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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Instância, exemplo e caso (Agustin Zarzosa)

Traduzo aqui, com amável autorização do autor, um texto — daquela que foi, a meu ver, a mais brilhante apresentação da primeira Film-Philosophy Conference, em Bristol, 2008 — que me parece fundamental para começar a compreender as relações entre cinema e filosofia.

Em A Metafísica da Moral, Immanuel Kant distingue uma instância de um exemplo. Uma instância, explica, é um particular contido sob um universal; um exemplo, por outro lado, é um caso particular de uma regra prática. O argumento de Kant é que a regra prática não contém as acções que a exemplificam; enquanto regra prática, a lei moral não é um universal composto de particulares, e uma acção moral exemplar prova apenas a possibilidade de agir em conformidade com o dever.
Vou empregar esta distinção entre instância e exemplo para abordar a questão acerca do papel dos conceitos na crítica de cinema. A minha estratégia consiste em classificar as diferentes funções que os filmes operam em relação aos conceitos. Sustento, primeiro, que as funções da instância e exemplo têm dominado a crítica de cinema e, segundo, que estas duas funções são, na verdade, modos deficientes de uma terceira função, mais lateral, o caso. De acordo com isto, a primeira parte desta apresentação é dedicada à discussão das diferenças entre instância e exemplo; e a segunda parte é dedicada à explicação da noção de caso.
Começo então com a instância, que, seguindo Kant, podemos definir como qualquer filme específico contido sob um conceito. A partir do momento em que este tipo de conceito se comporta como um conjunto contendo particulares, refiro-me a ele como uma classe. Identificamos filmes como membros de uma classe se incluem as características necessárias e suficientes que o conceito especifica. A característica principal de uma instância é a sua substituibilidade; uma instância está no lugar de qualquer outro membro da sua classe. A lógica da instância reside em dois princípios complementares: o princípio de homogeneidade, que postula a identidade sob o género, e o princípio de especificação, que postula a variedade em espécie apesar do seu acordo sob o género.



Ao classificar objectos artísticos ou técnicos como o cinema, enfrentamos o desafio insuperável de o conceito não determinar os filmes que contém. Consequentemente, o próprio conceito é posto em causa em cada um destes filmes. Por exemplo, o conceito de Western está em questão em cada filme que reclama a sua pertença a este género. Ao procurarem uma alternativa a este modelo de classificação clássico, alguns críticos recorreram à noção de Wittgenstein de semelhanças de família, noção que propõe como um princípio de unidade não a presença invariável de uma propriedade comum, mas antes a interacção entre um conjunto de critérios combinados de modos imprevistos. Apesar desta alternativa certamente complicar o modo como estabelecemos a pertença de um filme a uma determinada classe, permanecemos dentro da lógica da instância na medida em que as semelhanças de família ainda propõem um modo de subsumir elementos sob um conceito.
Vou agora extrapolar a noção de Kant de exemplo moral para explicar o que constitui um exemplo no reino dos estudos cinematográficos. Como expliquei anteriormente, para Kant, os exemplos morais não são elementos de um conjunto; provam apenas a possibilidade de agir em conformidade com o dever. De modo análogo, os exemplos nos estudos cinematográficos provam a possibilidade de aplicar um conceito – ou, mais precisamente, um campo conceptual – aos filmes; por outras palavras, os exemplos provam a relevância de um campo conceptual no contexto do cinema.




O que distingue em primeiro lugar as instâncias dos exemplos é o tipo de relação que mantêm com os conceitos. Na medida em que uma classe contém uma instância, a sua relação é principalmente espacial. Um campo conceptual, por outro lado, atravessa um exemplo; logo, a sua relação é melhor descrita em termos da acção do campo conceptual e do suportar do exemplo. Neste sentido, conceito e exemplo mantêm uma relação dinâmica: o campo conceptual deve demonstrar a sua capacidade para agir sobre o filme – ou seja, tornar o filme inteligível; o filme, por outro lado, deve mostrar a sua adaptabilidade, quer dizer, a sua capacidade para ceder ao campo conceptual.
Instâncias e exemplos diferem também no que considera a como se relacionam com outros filmes. Instâncias relacionam-se com outros filmes enquanto membros da mesma ou de diferentes classes, ou seja, em termos de similitudes e diferenças. Os exemplos não partilham necessariamente similitudes com outros filmes; o que torna um filme exemplar é o modo como reage à acção exercida pelo campo conceptual. Nesta medida, um exemplo não determina à partida a extensão do campo conceptual, ou seja, um exemplo não antecipa que outros filmes o campo conceptual pode compreender ou que sentido a acção do campo conceptual pode exercer a partir doutro filme. Logo, em termos estritos, o que é exemplar não é o próprio filme, mas antes a análise do filme.




