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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O alcance de uma pedagogia cinéfila pensante | The reach of a thoughtful cinephile pedagogy

Sobre os filmes sobre filmes de Hartmut Bitomsky

Ensinar cinema, para quê? Ao contrário de outros cineastas igualmente envolvidos em actividades pedagógicas, Hartmut Bitomsky reflectiu sobre essa mesma condição nos seus filmes, que constituem uma poderosa confluência entre os gestos aparentemente diversos da crítica, da pedagogia e da realização. Esta expressão unificada não pode ser separada de uma aguda e lutuosa cinefilia que só se tornou possível depois do cinema moderno. A par de Harun Farocki, Bitomsky emergiu das perturbações de Maio de 68, com a sua politização extrema de todas as dimensões – nomeadamente, a da produção de imagens –, mas permaneceu fiel a uma prática da “distanciação” de modo a poder acompanhar a proliferação avassaladora das imagens. Trabalhando sempre com found footage, seja previamente existente seja pela “citação” de planos filmados por si, nos seus filmes não deve ser visto um mero desmascarar da ideologia constante nas imagens. A par das obras de Pasolini, Marker e Godard, a especificidade do cinema e da sua história no interior de um dominador arquivo audiovisual é abordada por Bitomsky na sua série Antologia do Cinema, um projecto à primeira vista não demasiado ambicioso, que, no entanto, apenas tem como comparação as Historie(s) du Cinéma de Godard, dispensando apenas a manipulação das características internas das imagens mas acentuando a contextualização da sua exposição. Se a maior ambição da antologia de Bitomsky é resgatar o que foi enterrado vivo nos filmes, a singular invisibilidade, diríamos, do que está à vista, a evolução desta série é também eloquente no que diz respeito ao estatuto tecnológico da imagem fílmica, começando “contra” o vídeo em Das Kino und der Tod e terminando numa aproximação às instalações em Playback.


On Hartmut Bitomsky's films on film

Why teach film? Unlike other filmmakers also engaged in pedagogic activities, Bitomsky actually reflects on that condition, and his films constitute a powerful confluence between the seemingly different gestures of criticism, pedagogy and film directing. This unified expression cannot be detached from an acute and mournful cinephilia that only became possible after modern cinema. Alongside Harun Farocki, Bitomsky emerged from the turmoil of May ‘68, with its extreme politicisation of all matters—namely the production of images—, but remained faithful to a practice of ‘distanciation’ in order to encompass the overwhelming proliferation of images. Always handling found footage, whether previously existing or of his own making as materials to quote from, his films should not merely be taken as ideological disclosures of images. Alongside the work of Pasolini, Marker and Godard, the specificity of film and its history within the overwhelming audiovisual archive is dealt with by Bitomsky in his “Cinema Anthology”; a seemingly unambitious project that nevertheless is only measured by Godard’s “Historie(s) du cinéma”, only lacking the manipulation of the images’ inner features and underlining the contextualization of their showing. If the main ambition of Bitomsky’s anthology is to grasp what is buried alive in film, the singular invisibility, one could say, of what is visible, the evolution of the series is also eloquent regarding the technological status of the filmic image, starting “against” video and ending with an approach to installations.




Porque os filmes são capazes de se focar na sua própria feitura e desenvolver uma análise das suas potencialidades e perigos, alguns problemas metodológicos, quando tornados manifestos, deveriam preocupar igualmente os chamados filósofos do cinema. O papel alterado que toma a descrição, por exemplo, na crítica focada conceptualmente, em que fotogramas fixos e excertos vídeo se disponibilizam para solicitar, acompanhar e, em alguns casos, quase substituir-se à análise, deve ser uma preocupação particular, e para tal os filmes de Bitomsky são repositórios de variadas instâncias descritivas. Outro problema concerne a pertinência de privilegiar um dado momento num filme – seja uma sequência, uma cena, um plano, etc. – para o fim da análise, como se se tratasse de uma selecção neutra sem necessidade de justificação. O pensamento sobre o cinema deve confrontar-se com a estética dos fragmentos que envolve a montagem dos excertos presentes nestes filmes, de forma a poder compreender a selectividade da sua própria actividade teórica.


As films are capable of focusing on their own making and developing an analysis of their own potentialities and dangers, certain methodological problems, when made manifest, should preoccupy film philosophers. The changing role of description, for instance, in conceptually focused criticism, where freeze frames and moving images have become more and more available to solicit, accompany, and in some cases almost substitute analysis, is a particular concern, and Bitomsky’s films are repositories of various descriptive stances. Another problem regards the pertinence of privileging a given moment in a film – be it a sequence, a scene, a shot, etc. – for the purpose of analysis, as if it was a neutral selection in no need of justification. Film philosophy must confront the aesthetics of fragments surrounding the montage of excerpts present in these films, in order to understand its own selective theoretical activity.



Para a nossa compreensão de como se pode produtivamente relacionar cinema e pensamento – i.e., sem negligenciar as expressões mais ambiciosas de um e doutro – é fundamental abordar um particular problema teórico: o da irredutibilidade das “visibilidades” ao discurso. Uma incomensurabilidade entre visibilidades e enunciados foi explicitamente avançada tanto na leitura da arqueologia do saber/genealogia do poder foucauldiana por Deleuze como na sua exploração paralela do cinema. Apesar de Bitomsky ter trabalhado sobretudo (fora desta série específica de filmes sobre filmes) com “material cinematográfico ideologicamente carregado” e oferecido o seu próprio discurso sobre as imagens expostas, talvez a dimensão mais produtiva do seu trabalho resida nessa sua capacidade para, ultrapassando o próprio discurso, procurar e apreender uma camada que pertence à expressão visível das próprias “instituições” e da sua ordem correspondente. O cinema constitui uma prática arqueológica privilegiada para compreender as ordens da experiência num dado momento histórico, mas estamos, no entanto, ainda na ausência de uma “fundação” filosófica para a emergência do arquivo audiovisual que dê ao cinema um diferente nível de inteligibilidade. Por fim, estamos perante uma função do cinema que não pode ser negligenciada: a apresentação das visibilidades em falta nos inúmeros enunciados tecnológicos, jurídicos e, talvez e sobretudo, políticos que nos regem; i.e., de um alcance imanente para a sua expressão material.


Fundamental to our understanding of how can we productively relate film and thought — i.e., without neglecting the most ambitious expressions of one or the other — should be the tackling of a theoretical problem: the irreducibility of ‘visibilities’ to discourse. An incommensurability between visibilities and statements was explicitly put forward both by Deleuze’s reading of Foucault’s archaeology of knowledge/genealogy of power and his parallel exploration of film. Although Bitomsky has worked mainly (outside the films on film series) with “ideological laden film material” and provided his own discourse over the shown images, perhaps the most productive dimension of his work seems to reside in its ability to surpass discourse, to find and grasp a layer which belongs to the visible expression of ‘institutions’ themselves and their corresponding order. Film constitutes a privileged archaeological practice for understanding the orders of experience in a given historical moment, but we are nevertheless still lacking a philosophical ‘foundation’ of the audiovisual archive’s emergence that would bring film into a different level of intelligibility. In the end, we are facing a function of film that cannot be neglected: the presentation of visibilities lacking in so many technological, juridical and political statements that rule us; i.e., a political reach immanent to its material expression.





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