Sobre o vídeo
A alternativa entre a película e o vídeo é habitualmente referida apenas pela perspectiva da economia de produção. Não é essa a que nos interessa, mas sim a das suas potencialidades estéticas respectivas. Cremos que os filmes que são filmados em película gozam de uma amarga vantagem, que aliás inúmeros deles não conseguem ultrapassar, e que funciona mesmo como uma espécie de poço em que se afundam. Essa vantagem é a de que a película transporta consigo desde logo, e independentemente daquilo que é filmado, uma beleza meramente fotográfica, uma beleza inútil imediata, uma espécie de esplendor imanente ao material. Mas, porque não é certo que a imagem cinematográfica deva ser bela em si, esta beleza dada pela sua constituição química, pela sua capacidade de detalhe, pode tornar-se um entrave à composição, um bloqueio. Talvez hoje a sua beleza deva ser esquartejada, retida, para que não nos emocione facilmente. Muitas vezes, sentimos essa beleza como claramente excessiva, como se os filmes excedessem a definição que os serviria. Quando assim é, parece que a realização fica presa na manutenção dos parâmetros que mantêm a beleza e não se consegue soltar. Não que a beleza de uma imagem – algo que acabo por não conseguir definir – seja em si dispensável, mas devia ser constituída à posteriori. Como se a cinematografia devesse tornar-se evidente apenas depois da apreensão do filme, e nunca antes. Talvez seja essa prioridade do fotográfico nos filmes de película que causa repulsa, o modo como as imagens facilmente se tornam clichés fotográficos. Esta beleza imediata funciona aliás muitas vezes como caução dos filmes, que podendo nada mais ter a apresentar, têm ainda este esplendor químico projectado como salvaguarda. Creio que muitos filmes não sobreviveriam sem as cauções da definição da película, sem a complexidade da definição química.
No vídeo, apesar da facilidade do corpo a corpo com a personagem, "não há química". É assim natural que este tenda para relações mais espirituais, mais cerebrais. Talvez nos possa libertar um pouco da profundidade que a película naturalmente impõe, com a sua imensa capacidade de abranger todos os seres num detalhe vivo, acolhedor. Ao contrário, porque que no vídeo estes têm uma imediata aparência superficial, são outras as potências que aí sentimos agir, talvez mais de acordo com os tempos em que vivemos. Existe no vídeo, necessariamente, um esforço bem maior em tornar os seres suportáveis, já que estes parecem descolados de tudo.
O vídeo tem uma outra vantagem em relação à película no particular aspecto de que diminui um pouco a falsa ilusão da imagem vazia. Sentimos desde logo a superfície videográfica preenchida de palpitação electrónica, de uma rede de pontos, enquanto na película, parece sempre que tudo podia acontecer emergindo daquele fundo escuro. Se tudo podia acontecer, agora quase nunca acontece. Novamente, perante a situação contemporânea, tão esgotada, achamos mais apropriado este preenchimento electrónico.
Se optamos pelo vídeo é para trabalhar contra ele, como um inimigo próximo. Assim, às vezes já não sabemos distinguir entre aquilo que são as suas tendências materiais e as capacidades que lhe tentamos atribuir, porque não há um desenho estável de umas e outras. Em particular, o vídeo parece promover uma tendência para uma desadequação entre os enquadramentos do espaço e dos corpos, talvez devido às objectivas, o que, enquanto dificuldade, permite diferentes encontros nos limites, e oferece uma espécie de espaço corporal de feedback em que se pode gerir o comportamento de personagens também elas prioritariamente desadequadas. Por outro lado, novamente enquanto tendência material, pode haver no vídeo uma maior frieza da câmara, uma simpatia que não acompanha, que não obedece à aspiração óbvia em participar das acções; obviamente que não do ponto de vista da utilização da câmara à mão e da exaltação frenética que normalmente a acompanha. Podemos também alhear-nos melhor da beleza dos enquadramentos, promovendo quadros falhados, complexos, de leitura, agregados e informativos. Há uma ageometria a adoptar se nos conseguirmos libertar da manutenção de linhas perfeitas, alheando-nos do espaço das coordenadas.
Embora seja uma cor entre outras, é o cinzento da dessaturação cromática, tão próximo ao vídeo, que pode constituir uma base interessante para o trabalho cinematográfico. Poderíamos invocar o ponto cinzento de Klee, para darmos ao vídeo digital a mesma ambição de conjugação da cosmogénese e do vazio. Alguém dizia que precisamos de materiais moleculares que façam apelo a forças cósmicas para criar problemas desconhecidos. São as infinitas variações do pensamento. Ainda não compreendemos como pode o cinema deixar de nelas participar, à sua singular maneira.
(André Dias)