em cena mal declina a primeira quinzena de agosto: são os calendários do consumo a interromper a letargia solar. Das editoras, começam a chegar as listas das ‘novidades’ a sair, como se o culto sem tréguas da novidade tivesse alguma vez isso interrompido. A estratégia da rentrée consiste precisamente em escandir o tempo de modo a criar o efeito de recomeço num tempo circular e homogéneo. À semelhança das revoluções que impõem uma nova contagem do tempo, a rentrée também pretende criar a ideia de que se interrompeu o curso da História e que o que se anuncia é um nouveau régime.

A tarefa não é fácil: trata-se de convencer-nos que é possível enxertar um período de festa no seio de um tempo em que não há um único dia que não seja de festa. A ilusão dura pouco, mas, mal se começa a extinguir, já a exceção festiva do Natal está em marcha. A consagração deste calendário cada vez mais apertado, onde o que aí vem se transforma imediatamente em destroços do passado, conta com a fé dos progressistas que se deixam embalar por um ritmo onde há cada vez menos tempo para mais História e que entram com entusiasmo no contra-relógio das listas. Essa História é depois escrita, consentaneamente, sob a forma de balanços no final do ano. Para esta historiografia instantânea, onde é remoto tudo o que não é o que aí vem, penetrar no que se passou antes da última rentrée é quase um trabalho de arquivo antiquíssimo.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 28.8.2010.

The exhaustion of space (Birth of electronic space #5)

With the formula — the exhaustion of space in late modern cinema — we intend to describe the thorough and transversal experimentation of internal spatial limits of film that followed the “unblocking” of classical rules by the first modern cinema, after or around WW II, which gave way principally to different pathways for now even more troublesome characters and the creation of disconnected and emptied spaces. Directly related, maybe even a consequence, and no doubt the threshold of this thorough and transversal experimentation of internal spatial limits is the hypothesis we’re suggesting of a “birth of electronic space” within the space of cinema. The repetition and velocity procedures of Michael Snow’s Back and forth (1969) and La région centrale (1971), much more than exposing ad nauseum and ad infinitum the cinematic dispositive itself, develop such an potent abstraction that it can be associated, less by formal affinity than by grounding on the same violence to the perception, to the electronic space being created around the same years by the historical advent of video and its basic grammatical exploration, namely in Sketches (1970) by the Vasulkas, pioneers of american video art.
On the other side of the mirror, after the corresponding emancipation of time (as described by Deleuze), we will find the advent of a rhythmic “machination”, in which the rhythmic parameter is privileged in film and are explored the affinities of cinema with that other art of time, whose ontological generosity is a great aspiration for all arts — music.

[to be continued]

Ao pé da letra #109 (António Guerreiro)

Sobre a suspeita que a arte contemporânea continua a despertar e o falso consenso que lhe serve de resposta

«A resposta de António Pinto Ribeiro (no “Público” de sábado passado) a Pacheco Pereira, tendo como motivo as considerações que este fez sobre a arte contemporânea, as suas instituições e os subsídios, merecia ser prolongada com um debate muito mais alargado. É que a ‘denúncia’ de Pacheco Pereira não um grito isolado, mas a voz que ressalta de um coro. E de nada serve — pode ser mesmo de uma arrogância contraprodutiva — reduzir essas vozes ao ressentimento moral, estético e ideológico. Pacheco Pereira não faz mais do que reproduzir os argumentos que se tornaram lugares-comuns, de tantas vezes repetidos (em França, este debate já tem quase duas décadas): a arte contemporânea é nula, incompreensível, fraudulenta, indevidamente subvencionada pelo Estado, sustentada pelas instituições, produto de um mundo completamente separado do público. Em França, esta frente antiarte contemporânea não integra apenas os Pachecos de lá.

