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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Tutoria como alimentação forçada

Na longa obra de Frederick Wiseman há um momento particularmente problemático, sobretudo exemplar, convenientemente situado logo no seu primeiro filme – TITICUT FOLLIES (1967), em que o documentarista americano reconhece hoje um claro “erro” de montagem. Quase se poderia dizer que está lá como exemplo pedagógico, negativo de todo o seu método. Trata-se de uma sequência em que um dos prisioneiros de Bridgewater é sujeito a alimentação forçada. No momento em que se vê, em grande plano, a face do prisioneiro com o longo tubo acabado de ser enfiado através da sua narina, Wiseman corta, numa demonstração extremamente rara e pouco subtil de direcção do sentido de “leitura”, para um outro plano, que pertence a um outro tempo inevitavelmente posterior, com a face desse mesmo prisioneiro, novamente em grande plano, mas com as feições desamparadas de um morto (conferir imagens em baixo), voltando depois à cena inicial.
Alguém devia ter alimentado à força este filme, por assim dizer, a Raquel Mendes, aluna do Curso de Vídeoarte do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística, que na sua obra de arte-vídeo CONCÓRDIA juntou dois planos aparentados na mesma imagem. No plano exposto à direita da imagem única de CONCÓRDIA, um homem alimenta uma mulher velha, de saúde visivelmente frágil e de consciência que pouco ou nada se manifesta, sentada a uma mesa, enquanto uma outra mulher mais nova observa um pouco atrás. Na plano exposto à esquerda, o mesmo homem e a mesma mulher que observa cuidam e decoram um monte de terra num cemitério, presumivelmente acabado de enterrar. Para falar mais concretamente, vemos simultaneamente uma velha de saúde extremamente frágil e aquilo que não podemos evitar presumir ser o local ocupado do seu repouso eterno.





A leitura não podia ser mais direccionada. É mesmo sufocante por não nos deixar alternativa alguma. Nem ponta de suspeita generosa. O que a imagem nos diz é que aquela velha que estamos, neste presente cinematográfico, a ver à direita ainda viva, mesmo que regurgitante, está, neste mesmo presente cinematográfico, morta.

Alguns espectadores saíram da sala. Seja por sensibilidade extrema ao sofrimento alheio visto através do filtro do cinema, patente no primeiro plano, seja, compreensivelmente, por repugnância perante o procedimento da artista. Provavelmente já a contar com isso, a obra estava alinhada em último lugar na primeira parte do programa. Repugnados ou não, todos acabaríamos por sair para o intervalo.
No entanto, se é verdade que perante certas imagens há um sentimento algo básico, visceral, de profundo desconforto, de rejeição, convém não alimentar demasiado a confiança nesse carácter visceral. Pode ser uma defesa de alma sensível, enganosa, a quem o que choca é afinal o próprio reconhecimento da evidência do sofrimento alheio. Não são obviamente esses os casos que me interessam.

Parece-me que é preciso antes tentar compreender como acontece a repugnância pelo gesto artístico. Pessoalmente, se fiquei na sala foi por duas razões. Em primeiro lugar, pela combinação de não ser uma alma sensível e da duração prevista da obra ser muito curta. Em segundo, porque sendo o gesto tão pouco sofisticado e tão descarado, a repugnância perante aquela junção não foi suficiente para testar se aquele exercício não teria afinal algo a mostrar por fim. Tal como estava era apenas uma péssima junção. O horrível era que a única maneira daquele procedimento eventualmente poder resultar era se, no caso extremo dos extremos, a mulher velha efectivamente morresse em directo no primeiro plano! Teríamos assim, passando o limiar, dois planos compossíveis lado a lado na imagem, contemporâneos.

As intenções, como quase sempre nos desastres, eram as melhores. Afirma a artista, e vale a pena citá-la por inteiro, que o seu «projecto confronta-nos com uma situação que a sociedade actual decide esconder aos nossos olhos: a materialização da relação com o tempo, a morte. Através do registo directo de sinais de decomposição, as imagens expõem a vulnerabilidade de quem está perto do fim e a gestão de afectos de quem assiste a esse fim».



A sua preocupação, afinal louvável, diz respeito à efectiva “invisibilidade” de um certo tipo de sofrimento, que é de facto algo de insuportável para as nossas sociedades. Mas, e ao contrário da sua intenção, ao colmatar desta maneira essa invisibilidade, aliena-nos completamente dessa vulnerabilidade e sobrepõe-lhe o seu gesto mais opaco. Em vez da articulação da “gestão” dos gestos das pessoas no filme, nos dois planos, portanto, pré e pós-morte, o cuidado posto na alimentação e a decoração do túmulo, mostra apenas a morte em si. Curto-circuita o tempo. Como se tivesse tocado num interdito cinematográfico. Acredito nisto, que se trata de um interdito propriamente cinematográfico. Ou uma limitação intrínseca, se quiserem. Embora me pergunte se o cinema de ficção não sustentaria, com muita habilidade ou ligeireza, este procedimento que em modo documental se torna repugnante.
Diz ainda a artista que o tinha «pensado para uma dupla projecção suspensa, contudo, devido à natureza desta apresentação, optou-se pela incrustação dos dois vídeos num único canal». Aquilo que tinha a natureza de uma instalação, ao ser obrigada a passar para uma única imagem em movimento, para “caber” naquela projecção normal numa sala, exigiu colocar lado a lado dois planos, portanto, não em sucessão temporal como na montagem paralela de Wiseman, mas numa consonância temporal. Evidentemente, nada é menos certo do que a espacialização da coisa vá dissolver o problema. Mas aqui interessa-me a especificidade cinematográfica deste interdito, o seu ponto extremo.

Não é que o cinema seja virgem de sobreposições temporais paradoxais. Pelo contrário, constituem mesmo um dos seus traços modernos. Dentro de um plano podem concorrer camadas temporais que acabam por constituir um paradoxo de sentido, ou pelo menos uma ambiguidade profunda, uma leitura em muitos estratos. Uma paisagem straubiana, para dar um exemplo conhecido, pode fazer igualmente apelo aos enterrados no solo, às vitimas de lutas passadas que não se vêem, tanto quanto ao vento nas árvores. Isto não só o cinema permite como deseja, como de pão para a boca. Mas não é nada simples consegui-lo...

Sem dúvida o mais triste é que esta repugnância, e todos os comentários posteriores que venha a ser feitos, podem já ser um efeito desejado, e um resultado suficiente para o jogo do gesto da artista. Talvez. Mas o que diz isso da vídeoarte? O que acrescenta aqui a “arte” ao cinema (vídeo incluído) senão esse profundo e obsceno descaramento?


Nota: Não conheço Raquel Mendes pessoalmente, nem qualquer obra sua anterior. Não faço igualmente qualquer juízo de valor antecipado sobre a sua obra futura. O tom duro deste texto é uma profunda limitação minha e diz obviamente
apenas respeito à experiência que tive, e a que procuro responder, e em caso algum à pessoa em particular da artista.

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