«A questão do intolerável deve então ser deslocada. O problema não é o de saber se se deve ou não mostrar os horrores sofridos pelas vítimas desta ou daquela violência. Ele concerne a construção da vítima como elemento de uma certa distribuição do visível. Uma imagem nunca aparece sozinha. Pertence a um dispositivo de visibilidade que regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que eles merecem. A questão é a de saber o tipo de atenção que provoca este ou aquele dispositivo. [...] [O] problema não é o de saber se se deve ou não fazer e olhar tais imagens, mas antes no seio de que dispositivo sensível o fazemos. [...] O tratamento do intolerável é então uma questão de dispositivo de visibilidade. Aquilo a que chamamos imagem é um elemento num dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo sentido comum. Um “sentido comum” é antes de mais uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade é suposta ser partilhável por todos, modos de percepção dessas coisas e significações igualmente partilháveis que lhes são conferidas. É em seguida a forma de estar em comum que religa indivíduos ou grupos na base dessa comunidade primeira entre as palavras e as coisas. O sistema de Informação é um “sentido comum” deste género: um dispositivo espacio-temporal no seio do qual palavras e formas visíveis são agregadas em dados comuns, em maneiras comuns de percepção, de ser afectado e de dar sentido. O problema não está em opor a realidade às suas aparências. Está em construir outras realidades, outras formas de sentido comum, quer dizer, outros dispositivos espacio-temporais, outras comunidades de palavras e coisas, formas e significações. Essa criação é o trabalho da ficção, que não consiste em contar histórias mas em estabelecer relações novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um além, um antes e um agora. [...] O problema não é o de saber se o real destes genocídios pode ser posto em imagens ou em ficção. É o de saber como é que o é, e que tipo de sentido comum é tecido por esta ou aquela ficção, pela construção desta ou daquela imagem. É o de saber que tipo de humanos a imagem nos mostra e a que tipo de humanos ela é destinada, que tipo de olhar e de consideração é criada por essa ficção. | Este deslocamento na abordagem da imagem é também um deslocamento na ideia de uma política das imagens. O uso clássico da imagem intolerável traçava uma linha a direito do espectáculo insuportável à consciência da realidade que ele exprimia e desta ao desejo de agir para a modificar. Mas essa ligação entre representação, saber e acção era uma pura pressuposição. A imagem intolerável, com efeito, retirava o seu poder de evidência dos cenários teóricos que permitiam identificar o seu conteúdo e da força dos movimentos políticos que os traduziam em práticas. O enfraquecimento desses cenários e desses movimentos produziu um divórcio, opondo o poder anestesiante da imagem à capacidade de compreender e à decisão de agir. A crítica do espectáculo e o discurso do irrepresentável ocuparam então a cena, alimentando uma suspeita global sobre a capacidade política de toda a imagem. O cepticismo presente é o resultado de um excesso de fé. Nasceu da desilusão da crença numa linha a direito entre percepção, afecção, compreensão e acção. Uma confiança nova na capacidade política das imagens supõe a crítica deste esquema estratégico. As imagens da arte não fornecem armas para os combates. Elas contribuem para o desenho das configurações novas do visível, do dizível e do pensável, e, por aí mesmo, de uma paisagem nova do possível. Mas elas fazem-no na condição de não antecipar o seu sentido nem o seu efeito.
Jacques Rancière, «L'image intolérable», Le spectateur émancipé, Le Fabrique, 2008, Paris, pp. 108-113.
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