Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Materiais de destruição


Por vezes, quando atravessamos a paisagem por todo o lado possuída, ocorre-nos pensar que talvez agora fosse mais necessária uma arquitectura privilegiadamente destruidora, que se ocupasse em especial com a destruição do construído e, em consequência, com o esvaziamento do espaço, que invertesse portanto o delírio da construção e nos devolvesse, não uma natureza ordenada e pacificada pressuposta, mas antes uma extensão vazia desordenada.
Também o cinema nos parece precisar de uma brutalidade semelhante, pois encontra-se igualmente ocupado, aterrorizado, por codificações estilísticas que são tão rígidas e sufocantes como os prédios nas colinas destes imensos subúrbios. Estas codificações mascaram-se de espontaneidade, submergindo-nos em sucessivos clichés, afogando-nos na sua inconsequência de gigantesca psicanálise de um mundo doente. Mas uma tal brutalidade não tem de ser bruta, e no cinema há gestos de resistência de todo o género, em particular dos mais delicados. Se a luta contra os clichés nos parece um primeiro e insuperável gesto de resistência de que se pode ocupar o cinema, as vias para o tentar são inúmeras e não têm privilégio umas sobre as outras. Aparentemente, todas devem fazer apelo aos materiais mais indicados para operar a destruição do construído, se bem que existam casos em que essa escolha foi diluída sem prejuízo do fulgor do filme. A verdade é que há coisas tão fortes no cinema que temos a impressão que até em slide funcionariam, por até aí a sensação persistir, mesmo quando a sua matéria de expressão é mais pobre.
A eficácia da luta contra os clichés passa certamente pela complexificação dos dados. Ou seja, em primeiro lugar, por abrir, deteriorar ou expulsar os códigos (da representação, da naturalidade, do movimento, etc.). Tarefas complicadas, não só porque os códigos também estão em movimento e em mutação, da mesma maneira que um vírus ou uma doença, mas também por ser, por vezes, bastante difícil discernir entre os códigos e os encontros felizes, na medida em que ambos claramente funcionam. Os códigos funcionam com toda a certeza, e põe tudo a funcionar à sua volta, as emoções, a economia, etc. Já os encontros felizes são muito mais raros, ao ponto de parecer que a raridade é a sua essência; e, no entanto, funcionam também, e – muito importante – são objectivos, estão lá, inscritos nos filmes, como sensações não subjectivas, embora a sua ocasião dependa grandemente da disponibilidade de quem os acolhe.
Para a sensação não existem disponibilidades garantidas nem fixas. As pessoas não estão abertas a tudo a todo o momento, e aquilo a que se dispõem depende de frágeis equilíbrios. A extensão afectiva que cobrem, a capacidade de se deixarem afectar, de se deixarem tocar por um filme, entre outras coisas, depende solidariamente do resto da vida que levam. Assim, por exemplo, que alguém goste de ouvir música improvisada será provavelmente um mistério para a quase totalidade das pessoas, mas isso não permite a ninguém julgar que na música improvisada não haja uma sensação objectivamente experimentável, de características particulares mesmo. Isto é assim apenas porque viemos ao mundo com um lençol demasiado curto para lidar com todas as coisas que nos podem afectar. Se cobrimos a cabeça, acabamos por destapar os pés ou os braços, e assim por diante. Somos seres extremamente limitados, deste ponto de vista. Há quem se aninhe e quem se exponha, entre outras posições, e assim também o fascínio das pessoas depende desse modo único de se cobrirem ou se deixarem a descoberto, promovendo este ou aquele afecto, numa configuração singular de imensa complexidade. (Por isto é que o discurso sobre os públicos não só é uma generalização absolutamente abusiva, do género tratamento estatístico, como é concebido enquanto violência orquestrada às capacidades afectivas, à potência da vida de cada um, pressupondo os limites de cada uma delas numa experiência estagnada do cinema. E a esta pressuposição só se pode chamar de fascista.)

