Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #37 (António Guerreiro)


«O estetismo é tão pernicioso como a censura

Devemos a Robbe-Grillet esta definição: “A pornografia é o erotismo dos outros”. O escritor francês aniquilava assim uma distinção que sempre serviu para sossegar as boas consciências. A propósito do episódio policial que levou à apreensão de alguns exemplares de um livro que reproduzia na capa um quadro de Courbet, “A Origem do Mundo”, há algo de muito mais interessante para ser pensado do que a tentativa patética de censura.


A Polícia desfez o que tinha feito na véspera com o argumento de que a capa “reproduz uma obra de arte”, como se a arte fosse incompatível com a pornografia. Mas a caução artística seria, em si, insuficiente  não funcionaria da mesma maneira para uma obra de arte contemporânea e para um artista não consagrado – se não tivesse sido invocado o estatuto canónico do quadro, que lhe é concedido pelo nome do autor e pelo lugar onde se encontra exposto (o Museu d'Orsay). O olhar censório da Polícia – condenável, é certo – responde de maneira mais exigente ao quadro de Courbet e presta-lhe mais justiça do que o estetismo desta argumentação: “O artístico e o estético não podem ser confundidos com o pornográfico.”»
António Guerreiro, «Ao pé da letra»,Expresso-Actual, 28.2.2009.

Pressures of the unspeakable (Gregory Whitehead) !!!

«[... P]articularmente agora, num tempo em que uma coisa é mostrada vezes e vezes sem conta[,] não mostrar é uma espécie de objecção, uma objecção a esse enorme mostrar. Os filmes pornográficos não são a única representação do porno. Quando uma cirurgia de coração aberto aparece no nosso ecrã, trata-se de pornografia. Ver coisas que não são supostas ser vistas equivale à experiência da pornografia. 
Talvez seja uma forma de objectar, uma reacção aos filmes que mostram tudo.»
«[... P]articularly now, a time when something is shown again and again and again[,] not showing is a kind of objection, an objection to that amount of showing. Pornographic films are not the only representation of porn. When an open heart surgery is on your screen, it is pornography. Watching things which are not supposed to be watched amounts to the experience of pornography. 
Maybe it is a means to object, a reaction to films which show everything.»

Abbas Kiarostami, a propósito do seu novo filme  SHIRIN, na Offscreen

Ao pé da letra #36 (António Guerreiro)


«Falta à Esquerda pensar a questão do trabalho

Nas circunstâncias actuais, parece indiscutível a frase tantas vezes repetidas de que “o pior é não ter trabalho nenhum”. Razões pragmáticas justificam este realismo incondicional, mas no plano teórico é bem visível que a Esquerda, de quem se esperaria um pensamento sobre a questão do trabalho, não consegue ir além da visão marxista: o homem alienando-se num processo de produção que o reifica.

Sobre o trabalho, o que se escreveu de mais significativo no século XX devemo-lo a Weber e Hannah Arendt, que critica Marx por este não fazer a distinção entre trabalho e obra e por não ter reconhecido que o homem é, por necessidade, um animal laborans. Recentemente, André Gorz formulou o prognóstico do “fim da sociedade do trabalho”. Mas a esquerda não tem teoria sobre esta matéria e continua vinculada ao pragmatismo que se demitiu de pensar. Deveria prestar atenção ao conceito de ‘inoperância’, introduzido pelo filósofo Giorgio Agamben: a inoperância não como uma passividade mas como a actividade que torna inoperativas as operações económicas e sociais. A arte responde a esta condição e por isso ela é constitutivamente política.» 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 21.2.2009.

O espectador ocioso #10: Cobertura fraterna

Prosseguindo as minhas modestas observações etológicas na sala de cinema... Devo instruir os mais distraídos acerca do facto de que a projecção de filmes mudos não musicados é dos contextos mais ricos para analisar as variantes embaraçosas do comportamento do espectador de cinema. O que é apenas natural, dado que, no assim exagerado silêncio da sala, todos os pequenos ruídos corporais ganham uma dimensão profunda, como se dissessem respeito aos veneráveis mistérios da existência, que como se sabe apenas se manifestam em tons graves.
 
