Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #206 (António Guerreiro): Turistas são os outros

A mais profunda aspiração de todo o turista é subtrair-se ao turismo e não ser como os outros. E como são os outros turistas? Todos infantis, aparvalhados, destituídos de autonomia, guiados pelos tropismos da multidão. O turista é uma presa fácil das armadilhas da reversibilidade cómica: está no centro da cidade histórica ou em qualquer outro lugar, percorrendo as “coisas a ver”, e é ele que se torna a coisa mais visível. Na museificação generalizada que retira as coisas do seu uso, o turista não tem apenas o estatuto de visitante, mas de peça do museu. E, tal como a multidão se deslocava às grandes exposições universais do século XIX para ver a mercadoria, os turistas deslocam-se para ver a montra onde eles são exibidos a si próprios, num grande espetáculo em que os atores coincidem com os espetadores. A crítica do turismo e a denúncia da devastação que ele provoca têm uma idade respeitável (começaram no princípio do século XX), mas nada é mais difícil de contrariar ou de limitar do que tal indústria. 
Veneza tem um ódio visceral aos turistas, mas celebra com eles as núpcias mortais da grande prostituta. O escritor e ensaísta alemão Gerhard Nebel escreveu em 1950 que “o turismo ocidental é um dos maiores movimentos niilistas, uma da grandes epidemias do Ocidente”, e considerava mesmo que “um país que se abre ao turismo fecha-se metafisicamente — oferece um cenário, mas já não a sua mágica potência”. Tal declaração soa hoje como muito pouco original e confunde-se com as reações críticas daqueles que implicitamente reclamam que a viagem turística lhes devia ser reservada em exclusivo. O que Nebel não previu foi que nos tornaríamos todos turistas, nas nossas próprias cidades, pois o que lhes era exterior tornou-se o seu interior, e o que elas têm de mais profundo é a sua pele turística. Até o Erasmus mostrou um regime turístico para a Universidade.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 25.8.2012.

Ao pé da letra #205 (António Guerreiro): O grande bordel

Uma das grandes conquistas do nosso tempo, que os novos meios de comunicação elevaram a um estado de paroxismo, é a possibilidade de dizer ‘Eu’, de expor – e impor – a instância subjetiva. Até os jornais mais sóbrios se tornaram permeáveis a esta grande festa do ego que se tornou um bordel das subjetividades. Quem é que ainda sente um leve estremecimento diante da exibição do ‘Eu’ de um cronista ou de um repórter? Quem é que se escandaliza com o aparecimento imoderado, no espaço público, do ‘Eu’ de um escritor? Quem acha que esta perda de distância e a teatralização de um ‘Eu’ completamente fanérico têm um aspeto obsceno? O ‘Eu’ – a possibilidade de dizê-lo em regime de proliferação – é o sintoma do nosso tempo, a marca indelével da estupidez epocal (segundo o princípio, muito flaubertiano, de que cada época tem a sua). Alimentar, das mais diversas maneiras, a emergência e a explicitação do ‘Eu’, ao ponto de se ter perdido o sentido de que não há nada mais desinteressante do que dizer ‘Eu’ publicamente, tornou-se um apelo à concupiscência.  
E não foram apenas as regras da bienséance que mudaram: foi toda a ordem do discurso. Nos media, há cada vez menos a comparência de quem fala para lá das suas contingências egoicas, além da esfera do ‘Eu’ e do ‘Tu’. O discurso do universal, que foi outrora representado por uma figura desaparecida, a do intelectual (que, de resto, tantas vezes deixou uma má memória), deu lugar à grande parada carnavalesca dos ‘Eus’, que gritam, saltam e se atropelam. A partir de que momento é que, nos jornais e revistas, se perdeu o pudor de dizer ‘Eu’? Eis uma questão muito mais importante do que parece, capaz de nos elucidar acerca da nossa condição epocal, reclamando uma investigação arqueológica. A grande festa do ‘Eu’, a pessoalização como fenómeno mediático total, requer uma contrarrevolução puritana.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.8.2012.

Ao pé da letra #204 (António Guerreiro): Avaliação contínua

Para os epistemólogos, a avaliação é um gesto metodológico sofisticado, que releva de uma ciência. Mas a avaliação como prática do aparelho — como aquela a que todos os trabalhadores e instituições estão hoje submetidos — é outra coisa: uma ideologia poderosa e um mecanismo puramente gestionário. Sirva de exemplo a avaliação que o Governo mandou fazer às Fundações, cuja supervisão todos reconhecem como necessária, para que não se tronem instituições especializadas em extorquir dinheiro. A Fundação da Universidade de Lisboa foi avaliada com 7,8 pontos (numa escala de 0 a 100), e até a Gulbenkian ficou a meio da escala. Os resultados — qualquer pessoa de bom senso estará de acordo — estão errados, porque errados estão certamente alguns critérios. Mas o erro maior está no cerne da ideologia da avaliação, que tudo reduz ao mensurável. Medindo, calculando, numerando e comparando, os avaliadores imaginam-se a fazer um trabalho científico. Tão científico que nenhuma décima escapa à medição apuradíssima.  
Os avaliadores são uma seita e a sua mística é a ordem quantitativa pela qual tudo acede a um estado estatístico e entra num ranking. Mas como sabem que o seu trabalho não é interno a um saber, eles precisam que os avaliados (que, por sua vez, são os avaliadores dos outros) lhes outorguem legitimidade, que a creditação seja ao mesmo tempo coerciva e consentida. Esse consentimento tácito é obtido através da autoavaliação que os avaliados são convidados a fazer e que lembre o ritual da autocrítica que era imposto nos regimes comunistas. Pela autoavaliação, o sujeito avaliado confessa os seus pecados, incrimina-se a si próprio, denuncia as suas inclinações menos produtivas. Tudo isso para responder às eternas injunções da burocracia e também para assumir uma cumplicidade estratégica com os avaliadores em posição de mestres.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 11.8.2012.

