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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #108 (António Guerreiro)

Sobre um crime irreparável, que os homens cometeram sobre as mulheres, à beira de ser vingado pacificamente

«Quando Freud afirmou que a civilização repousava sobre um crime, estava a pensar na cena edipiana primordial e não no crime histórico, efetivo e universal que os homens cometeram e continuam a cometer sobre as mulheres. Freud, aliás, com a sua ideia do feminino como “continente negro”, só ajudou a prolongar o crime. Já o “eterno feminino” de Goethe, muito embora se tenha revelado muitas vezes um presente envenenado, foi também uma ficção com algumas potencialidades emancipatórias, baseadas na reivindicação da diferença sexual. O crime — irreparável — já começou a ser vingado por meios pacíficos: em todos os países ocidentais, as mulheres ocuparam a cena dantes reservada aos homens, e ainda esta semana nos chegou a notícia das universidades americanas que fazem uma discriminação positiva dos homens para restabelecerem o equilíbrio. Nas escolas e nas universidades, as mulheres são hoje largamente maioritárias, e isso já é motivo de preocupação do poder político (ainda há pouco tempo, na Alemanha, se discutia também a hipótese das quotas favoráveis aos homens em certos cursos).

Em contrapartida, as cadeias continuam cheias de homens, como sempre estiveram. À luz do que hoje nos é dado ver, dir-se-ia que os homens andaram durante milénios a fazer batota para poderem ganhar o jogo que não conseguiriam ganhar por meios legítimos. Inventaram uma ordem simbólica e remeteram as mulheres para a esfera do “imaginário”, autoproclamaram-se soberanos, quiseram tantas vezes (e, não raro, continuam a querer) ter o poder de decidir sobre a vida e a morte delas. Agora, à medida que vão sendo destituídos, verifica-se que nem o simbólico lhes pertence. O simbólico, o nome-do-pai, como dizia Lacan, foi um modo de dizer que o pai não existe, que é uma figura decorativa nos condomínios de luxo.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 14.8.2010.

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