Um mudo de 1933 do cineasta japonês Mikio Naruse foi o pretexto para um verdadeiro concerto, um acompanhamento extremamente elaborado, uma instrumentação requintada de ruídos de estômago ou da barriga, vá-se lá distinguir, do espectador sentado ao meu lado. É sabido que nunca se deve ir para uma sala de cinema com fome. E, se se tem o azar de ir para um filme mudo com fome, então está tudo perdido! Mas este espectador, de ar já maduro, de quem sabe por onde anda e o que é suposto fazer, estava ainda assim visivelmente embaraçado e não com aquele à-vontade desavergonhado que a sabedoria amnésica da idade concede aos que a mereceram.
O homem bem se contorcia ou se posicionava hirto, à vez, que nada suprimia aquele ronco do seu corpo insatisfeito com o desinteressado fruir estético. E o filme nunca mais acabava. Devo dizer que conheço bem aquela sensação, de ocasiões em que incauto caí na mesma circunstância de profunda vergonha com a expressão sonora involuntária. Foi por isso tão bom experimentar finalmente a solidariedade entre os homens, a comunhão fraterna no embaraço. Há muito que não me sentia entre irmãos políticos como nesta sessão. De cada vez que o ronco do espectador a meu lado se levantava, eu ou me contorcia ruidosamente na cadeira, ou suspirava bem alto, ou mesmo tossia sem vontade, o que um ouvido atento teria percebido facilmente. Nem sei se o espectador a meu lado terá ou não reparado no repetido gesto solidário da minha cobertura sonora. Também não lhe procurei fazer notar duplamente. Pouco importa essa consciência obediente, que seria meramente acessória, sem nada de fundamental acrescentar. A minha presença naquela sala era agora principalmente destinada a cobrir o embaraço do meu irmão espectador sentado ao meu lado. E o filme, qualquer que ele fosse, na sua imensa generosidade cinematográfica, não iria concerteza desprezar o seu embaraço e a minha cobertura fraterna, tornados inseparáveis e canto agora único da humanidade. Não é nestas coisas pequenas que se a encontra?

Ao pé da letra #35 (António Guerreiro)

«A história como narrativa Kitsch é algo anestesiante

A propósito da série da SIC sobre “A Vida Privada de Salazar”, poderíamos recordar uma frase de Gramsci – “A História é sempre contemporânea, isto é, política” – se o objecto em causa tivesse alguma coisa a ver com a História. Sabemos como a reificação do passado, isto é, a sua transformação em objecto de consumo, neutralizado e recuperado pela indústria do espectáculo, se tornou um filão que se manifesta nomeadamente na vaga do romance histórico que invadiu nos últimos anos as livrarias.

Mas esta série – nauseabunda, por um lado, e ridícula, por outro – poderia servir de pretexto para pensar o quanto falta, em Portugal, uma memória trágica das representações colectivas do passado, tais como elas se forjam no presente. Em contrapartida, abunda a memória épico-mítica. Esvaziada de todo o elemento trágico, nunca ela é ocasião para o trabalho de luto e para a catarse. Percebemos isto muito melhor se conhecermos um pouco da cultura dos países da Europa Central. Assim, “A Vida Privada de Salazar” acaba por ser, involuntariamente, uma paródia do uso público da nossa história, tal como ele tem sido feito. O trágico foi substituído pelo Kitsch.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 14.2.2009.

Image: [un]bound

«Há um realizador português de que gosto muito, o Pedro Costa, que tem um modo de filmar muito correcto. Uma vez, ele disse-me que eu filmava os ricos, ele filmava os pobres. Respondi-lhe que eu filmo as almas  e as almas tanto há nos ricos como nos pobres.»
Manoel de Oliveira citado no Público, 10.2.2009

Eu «creio que Luís Miguel Oliveira [esteve mesmo] muito feliz ao concluir o seu texto sobre Quem quer ser bilionário? com esta frase: “Danny Boyle não conseguiu sentir mais do que o cheiro a merda. Cada um tem o nariz que tem.”»

Ao pé da letra #34 (António Guerreiro)

«A ideologia irrompe onde parece mais improvável

Os relatórios meteorológicos, tais como os media os traduzem e difundem, estão longe de ser elementos de informação neutra. Pelo contrário, são peças carregadas de ideologia. Orientados pelo ponto de vista do indivíduo urbano que aspira ao lazer e acha que os astros devem rodar à medida de um hedonismo climático que o padrão turístico tornou universal, “bom tempo” significa sempre sol e calor, e “mau tempo” é sempre chuva e frio. Pode não chover há três meses, estarmos em pleno Inverno, mas a previsão de que no dia seguinte não há nuvens merece sempre um louvor ao “bom tempo”; podem as barragens estar vazias e os campos secos, mas o anúncio de que irá chover é sempre notícia de “mau tempo”.


Neste mundo climatizado de boletins meteorológicos permeáveis à ideologia, já ninguém sabe viver com as variações extremas do tempo, e é por isso necessária a intervenção da protecção civil sempre que chove com mais abundância ou caem uns flocos de neve. A protecção civil parece uma mãe zelosa que vigia e recolhe as suas crias irresponsáveis e indefesas. Para ela, todos os cidadãos são crianças que podem precipitar-se numa poça de água ou sair para a neve como se fossem para a praia. Faça o tempo que fizer, há sempre uma instância estatal que cuida de nós, trata da nossa saúde e nos protege dos elementos. E a isto se reduz hoje a esfera da política.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 7.2.2009.

O que é a loucura?










[As minhas desculpas pelas imagens de VHS antiga, muito saturadas, borradas, com varrimento em baixo, com margens, com as linhas entrelaçadas, com o horrível logotipo do canal de televisão... Ainda assim!]
Antigone / Antígona (1992) de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet
Die Antigone des Sophokles nach der Hölderlinschen Übertragung für die Bühne bearbeitet von Brecht 1948 (Suhrkamp Verlag) [título correcto]
5ª, dia 4, 19h30 [reservem ou cheguem cedo!] – Cinemateca, Lisboa

Dois ao quadrado synthetic remix com direito a texto explicativo e tudo!


Arquivo / Archive