 


Já tinha visto estas imagens. Em câmara lenta, vê-se melhor esta mulher, que se volta e olha para a câmara. Temos a certeza que ela teria saltado se, no último instante, não tivesse compreendido que a estavam a ver? Lembrei-me daquele tipo do ‘Paris 1900’ que tentava dar um salto incrível, com uma espécie de paraquedas à Batman, do primeiro andar da Torre Eiffel. É tão óbvio, pelo menos para mim, que, no último minuto, ele se dá conta de que aquilo não vai funcionar, que se vai matar. Mas a câmara está lá, ele não se pode acobardar e, por isso, salta e morre.»

Ao pé da letra #203 (António Guerreiro): Os mercados não falam

Sob os nossos olhos, e colonizando a nossa experiência imediata, a prosperidade evaporou-se. O mesmo mercado que segregava riqueza e lucros sem fim, agora segrega a pobreza. E todos nós, os leigos, mesmo os menos mesquinhos, já compreendemos que a ciência económica está constantemente a explicar-nos o que ela não compreende. Uma mentira implícita no discurso corrente consiste em pretender que os mercados falam, que eles funcionam não apenas através do seu legítimo e tradicional medium, o dinheiro (por conseguinte, operam com números) mas que, além disso, se apropriaram do medium da política, que opera com palavras, com a linguagem. Na verdade, os mercados não dizem nada, eles mostram-se em silêncio. A ideia de que eles falam corresponde àquilo a que um filósofo e linguista francês, Jean-Claude Milner, chamou “a política das coisas”. O governo das coisas (da qual existe tanto a versão da Direita como a da Esquerda), no sentido em que são as coisas que nos governam, começou por ser um sonho progressista do século XIX – a ideologia do progresso técnico - mas conheceu muitas variantes e legitimações.  

E é desse sonho progressista que fomos obrigados a depertar. A política entra em eclipse (e, no limite, os políticos são mesmo dispensados) quando as coisas decidem em lugar dos homens e quando estes passam a não poder governar as coisas: tudo o que os governantes propõem hoje aos governados passa por inevitável, algo inscrito na ordem das coisas. Os governantes têm um único dever: comunicar bem; e os governados têm o dever simétrico: bem escutar. Tudo se reduz a um dispositivo pedagógico que transmite com a maior clareza a lição das coisas, que é a de que nada pode ser mudado. Neste esquema pedagógico, a única coisa que resta é a retórica e e o estilo, que sempre foram os segredos dos bons pedagogos.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 4.8.2012.

Ao pé da letra #202 (António Guerreiro): Eleições de demofobia

Mesmo que consideremos que o conceito de democracia está contaminado por um mal-entendido fundamental e deu lugar a uma conversa inócua que esvazia a política de conteúdo, dizer “que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal”, como fez esta semana o primeiro-ministro, é um lapso terrível porque a verdade que nele surge, como um sintoma, é da ordem do irreparável. Tão irreparável como a virgindade perdida, que nem Deus consegue tornar reversível porque entre os seus poderes, segundo uma discussão teológica vinda da Idade Média, não está o de fazer com que aquilo que aconteceu deixe de ter acontecido. O acontecimento que teve lugar na frase de Passos Coelho pode ser traduzido por uma disposição que pode e deve ser chamada “demofobia”. A demofobia moderna tem uma estação fundamental na crítica nietzschiana da democracia e na sua contestação do sufrágio universal.  

Mas a demofobia governamental, de quem ascendeu ao poder pelo voto, é outra coisa que não tem, nem nunca teve, premissas políticas ou filosóficas: confundiu-se sempre com a defesa de uma forma de governo e com a procura de garantir uma legitimidade baseada no princípio da infalibilidade governamental. Segundo este princípio, não é governo quem erra ou o seu projecto que é mau, mas é o povo que não está preparado ou se deixou manipular. O “que se lixem as eleições” é uma resposta demófoba de quem tem dos cidadãos a ideia de que eles não atingiram o estado de maioridade e são incapazes de agir e pensar por si mesmos. E o que vem a seguir, “o que interessa é Portugal” é o enunciado lógico de toda a demofobia: o povo não se define por uma vontade própria, mas pelo critério orgânico da nação. Em suma: a demofobia não erradica o povo, mas faz dele uma entidade mítica, perante a qual o poder governamental se inclina e em nome da qual assume a sua ‘missão’.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.7.2012.


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