A lógica dos exemplos domina aquilo que Francesco Cassetti chamou de teorias metodológicas do cinema. Como explica Cassetti, as teorias metodológicas consistem em campos disciplinares – tal como a semiologia ou a psicanálise – que tentam demonstrar a possibilidade de compreender o cinema dentro da sua esfera. Como uma aplicação de la grande syntagmatique, a análise de Christian Metz a Adieu Philippine de Jacques Rozier instancia o uso de exemplos. Ao destacar os segmentos autónomos no filme, Metz caracteriza certamente a estrutura narrativa do filme; no entanto, Metz em última análise ambiciona demonstrar a possibilidade de aplicar la grande syntagmatique, e a semiótica em geral, ao cinema. Em vez de antecipar o sentido dos outros filmes analisados sob a lente da semiótica, a análise mostra a aplicabilidade do campo conceptual a qualquer filme; de forma significativa, Metz afirma numa nota que escolheu o filme sobretudo porque “se dava o caso de gostar muito do filme”. Apesar de, muito provavelmente, o tipo, a ordem e o número de sintagmas poderem ter variado caso Metz tivesse escolhido outro filme, a análise permanece exemplar na medida em que prova a aplicabilidade do modelo aos filmes em geral. Consequentemente, aplicar o campo conceptual de uma disciplina não nos dá, em termos estritos, qualquer conhecimento sobre o próprio filme; torna simplesmente o filme inteligível dentro dos parâmetros do campo conceptual. Um exemplo, em última análise, demonstra o poder de compreensão do campo conceptual, e não a constituição do filme.



Devemos notar que, de modo análogo ao facto da noção da classe ser posta em causa por cada membro que a ela pertence, um campo conceptual também é posto em causa a cada análise que elabora. Aqui, no entanto, a questão não é como os filmes específicos alinham pelas condições suficientes e necessárias que a classe estabelece, mas antes quão eficientemente compreende o campo conceptual o filme em jogo. Na sua análise de Adieu Philippine, Metz nota a resistência que o filme oferece ao seu modelo, e indica como o modelo pode ser concebido de novo para dar conta dos sintagmas que não se adequam completamente à la grande syntagmatique.
Gostava de salientar que a instância e o exemplo não são objectos cinematográficos discretos, mas antes funções que um filme pode operar no mesmo texto. No ensaio de Metz, Adieu Philippine funciona simultaneamente como exemplo e como instância. Assim que Metz estabelece as frequências, carências, e ausências de sintagmas no filme, ele indica que o estilo do filme é típico daquilo a que chama cinéma nouveau, um cinema caracterizado pela aparente liberdade formal e transparência narrativa, desagrado por dispositivos retóricos óbvios, e ênfase no elemento verbal. Metz observa que a dependência do filme no sintagma cena instancia como este cinéma nouveau transmite um sentido de realismo global. Neste ponto do ensaio, Adieu Philippine já não demonstra a sua adaptabilidade ao campo conceptual, mas antes a possibilidade de estender os resultados da análise a um universo predeterminado de filmes. O filme cessou de ser um exemplo que demonstra o poder de um campo conceptual para se tornar numa instância que determina as características de um universo.
A terceira função que discuto – o caso – tenta contrariar a homogeneidade entre classe e instância e a heterogeneidade entre campo conceptual e exemplo. Um caso envolve circunstâncias particulares que implicam conceitos; esta implicação, no entanto, não nos proporciona qualquer conhecimento do filme em causa ou sequer a possibilidade de aplicar estes conceitos a outros filmes. O caso oferece uma oportunidade para pensar conceitos do ponto de vista de circunstâncias particulares.



Através da sua interpretação da mónada de Leibniz, Deleuze ofereceu-nos uma concepção convincente do caso. Uma mónada diz respeito ao átomo do universo leibniziano, um átomo que não tem partes, sem extensão, e sem janelas através das quais algo podia entrar ou sair dela. Apesar do seu fechamento, as mónadas expressam o universo todo a partir do seu ponto de vista; as mónadas actuam como espelhos, reflectindo, desdobrando ou expressando distintamente aquelas partes do universo que se encontram mais próximas ou mais amplamente relacionadas com ela. No entanto, dado que as complicações do mundo se estendem ao infinito, as mónadas podem apenas expressar o todo de forma confuso.
Esta concepção leibniziana do universo subjaz ao modelo do cinema de Deleuze, mesmo que Deleuze o retire principalmente de Matéria e Memória de Bergson. Mais em particular, Deleuze fala tanto através de Leibniz como de Bergson para descrever um universo regido por dois princípios: os princípios do dobrar e do desdobrar. Ao elogiar Leibniz como o filósofo que levou estes dois princípios mais longe, Deleuze escreve: “Estes dois pólos são: Tudo é sempre a mesma coisa, há apenas uma e mesma Base; e: Tudo é distinguível por grau, tudo difere em modo...”. Leibniz e Bergson são as mónadas – ou seja, os pontos de vista – através das quais Deleuze expressa este mesmo universo e este princípios imutáveis. Poderíamos expressar facilmente esta concepção englobante do universo dos livros Cinema em termos leibnizianos: cada uma das imagens, que percepciona todas as outras imagens no universo bergsoniano, é uma mónada leibniziana que expressa o universo todo a partir do seu ponto de vista. E, consequentemente, cada filme que Deleuze analisa no seu estudo é uma mónada que expressa um aspecto do universo mais claramente que outras. E é neste sentido leibniziano que os livros Cinema constituem uma história natural das imagens: cada imagem já incluí de forma confusa todas as possibilidades que outras imagens expressam de maneira clara.




