Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias


Sobre a função social da maternidade
Uma conversa com Maria Speth, realizadora de MADONNEN / MADONAS

Porquê a insistência num filme que passou quase desapercebido? Trata-se do filme mais inteligente a abordar a maternidade desde o fabuloso M/OTHER de Nobuhiro Suwa, com o qual partilha aliás bastantes afinidades estilísticas. Se não tivesse estreado nas salas de Lisboa, teria sido incluído no recente ciclo sobre a Nova Escola de Berlim, a que pertence por várias razões.
Sobre a inacreditável apatia crítica com que foi acolhido, com uma única excepção, haveria muito que pensar. Também a sua lamentável distribuição não ajudou (apenas duas semanas em cartaz! mas como censurar a Atalanta, quando as outras distribuidoras nem sequer reconhecem a existência destes filmes?). Guardo, no entanto, alguma esperança que o filme tenha chegado alguém que dele verdadeiramente precisasse, a uma dessas pessoas que sentem a falta.
Esta conversa decorreu um pouco à pressa, no aeroporto de Lisboa, antes da partida de retorno a Berlim de Maria Speth, depois da passagem do filme num Festival de Cinema Europeu do Estoril às moscas. Teve a preciosa ajuda de Reinhold Vorschneider (marido dela e seu director de fotografia, bem como dos filmes de Angela Schanelec), que foi traduzindo e contribuindo. Agradeço também a Simone Stricker pela ajuda na transcrição. É dedicada aos martirizados cinéfilos da cidade do Porto, que têm uma oportunidade esta semana (mas é mesmo só esta semana, até 4ª, dia 20!) para o ver.


André Dias – Acompanhando o modo como compreende a função social de maternidade, a construção narrativa do seu filme faz com que se vá apenas recebendo a informação à medida que nele vamos avançando. Isso reflecte-se grandemente na caracterização das personagens. Não nos apercebemos imediatamente quem são ou qual é a relação de parentesco que têm entre si. Se bem me lembro, nenhuma personagem se dirige a outra chamando-a de “mãe” ou “filha”. Essas relações são apenas clarificadas à medida que o filme se desenvolve. Uma construção tão marcada só pode ser intencional...




Maria Speth – Esse princípio de construção do filme veio da posição de observação que se tem ao conhecer uma pessoa normalmente na vida de todos os dias. Quando se conhece alguém não se sabe imediatamente tudo sobre ela. É pouco a pouco. Se se é convidado para um jantar e não se conhece os presentes, pomo-nos a pensar quais serão as relações entre eles. Foi esta ideia – sentir como na vida – que permitiu construir o filme assim.
Um outro aspecto é o de cada figura revelar apenas a si própria, dizendo coisas sobre si, não sobre as outras. Cada uma tem a sua participação no todo, e depois juntam-se. Há assim uma espécie de meta-estrutura em que se vai conhecendo Rita, a sua mãe Isabella, e a filha Fanny, separadamente. Trata-se do sentimento que eu tenho, enquanto realizadora, de não querer saber mais do que o público. Quero observar da sua posição. Por isso, mesmo as relações entre as pessoas devem evoluir a partir das próprias pessoas e pelo desenrolar das cenas ou da estória. Não deve haver uma espécie de meta-consciência do realizador que está a construir a estória com termos e pontos óbvios.
{Brigitta Wagner diz, a este propósito: «O ritmo a que a informação nos é revelada permite-nos especular [...]. As personagens não constituem tipos definidos por uma exposição prévia, antes works in progress, esboços de pessoas que poderiam existir, cheias de incertezas, ansiedades, “sonhos adiados” e percentagens flutuantes de amor e dor.»}


Refere-se, por vezes, à maternidade, ao facto de se ser mãe, como um constrangimento, uma função social que força as mulheres a confrontar-se com aquilo que se espera que uma mãe seja. Se ainda é possível considerar um filme como feminista, será este, no sentido em que nele se interroga a condição da mulher, não dando uma resposta, mas colocando claramente o problema.




Não diria que é um filme feminista. É sobre as mães, mas também sobre os pais. Existem certos papéis na vida que têm que ser preenchidos. Por exemplo, se alguém se torna mãe, tem que ser responsável. Ao mesmo tempo, é confrontada com a expectativa em torno desse papel. Os pais aparecem no filme, mas não nesse papel. A personagem de Marc tem a ver, em parte, com essa posição de se preocupar com o cuidar. A sociedade também vê o homem nesse papel de pai, mas este não é tão sancionado se não o cumpre como se espera. E há momentos no filme em que se tem a sensação que ninguém quer ficar com o papel de mãe. Este acaba por cair para cima da filha mais velha, Fanny, porque ela se preocupa.
Estava portanto interessada no conflito entre uma mulher específica e as expectativas sociais relacionadas com a maternidade. Essa era uma ideia do filme ou mesmo um dos seus pontos de partida. Porque eu própria fui mãe e tive que lidar com essas expectativas. Neste sentido, talvez se possa chamar feminista ao filme, porque de certa forma desconstrói as expectativas sociais.


