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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #203 (António Guerreiro): Os mercados não falam

Sob os nossos olhos, e colonizando a nossa experiência imediata, a prosperidade evaporou-se. O mesmo mercado que segregava riqueza e lucros sem fim, agora segrega a pobreza. E todos nós, os leigos, mesmo os menos mesquinhos, já compreendemos que a ciência económica está constantemente a explicar-nos o que ela não compreende. Uma mentira implícita no discurso corrente consiste em pretender que os mercados falam, que eles funcionam não apenas através do seu legítimo e tradicional medium, o dinheiro (por conseguinte, operam com números) mas que, além disso, se apropriaram do medium da política, que opera com palavras, com a linguagem. Na verdade, os mercados não dizem nada, eles mostram-se em silêncio. A ideia de que eles falam corresponde àquilo a que um filósofo e linguista francês, Jean-Claude Milner, chamou “a política das coisas”. O governo das coisas (da qual existe tanto a versão da Direita como a da Esquerda), no sentido em que são as coisas que nos governam, começou por ser um sonho progressista do século XIX – a ideologia do progresso técnico - mas conheceu muitas variantes e legitimações.  

E é desse sonho progressista que fomos obrigados a depertar. A política entra em eclipse (e, no limite, os políticos são mesmo dispensados) quando as coisas decidem em lugar dos homens e quando estes passam a não poder governar as coisas: tudo o que os governantes propõem hoje aos governados passa por inevitável, algo inscrito na ordem das coisas. Os governantes têm um único dever: comunicar bem; e os governados têm o dever simétrico: bem escutar. Tudo se reduz a um dispositivo pedagógico que transmite com a maior clareza a lição das coisas, que é a de que nada pode ser mudado. Neste esquema pedagógico, a única coisa que resta é a retórica e e o estilo, que sempre foram os segredos dos bons pedagogos.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 4.8.2012.

1 comentário:

Anónimo disse...

A propósito, penso neste parágrafo que sublinhei em "O Homem sem qualidade" de Musil:

"Não estamos em condições de nos salvar a nós próprios, sobre isso não restam dúvidas. Falamos em democracia, mas ela é apenas a expressão política para um estado de espírito caracterizado pelo «Pode ser assim, mas também de outro modo». Vivemos na época do boletim de voto. Até votamos todos os anos no nosso ideal sexual, a rainha da beleza, e o facto de termos transformado a ciência no nosso ideal intelectual não significa mais do que pôr na mão dos chamados factos um boletim de voto, para que eles escolham por nós. Este tempo é antifilosófico e cobarde: não tem coragem para decidir o que tem ou não tem valor, e a democracia, reduzida à sua expressão mais simples, significa: Fazer aquilo que acontece! Diga-se de passagem que é um dos mais desonestos círculos viciosos que alguma vez existiu na história da nossa raça."

F.


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