Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A cegueira interior


Entro na sala pequena da Cinemateca para ver a última sessão de PORTO DA MINHA INFÂNCIA de Manoel de Oliveira. Sentado entre o público estava um rapaz de óculos escuros. Talvez pelo modo como (não) movimenta a cabeça, apercebo-me de que é cego. Ou se calhar já o conheço de outro sítio. Mas esta ocorrência, de que uma pessoa cega venha efectivamente ver um filme, que me parece feliz e confirmando a possibilidade que gosto de alimentar sobre a riqueza sonora no cinema, deixa-me algo perturbado. Durante a sessão, os dois homens a meu lado, de quem já conheço os hábitos de espectadores barulhentos, passaram a irritar-me ainda mais. Que me chateiem a mim, com o seu remexer constante das folhas da Cinemateca ou do saco de plástico ao colo, ainda vá. Agora perturbarem o ceguinho na sua fruição, isso é que não! A minha visão do filme ficou também baralhada. Já não sabia bem se era eu que estava a ver o filme ou se era o meu duplo experimental, que tentava fechar os olhos a torto e a direito, para experienciar a visão cega do filme. Claro que não é nada a mesma coisa. A possibilidade de os abrir diferencia a experiência determinantemente. “Maior cego é aquele que não quer ver.” Mas invejei-lhe um pouco, naquele momento, as virtudes da subtracção. Aqueles que querem acrescentar outros sentidos ao audiovisual não percebem nada. E o filme prestava-se, com a própria locução de Oliveira. Nos momentos mais silenciosos, o pai ou amigo a seu lado segredava-lhe pequenas indicações, certamente úteis. Tal como aquele adágio do “é apenas um filme, para mim este pequeno acontecimento derivado tornou sobretudo claro que nunca estamos apenas a ver um filme.


E ao sair da sessão lembrei-me deste texto:

«Escutei Nouvelle Vague, sim, o filme Nouvelle Vague. Ouvi-o. Eu não vejo.
Apesar da minha cegueira, vou muitas vezes ao cinema e tenho nisso bastante prazer e interesse. Claro que escolho sobretudo os filmes que não são principalmente visuais mas comportam bastantes diálogos. Com a ajuda de alguém que me descreve algumas acções ou elementos do cenário, eu imagino.
Vi até aos vinte e três anos, também conservei bastantes recordações visuais, e, pela força da imaginação, as cores e as imagens alimentam o presente do meu “cinema interior”. Os filmes vêm povoar esse espaço fazendo aí brotar bolhas de visões ou emoções coloridas. Se a escuta de um filme é um prazer, é também um esforço, uma concentração... Fazer apelo a recordações precisas para tornar o mundo interior o mais rico possível, supor e inventar para preencher os silêncios. Há sequências de filmes que acredito ter visto “com os meus olhos” de tal forma as cenas, as cores permanecem fortes e claras para mim.
Assim, como na vida, em que a vigilância é a norma de todos os meus gestos e deslocações, o cinema exige-me uma atenção aguda, senão perco o fio à meada.

[... É] preciso aceitar perder. Ele não nos entrega as coisas na sua totalidade, mas em brasa e esfumadas.
O erro estava em querer ouvir tudo para tudo compreender. Quando é mais: ouvir o “todo”, o caminho que nos propõe. Agora todas essas vozes pulverizadas compõem para mim uma outra, uma só voz humana, em migalhas mas viva, efabuladora, contendo os átomos gravitantes de uma mesma célula, os planetas de um mesmo cosmos.

O que são todas estas imagens...
Este enorme pensamento...




Cinema, olho e ouvido, observador do mundo exterior, ceifeiro de pequenos pedaços de realidade... desconstrução, sinfonia e alambique... para uma nova realidade de imagens em liberdade, as suas, as minhas, recriando-se infinitamente... O pensamento, potente e migrante, nascido de um exterior longínquo, pensamento ainda por nascer, explorador do impensável.
As vozes são passadoras, as de fora: voz de espuma, fogo de palha, címbalos e espelhos vidrados, as de dentro: imersas, graves, envolvidas num casulo de carne, fogo subterrâneo... E a minha escuta é movimento para seguir o do homem-árvore que se afunda na terra e se lança para o céu.
Mas a personagem querida do cineasta é talvez essa vaga nova, água que abole a forma e a regenera. A porta está aberta mas ninguém tem a chave, nem as personagens, nem o autor. Depôs num canto do meu ouvido um espaço de mistério que me alegra.
Filme escutado, filme sonhado, filme reinventado... Deixa-me um travo subversivo a invisível e a eterno.»

Claire Bartoli, «Le regard intérieur», Trafic, n.º 19, P.O.L., Paris

O texto de Claire Bartoli leva o apropriado nome de o olhar interior. Mas, perante ele, perante a experiência de alguém cego conseguir ver um filme e tantos outros não verem, não ouvirem nada, perturba-me antes a irreprimível capacidade que levamos todos de cegueira interior.

Tinha outrora publicado aqui um dos meus excertos preferidos de FRANCISCA de Manoel de Oliveira. Como o Youtube apagou o trabalho de anos de piratagem, fiquei sem ele para acompanhar um texto sobre a etologia do silêncio na sala de cinema. Recuperei entretanto, espero que de vez, o ficheiro de som. Ao ouvi-lo, como na altura, tornou-se-me de novo evidente a genialidade intuitiva de Oliveira, também no trabalho do som. Aliás, de que tanto gosto eu neste excerto senão do trabalho no som? Essa sua genialidade intuitiva, quer dizer, que teoria justificaria tamanhas decisões?, está, como quase sempre, nos pequenos pormenores, embora a eles não se reduza. Aqui, no modo delicioso como falam as personagens (e a propósito, continuando o delírio sobre o cliché de Oliveira, não seria muita da porrada que levou dirigida aos diálogos carregados de Agustina Bessa-Luís?) e, principalmente, como a conversa se enreda na música, de forma extremamente cómica e paradoxal...

Sem comentários:


Arquivo / Archive