Ao pé da letra #193 (António Guerreiro): A ideologia da avaliação
A passagem do analógico ao digital invadiu toda a nossa vida quotidiana e verifica-se até em domínios onde o regime de significação não era concebível em termos digitais. É o caso dos ‘estudos’ que estabelecem numericamente o índice de felicidade – e de outras coisas igualmente não quantificáveis – da população de um país. Uma vez quantificada e medida numa escala numérica, a felicidade já não se opõe a infelicidade – uma oposição própria do regime analógico. Em vez destas oposições tão velhas como a metafísica, o que temos é comparações entre vários índices de felicidade, que permitem, por exemplo, dizer que os noruegueses têm um índice de felicidade mais elevada do que os portugueses. Mas se traduzirmos este dado por uma linguagem do tipo “os noruegueses são mais felizes do que os portugueses” sentimos que não estamos a usar a linguagem correta, que há restos de uma metafísica inadequada a insinuar-se na frase, que estamos, implicitamente e sem querer, a ressuscitar a oposição felicidade/infelicidade. | Quantificação também impossível, mas que ganhou honras e proveitos de ciências rigorosa, é a que estabelece os rankings das universidades, a nível mundial. Neste caso, é uma ideologia da avaliação (a que todos os funcionários estão hoje submetidos) que se faz passar por critério neutro e rigoroso. Como se mede a excelência ou a mediocridade de uma universidade de modo a colocá-la na posição 50 e não na posição 49 ou 51 ou noutra ainda mais desviada? Tal só é possível porque todos os critérios da avaliação se traduzem numericamente. Mas este modo de tradução só funciona de maneira convincente porque nos oculta as suas operações: apenas nos é dado o resultado. E foi assim que a ideologia da avaliação, que estabelece rankings e quantifica índices de felicidade, se tronou a verdadeira teologia do nosso tempo – uma teologia jansenista, de um Deus absconditus. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 26.5.2012. |