Uma das peças fundamentais desse debate é, aliás, um célebre artigo de Baudrillard no “Libération”, em 1996, intitulado ‘Le Complot de l'Art’. Tese fundamental de Baudrillard: “Não há juízo crítico possível, mas só uma partilha amigável, forçosamente convivial, da nulidade. É esse o complot da arte e a sua cena primitiva.” Olhar a arte contemporânea com um misto de suspeita e ironia não é meramente um desporto de ressentidos, e talvez a melhor resposta não seja ver essa atitude como a do velho senhor escandalizado diante de um urinol transformado em obra de arte. Tão ingénua é a posição de Pacheco Pereira como a daqueles (artistas, comissários, críticos) para quem a noção de arte contemporânea passou a ser uma espécie de categoria metafísica em que o contemporâneo é uma evidência, uma espécie de nome próprio que nem precisa de ser interrogado.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 21.8.2010.

Inadequacy of the concept of form (Birth of electronic space #4)

A first important theoretical moment concerns the heritage of formalist and neo-formalist critical traditions and its theoretical developments. The grounding fact for the need of this research is the suspicion of inadequacy of the concept of “form” to describe the major exploits of this cinema and, specially, to account for the immanence of cinema to itself, to the world and to thought. Perhaps it is time to try to surmount this aristotelic hylomorphic scheme – the one that postulates the binary opposition between matter and form — that we take for granted as pure common sense. What I’m concerned with is the possibility of a certain “formalism”, one that privileges cinema’s materials of expression — a formalism without form, nevertheless — and that acknowledges the potentiality of cinema also as thought, namely of very concrete things of our worldly experience, like politics.
To work without the middle instance of ideology and its prodigal sons is then the objective. And one can find, beyond the ideological radicalization and the Brechtian distantiation dominant in late modern cinema, two major “formalist” dimensions which regard the expressiveness of materials themselves, i.e., in which films seem to interrogate their own material condition, and that are somehow connected. These two dimensions can be recognized through the extraction of quite different events in several films, and we can call them: the exhaustion of space, and the emancipation of time.

[to be continued]

Ao pé da letra #108 (António Guerreiro)

Sobre um crime irreparável, que os homens cometeram sobre as mulheres, à beira de ser vingado pacificamente

«Quando Freud afirmou que a civilização repousava sobre um crime, estava a pensar na cena edipiana primordial e não no crime histórico, efetivo e universal que os homens cometeram e continuam a cometer sobre as mulheres. Freud, aliás, com a sua ideia do feminino como “continente negro”, só ajudou a prolongar o crime. Já o “eterno feminino” de Goethe, muito embora se tenha revelado muitas vezes um presente envenenado, foi também uma ficção com algumas potencialidades emancipatórias, baseadas na reivindicação da diferença sexual. O crime — irreparável — já começou a ser vingado por meios pacíficos: em todos os países ocidentais, as mulheres ocuparam a cena dantes reservada aos homens, e ainda esta semana nos chegou a notícia das universidades americanas que fazem uma discriminação positiva dos homens para restabelecerem o equilíbrio. Nas escolas e nas universidades, as mulheres são hoje largamente maioritárias, e isso já é motivo de preocupação do poder político (ainda há pouco tempo, na Alemanha, se discutia também a hipótese das quotas favoráveis aos homens em certos cursos).

Em contrapartida, as cadeias continuam cheias de homens, como sempre estiveram. À luz do que hoje nos é dado ver, dir-se-ia que os homens andaram durante milénios a fazer batota para poderem ganhar o jogo que não conseguiriam ganhar por meios legítimos. Inventaram uma ordem simbólica e remeteram as mulheres para a esfera do “imaginário”, autoproclamaram-se soberanos, quiseram tantas vezes (e, não raro, continuam a querer) ter o poder de decidir sobre a vida e a morte delas. Agora, à medida que vão sendo destituídos, verifica-se que nem o simbólico lhes pertence. O simbólico, o nome-do-pai, como dizia Lacan, foi um modo de dizer que o pai não existe, que é uma figura decorativa nos condomínios de luxo.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 14.8.2010.

