Ainda não começámos a pensar
We have yet to start thinking
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Crazy Horse
Agora que finalmente alguns vão poder assistir a um documentário de Frederick Wiseman simultaneamente com honras de abertura de festival e saída em sala – naquilo a que se poderia chamar, ironicamente, a sua “institucionalização” final –, ainda que sob mal disfarçado apelo ao “luxuoso e sensual” (“o que interessa aqui são as nádegas”, escreveu alguém, num momento de inspiração) – talvez seja útil, ainda que a despropósito, fazer notar algo relativamente óbvio. Ao invés do que esta promoção soft-core sugere, não partilha antes a grande obra deste cineasta americano algumas características não negligenciáveis com a pornografia hard-core? Porventura, não tanto – ou não apenas – no sentido geral de a sua perscrutação do social em open spread ser ela própria obscena... (A crueza dos seus filmes com a vida demasiado cozinhada que levamos, nos seus melhores momentos, ao nível exaustivo do detalhe e decomposição que oferecem, aparece, na verdade, mais como uma comovedora comédia romântica, polvilhada pelos inúmeros arrufos a cada encontrão entre as instituições estatais e privadas e os cidadãos vulgares – homens infames –, suas personagens.) Ainda assim, uma questão (cujas consequências necessitam resposta) permanece: onde senão num filme de Wiseman – e excetuando filmes pornográficos de um subgénero relativamente raro – se podem encontrar – trazidos à visibilidade e impondo uma nova inteligibilidade – gestos como o de uma mulher a manusear o pénis de um cavalo?
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Now that some will finally be able to watch a Frederick Wiseman’s documentary simultaneously at a grandiose festival’s opening session and coming to a screen near us—in what one could call, ironically, its final ‘institutionalisation’—, even if under unashamed appeal to the ‘luxuriant and sensual’ (‘what matters here are the buttocks’, someone particularly inspired wrote), it might be useful—although inappropriate—to notice something rather obvious. Contrary to what that soft-core promotion suggests, doesn’t the great work of this American cineaste share instead some rather non-negligible characteristics with hard-core pornography? Maybe not so much—or not only—in the general sense of its scrutinizing of the open spread social, in itself, being obscene… (The crudeness of his films with the overcooked life we live, in its best moments, actually becomes more like a moving romantic comedy, splashed with numerous splats emerging from the encounters between state and private institutions and—infamous men—ordinary citizens, their characters.) Nonetheless, the question—whose consequences have to be accounted for—remains: Where other than in a Wiseman film—and excepting pornographic movies of a relatively rare subgenre—are we to find—brought to visibility and imposing a new intelligibility—gestures like those of a woman handling a horse’s penis?
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P.S.: A França e o vídeo são como a kriptonite de Wiseman. | P.S.: France and video are like Wiseman’s kryptonite. |
Ao pé da letra #161 (António Guerreiro): O futuro está só nos detalhes
Um dos dados do mundo atual com o qual tivemos de nos familiarizar é o facto de a gestão económica, política e social ser feita na dimensão do futuro. Deixou, aliás, de haver futuro a partir do momento em que ele passou a ser totalmente colonizado pelo presente. A ciência da estatística, tendo adquirido um elevadíssimo rigor, permite antever tudo o que se vai passar, exceto os detalhes que são capazes de provocar verdadeiros desastres, como acontece na economia. Por isso é que o futuro deixou de ser outra coisa senão a catástrofe e, mais do que nunca, o bom Deus, neste mundo secularizado, está apenas alojado nos detalhes. A estatística e as previsões estão para o curso racional do mundo como o inconsciente está para a instância do Eu: é uma estrutura que tem o poder de sobredeterminar os nossos atos conscientes. E se há uma compulsão para a repetição dos mesmos erros é porque os atos falhados são inevitáveis. Sendo tudo sobredeterminado, a organização do mundo deixou de poder contar com o livro arbítrio. |
A grande palavra determinante da modernidade, “autonomia”, desapareceu. Não mudou de mãos, não ficou restringida a uns poucos: pura e simplesmente eclipsou-se. Esta é uma forma da harmonia universal que não se traduz exatamente na fórmula leibniziana segundo a qual vivemos no melhor dos mundos possíveis. A questão que se coloca é a de perceber que as previsões em função das quais se faz a gestão política e económica se tornaram quase uma ciência exata porque sobredeterminam o que se vai passar, até ao mais ínfimo pormenor. O futuro não é sondado por uma ciência rigorosa, é sobredeterminado por ela. Por isso é que deixou de haver política e há apenas gestão. E tudo o que chega de surpresa é uma catástrofe. Primeiro, com a comunicação eletrónica instantânea, perdemos o sentido da distância; agora, já vivemos em curto-circuito permanente: o futuro está a ser, o que significa que já foi.