O que é então o caso e como difere de uma instância e de um exemplo? Como um caso, um filme já inclui todos os conceitos do mundo; cada filme expressa alguns conceitos de forma clara enquanto expressa outros apenas de forma confusa e obscura. O caso, então, reverte a relação entre classe e instância; enquanto que uma classe contém uma instância, um caso inclui o conceito. Deleuze usa a figura de um cone para visualizar a relação entre caso e conceito. A base do cone não se relaciona com um centro, mas tende para um vértice ou cume. O caso é precisamente o vértice do cone, expressando claramente os conceitos dentro da sua zona privilegiada e expressando, mesmo que confusamente, a sua pertença à base imensurável.
É possível tratar os filmes como casos? De um certo ponto de vista, o próprio Deleuze não consegue inteiramente fazê-lo. Alain Badiou criticou com razão Deleuze por aquilo a que chama a produção monótona de Deleuze, isto é, a variação dos mesmos conceitos através dos casos que estuda. Traduzindo esta crítica em termos leibnizianos, poderíamos dizer que a mónada-Deleuze tende a dominar a mónada-filmes que analisa. E porque a mónada-Deleuze privilegia a sua própria expressão acima da expressão dos próprios filmes, os filmes tendem a parecer menos como casos que expressam o seu ponto de vista do que instâncias que incorporam conceitos deleuzianos e exemplos que provam a possibilidade da crítica deleuziana. Como mónadas dominadas, instâncias e exemplos expressam claramente a zona de influência da mónada-Deleuze. Por outras palavras, os livros Cinema de Deleuze não tentam expressar a zona de influência própria dos filmes, mas antes a metafísica de Deleuze do ponto de vista do cinema.




O que acontece, no entanto, quando o foco muda da metafísica para a crítica de cinema? É possível para a crítica de cinema deleuziana adoptar o método de Deleuze? Na medida em que a crítica de cinema deleuziana está preocupada com a determinação do cinema através dos conceitos deleuzianos e com provar a possibilidade de aplicar conceitos deleuzianos para compreender filmes, ela opera dentro das lógicas combinadas da instância e do exemplo. Considere-se, por exemplo, The Matrix of Visual Culture de Patricia Pisters, um exercício de extensão dos conceitos deleuzianos ao “cinema popular”. Quando Pisters escreve na introdução que ambiciona provar a aplicabilidade dos conceitos deleuzianos ao cinema popular, ela está a operar expressamente dentro da lógica do exemplo. Não estou a sugerir que a aplicação dos conceitos deleuzianos por Pister é desadequada ou mal orientada. Estou, ao contrário, a sugerir que, assim que mudamos o foco da metafísica para a crítica de cinema, o método de Deleuze torna-se possível somente aceitando a possibilidade de os conceitos deleuzianos poderem não residir perto da zona de influência de um determinado filme, e ao invés aprendendo a expressar os conceitos que permaneçam nessa zona. Para situar os filmes dentro da metafísica de Deleuze, temos que resistir à tentação de aplicar indiscriminadamente os conceitos que esta metafísica produziu. Para evitar tratar os filmes como instâncias e exemplos, devíamos considerar os conceitos deleuzianos não como uma oportunidade para estender o nosso conhecimento do cinema ou como uma oportunidade de provar a possibilidade de os aplicar, mas antes como o ponto de vista da mónada-Deleuze, um ponto de vista que já foi claramente expresso.



Este ponto traz-me de volta à minha questão original acerca da relação entre filmes e conceitos. Esta relação é determinada por um modo de expressão, mais especificamente, pela dominância de uma mónada sobre outra. Instâncias e exemplos não são funções completamente diferentes dos casos; são mónadas fracas que não conseguem expressar a sua zona de influência com clareza. Como mónadas dominadas, ajudam ao expressarem a zona de influência de mónadas mais poderosas: as instâncias ajudam ao expressarem a capacidade do conceito conter; os exemplos ajudam ao expressarem a capacidade do conceito compreender. Para um filme expressar a sua zona de influência claramente, deve dominar não apenas os conceitos que o rodeiam, mas também a mónada-crítico ansiosa por consagrar estes conceitos.


Agustin Zarzosa, «Instance, Example and Case»
[versão alargada deste texto, o ensaio «The Case of the Illustrious Example» será publicado em breve numa revista da especialidade]

Agustin Zarzosa is Assistant Professor of Cinema Studies at Purchase College. He received his PhD in Film and Television at UCLA. He is preparing a manuscript on dramatic modes and melodrama.

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