After modern cinema (Birth of electronic space #3)

The enlarged context of research the “birth of electronic space” is included concerns the nature and projective shadow of modern cinema and the particular role of ambiguity in it; ambiguity taken here as the operative dimension of thought within cinema. Serge Daney once described “modern” cinema as a “provocation without object and endless mourning”*. This mourning paradoxically became a condition to me, since I took it critically as a tradition that had pratically no followers. That why I do concentrate on the later moment of this cinema — a late modernity, contrary to what is usually done, with the obsession of origins, always imposing historical origins as fountains of adequate understanding, in the passage from classical forms which after all never ceased to happen. I’m more interested in the traces of disintegration of modern cinema itself, the paradoxes it has left behind, and its extreme and now abandoned forms. And of course, I take the “birth of electronic space” to be one.
* Serge Daney, «Post-scriptum», La rampe. Cahier critique 1970-1982, Cahiers du cinéma/Gallimard, 1983 (1996), p. 214.

[to be continued]

Ao pé da letra #107 (António Guerreiro)

Sobre uma conceção da cultura que não é bem uma conceção: é um estado de mutilação cultural

«É uma das frases mais fascinantes sobre cultura que alguma vez foram proferidas por um dirigente partidário. É da autoria de Nilza Mouzinho de Sena, vice-presidente do PSD, e encontra-se num artigo saído recentemente no “Público”: “A cultura não pode ser uma entidade abstracta de elites, pensada por um nicho populacional e desagregada do interesse transversal de toda a população”. A frase é fascinante, porque realiza em si mesma a conceção de cultura que defende. E, em vez de uma ideia sobre cultura, o que ela exibe é o estado de mutilação mental a que foi sujeita a autora, pelo facto de se submeter à sua própria prescrição ideológico-cultural. Se a cultura fosse o que Nilza Mouzinho de Sena pensa que é, nem haveria uma Nilza Mouzinho de Sena para dizer o que pensa da cultura. Quanto mais um Goethe, um Kafka, um Pessoa, um Rothko, um Schönberg. A sua modesta proposição não pode ser confundida com a de um filisteu (há no filisteu uma atitude cínica, um afastamento voluntário e estratégico).

Trata-se de outra coisa, desprovida de estratégia, que o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger classificou como “analfabetismo secundário”, ao pé do qual o verdadeiro analfabeto lhe parece “uma pessoa venerável”. Segunda Enzensberger, o analfabeto secundário é o produto de uma nova fase da industrialização, quando os meios de produção da imbecilidade proliferam de modo a criar os seus qualificados consumidores. O analfabeto secundário tem uma fé realista radical, o que o leva a considerar abstracto tudo o que não pode ser objecto da sua fé. Por isso, a sua preocupação e o seu zelo dirigem-se à população, à realidade demográfica. Menos do que isso, seria ceder a divisões, a cesuras, a tropismos minoritários. A população, ao menos, é um conceito que escapa a determinações culturais. É pura biologia.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 7.8.2010.

An exercise in genealogy (Birth of electronic space #2)

If paying particular attention to the singular expressive power of some cinematic works’, one might encounter unusual approaches, for instance, to the emergence of new technologies, and be tempted to establish the strangest of genealogies. The exercise in genealogy this paper amounts to — to discover the “birth of electronic space” inside the technology of film — must, nonetheless, first be comprehended within the larger context of the overwhelming emergence of the audiovisual archive. The relevance cinema might attain to our contemporary experience of the world is indeed directly connected with the struggle against the general archival of all experience. The belief in some level of irreducibility of ‘visibilities’ to discourse is perhaps the major theoretical hint we have for an understanding of cinema’s “relevance” that would be consentaneous with its most accomplished artistic exploits, exactly what one can never neglect while trying to grasp another level of intelligibility.
Film constitutes a privileged archaeological practice for understanding the orders of experience in a given historical moment, but we are nevertheless still lacking a philosophical ‘foundation’ of the audiovisual archive’s emergence that would bring film into this different level of intelligibility. In the end, we’re facing a function of film that cannot be neglected: the presentation of visibilities lacking so many technological, juridical and political statements that rule us, i.e., an intrinsic reach immanent to its material expression. But within the instance of discourse are indeed included film and art theories, with their corresponding “distributions of the sensible”, so amounting themselves to discourses that can block the ‘visibilities’ of film. That’s why a privilege of the object is always needed.

[to be continued]


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