Cremos que uma das vias a seguir na composição cinematográfica passa por, para lá da destruição dos códigos, na face solar do trabalho cinematográfico, criar ambiguidade através do lançamento de dados não codificados, que requeiram novas leituras e que precipitem o pensamento. Ora, precipitar o pensamento tende a incomodar e dificilmente nos faz esquecer os problemas da vida quotidiana. Não admira portanto que poucos se achem disponíveis, e não há de todo que fazer juízos sobre a indisponibilidade alheia. Mas, inversamente, não há que ter qualquer pudor acerca da disponibilidade própria. Todos os dados cinematográficos (corpos, vozes, luzes, movimentos, durações, etc.) podem ser tomados como componentes ou variáveis a modular na criação dessa ambiguidade, que é sujeita também ela a um equilíbrio extremamente frágil. Um dos riscos tremendos da ambiguidade é a aparição da crueldade, suspeita por vezes no exercício de uma certa crueza necessária. Mas, como se pressente na pobreza das discussões morais que empestam a recepção dos documentários e outros, confunde-se inúmeras vezes nos filmes a abertura de uma extensão vazia de ambiguidade que suspende o juízo com a inscrição da defesa de uma determinada posição considerada perigosa. Há, também no cinema, o horror ao vazio (moral).
Um eixo particularmente fértil da ambiguidade é a oscilação entre os dados que são tomados como artificiais e naturais. Todo o dado cinematográfico é potência de artifício, e do seu exercício pode resultar a exposição do falso. E, pelo menos no cinema, o falso tem a sua verdade. Não uma verdade que se grita à cara de alguém, mas uma que desliza e acompanha a percepção do filme, mantendo, precisamente, a ambiguidade. É evidente que nenhum filme (ou quase nenhum, há sempre o exemplo do Terra em transe de Glauber Rocha) sobrevive numa saturação quase total de falso, e por isso tudo se joga na composição dos dados que mantém a consistência. Trata-se de uma herança fértil do cinema moderno que é importante reconsiderar. É para isso que servem as genealogias cinematográficas, para a possibilidade de um trabalho baseado – não só mas também – num encontro com uma específica tradição, mesmo que não tradicional, que nos é simultaneamente próxima e distante.
Partindo da ideia de que os realizadores, nos melhores casos, compõem sistemas cinematográficos de grande complexidade, sustentados em relações solidárias entre as escolhas feitas no que se refere às inúmeras variáveis da composição cinematográfica, verificamos que esses sistemas são incrivelmente heterogéneos e mesmo mutuamente incompatíveis, pese embora a proximidade afirmada ou sugerida entre realizadores ou ainda a sobreposição observada de algum aspecto técnico ou ético. Se se mostram inapropriáveis na sua totalidade, enquanto meras repetições, estes sistemas são-no igualmente quando deles se procuram retirar parcelas. A apropriação directa de um determinado elemento estilístico de outro realizador pode impedir a construção solidária dos vários elementos que poderão vir a constituir um estilo cinematográfico original. A complexidade criativa de uma obra define-se pela maneira como sempre requer do pensamento a criação de novos conceitos que a procuram apreender e, em especial, de como faz crer sempre de novo na possibilidade de fazer cinema. Mas não temos de rejeitar influências ou de ter receio que as reconheçam de alguma forma no nosso trabalho, porque elas apenas são perigosas quando nos separamos desse processo singular de agregação de elementos estilísticos, que se espera próprio de cada um, ou se dele nos afastarmos por não termos força. (Se bem que, a dada altura, a preocupação inversa deva tornar-se preponderante, e os que conseguiram criar um estilo sejam tomados pela urgência em dele escapar, porque essa suspeita aquisição, como um enfermidade, os aprisiona.) Um modo privilegiado de constituição de um estilo é precisamente o conjunto de definições propriamente técnicas, que não meramente formais, que se traçam sobre os materiais à escolha.

(André Dias, «Materiais de destruição (parte I)», in Do grão ao pixel. Catálogo Mostra de Curtas 2005, org. Inês Sapeta, Vídeoteca Municipal, Lisboa, 2005, pp.18-19.)

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