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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #149 (António Guerreiro): A magia negra do jornalismo

O grande escândalo das escutas telefónicas pelos jornais ingleses do império Murdoch traz à mente a definição que o escritor austríaco Karl Kraus, que manteve durante cerca de trinta anos um anti-jornal, dava do jornalismo: a magia negra. Denunciar a venalidade e a corrupção, a tirania das frase pré-fabricadas (a fraseologia), a grande fábrica de produção da opinião pública foi a sua tarefa grandiosa, obsessiva e muitas vezes injusta. Com alguma inspiração krausiana, o semanário alemão Die Zeit dedicou há algumas semanas um dossiê à crítica do jornalismo, identificando um pecado fatal: a ausência, senão mesmo a impossibilidade, de autocrítica, a partir do momento em que se consumou uma ‘jornalização’ do mundo, a qual está em vias de engolir a literatura na reportagem universal. Este triunfo do jornalismo acaba mesmo por ser a razão da sua fraqueza atual: ele acabou por se disseminar por todo o lado, de tal modo que perdeu a sua morada e, desse modo, ficou desprovido de orientação e de instâncias de controlo e legitimação.

Como todas as instituições, dizia Kraus, a imprensa tem o hábito de responder à crítica explicando que não se pode generalizar a partir dos erros e dos vícios de um pequeno número. Mas ele, de maneira radical e sem nenhuma preocupação de ser justo, dizia que era preciso proceder exatamente ao contrário: não se pode, argumenta ele, desculpar e ainda menos absolver a imprensa generalizando a partir da honestidade e da coragem de uns poucos. Como é fácil perceber, Kraus foi muitas vezes uma figura detestável, mesmo quando era genial. Mas a sua verve, apesar de deformadora, tinha a virtude de obrigar à reflexão e de convidar à autocrítica. O que, no diagnóstico do dossiê do Die Zeit, é o que falta hoje aos media e os impede de fugir à cegueira a que estão expostos.


António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.7.2011.

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