No filme, lidamos ao mesmo tempo com o comportamento sexual promíscuo de Rita e com a sua negligência materna. Ela tem simultaneamente uma vida sexual activa, com vários parceiros, livre nesse sentido, mas é vista como uma mãe negligente, que não presta atenção aos seus filhos. O filme parece associar os dois comportamentos, o que poderia talvez ser complicado. Mas como, ao filmar, suspende quaisquer tipos de juízos, acaba por ser uma aproximação natural. Pergunto-me, no entanto, se seria ainda o mesmo filme caso Rita não tivesse tantas relações com homens.





Como ponto de partida, parti da minha experiência sobre o que significa comportar-se por relação a este papel de mãe. Pensando nisso, consegue reconhecer-se as dificuldades envolvidas com o criar de crianças, e pode simpatizar-se com outras pessoas. Conheci depois outras mães, em pesquisa, que não são tão privilegiadas, que estão, por exemplo, na prisão ou que fizeram algo de errado. Percebi que muitas destas mulheres ficam retidas num estado infantil, negando as suas responsabilidades, tanto no sentido criminal, como no de tomarem conta dos seus filhos. Não se podem tornar responsáveis, não reconhecem a própria responsabilidade, porque são mulheres que não cresceram. Para assumir responsabilidades é necessário que se tenha crescido, para que se consiga separar o bom do mau. Para estas mulheres é muito complicado lidar com esta separação. Não têm a consciência, a necessidade moral, de serem responsáveis. Estão por isso para lá do juízo moral enquanto seres humanos. Não faria sentido julgá-las moralmente, porque não está na dimensão do seu reconhecimento pessoal.
Interrogava-me sempre porque tinham elas aquela quantidade de filhos, numa situação que é económica e pessoalmente tão difícil. Mas nunca me conseguiram responder. Mas não queria que se associasse isto a mulheres de certos milieu, como o das mulheres na cadeia, e que o espectador pudesse dizer: “isto não tem nada a ver comigo”. Não, trata-se de algo válido para todos. Cumprir estes papéis na vida, assumir responsabilidades, é para as pessoas um verdadeiro desafio.
Quanto a se uma mulher que vive a sua vida sexual activa se pode reconhecer no seu papel de mãe, há efectivamente uma conexão entre os dois aspectos no filme. Mas trata-se de uma pessoa singular e não de uma afirmação de carácter geral. Era isto que eu queria descrever, este ser humano específico. Uma mulher que tem uma sexualidade especial, porque as suas relações com os homens são livres, ou aparentemente livres, mas na verdade está sempre à procura de algo que não vai encontrar, uma ligação. Não se tratam de verdadeiras relações, porque, quando se tornam próximas, ela foge, tentando manter os homens fora da intimidade afectiva. E este é um ponto essencial.


Permanecemos muito envolvidos emocionalmente durante o filme. Estamos sempre tensos, agarrados à cadeira, ou quase a chorar, e sempre à espera que algo de terrível suceda. As crianças parecem continuamente em perigo. No entanto, não deixa que nada de verdadeiramente mau lhes aconteça. E essa parece-me uma das maiores qualidades do filme.




É um aspecto que diz respeito à dependência das crianças em relação aos adultos. Era importante este estar em perigo das crianças, pois é esse o estado em que estão geralmente. Elas têm a necessidade, mais ainda, a obrigação de crescer num espaço a salvo. Por causa disso existe sempre uma retracção e sentem-se tão atraídas pela mãe, não importando tanto o que ela faz ou como se comporta de facto.
É algo de físico, e é bom que o público sinta também esse perigo. Porque assim sente o que talvez não se consegue descrever com palavras, o que não se pode descrever intelectualmente. O cinema é um bom meio, para mim, para gerar estados físicos. É uma forma para descrever estados. E para isto é preciso o público, pois, dessa maneira, não é só para mim, se verdadeiramente funciona é para toda a sala de cinema. Mas nem sempre tem que acontecer algo de dramático. Basta a descrição dos estados que proporcionam as condições para que algo aconteça. Portanto, não estava interessada em ter uma irrupção, uma explosão, ou mesmo de ter um dano físico nas crianças.


A última meia-hora final é longa e exasperante. Desde o momento em que Rita tenta reunir toda a família, até à compreensão lenta de que isso vai falhar... O comportamento das personagens revela-se muito errático: Rita parece querer a estabilidade, mas acaba por escapar; também Marc, um bom homem que parece gostar dela, vai voltar afinal para os Estados Unidos. É um final em aberto, mas muito duro.


Por um lado, isso tem a ver com o problema de Rita, a sua dificuldade nas relações, com as quais não está habituada a lidar e que a assustam. Tem medo das responsabilidades, também no que respeita aos homens. Tem uma atracção afectiva por Marc mas, ao mesmo tempo, afasta-o. Essa é uma dimensão do seu carácter. No seu caso é extrema, mas acontece a todas as pessoas, querer algo intelectualmente e não ser capaz de o viver. Ao passo que Marc, um G.I. americano, está estacionado na Alemanha por pouco tempo, como em geral acontece. Não é aquela a sua casa. As relações destes homens com as mulheres alemãs são assim, limitadas no tempo. Procuram uma família, mas apenas para a sua estadia na Alemanha.
O final do filme tem assim concretamente a ver com a vida particular destas pessoas, Rita e Marc. Estavam destinadas a conhecer-se, porque têm apenas o presente, sem passado nem futuro. Nunca falam sobre o passado, pois Rita é uma mulher transgressora. Não lhes é permitido acalentar esperanças.



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