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.10.2011. |
Ao pé da letra #159 (António Guerreiro): A máquina de destruir escritores
Sigamos Valter Hugo Mãe, se quisermos ver em funcionamento, sem hesitações nem álibis, a máquina de destruir escritores. A engrenagem subiu ao palco, sob a forma de tragicomédia, no festival de Paraty, de onde saiu uma personagem grotesca que se oferece em espetáculo numa representação de cabaré, amplificada por aplausos emocionados de espetadores que gostam do teatro das emoções e acham que um escritor é tanto melhor quanto mais escreve como respira, isto é, como mente. A maquinação continuou por conta da editora, que tem os seus dispositivos de destruição afinados pela cega engenharia de promoção dos produtos editoriais. Finalmente, a grande engenhoca do lançamento, para a qual se convocou o mais respeitável construtor da nossa democracia para a tarefa da mobilização nacional em torno do escritor, coroou este percurso pelo qual um romance passa a ter um destino extraliterário.
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A ideia que está na base é a de que a literatura precisa de ser dissimulada e integrada nos mecanismos espetaculares de excitação para ter sucesso. Terminada a festa da destruição do escritor, fica o objeto desamparado do romance, no meio dos destroços. Quem, por dever de ofício, por curiosidade ou porque não se pode subtrair à ‘atualidade’, assistiu aos atos preparatórios da implosão, só tem um desejo, que, a cumprir-se, proporcionaria o júbilo pérfido da vingança: que o romance se erga acima do seu autor, apesar dele, ignorando os seus desvarios e as engenhocas promocionais de destruir escritores. Infelizmente, o desejo não se cumpre, o júbilo perverso fica adiado e o dito romance, tão patético como a engrenagem destrutiva que preparou o seu aparecimento, faz-nos passar por aquela experiência muito embaraçosa de sentir a vergonha que caberia ao outro. Nem um deus, quanto mais um filho, o pode salvar.
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.9.2011. |
Ao pé da letra #160 (António Guerreiro): Kafka para economistas
Teve grande repercussão o facto de o ministro Vítor Gaspar ter citado o conto "Um Médico do Campo", de Kafka, para dizer que também para o responsável das Finanças "passar receitas é fácil, conseguir ser entendido pelas pessoas é difícil". Kafka conseguiu ver o seu nome ligado a coisas tão temíveis – kafkianas – que ouvir um ministro das Finanças evocá-lo até parece exercício de suprema crueldade. No entanto, Vítor Gaspar tinha à sua disposição, na obra de Kafka, um conto de onde poderia tirar uma citação muito mais pertinente, nas atuais circunstâncias. Trata-se de "A Colónia Penal", onde uma máquina de tortura inscreve palavras no corpo do preso relativas à pena. A dívida – também a soberana – contrai-se através de um ato de promessa: a de que será paga. Mas o performativo da promessa (que consiste em dizer “eu prometo” – e dizendo isto não estou a constatar uma ação mas a praticá-la) não constitui em si mesmo o reembolso da dívida.
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A promessa tem seguramente a garantia de instituições nacionais que são como “homens de palavra”, mas, sabemo-lo agora com exatidão, os credores estão munidos de máquinas terríveis, como as da colónia penal concebida por Kafka, para garantirem que a promessa seja cumprida e não se fique pelas palavras que fizeram dela um ato. O performativo da promessa implica e pressupõe uma mnemotécnica da crueldade e da dor que, à semelhança da máquina da colónia penitenciária de Kafka, escreve no corpo do endividado, dilacerando-o, a promessa de reembolsar a dívida. E a ferida vai abrindo à medida que há uma dilação da promessa. A dívida tornou-se assim uma laceração cada vez mais aberta nalguns corpos nacionais. Nietzsche também viria a propósito: “Grava-se algo com o ferro em brasa para o fixar na memória: ela só conserva o que não para de fazer mal.”
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.10.2011. |
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